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“Black power verde e amarelo”: CIA monitorou racismo no Brasil durante ditadura militar

Ao passo que rejeitava propaganda da ditadura sobre racismo, CIA vigiava manifestações negras temendo efeitos políticos no Brasil
Lucas Pedretti
Punhos cerrados em frente à bandeira do Brasil
“O interesse dos EUA pela questão racial no Brasil é muito anterior ao contexto da ditadura militar, uma vez que essa era uma questão explosiva no contexto norte-americano”, analisa a socióloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Flavia Rios. (Imagem: Estúdio Gauche)
“Meias-verdades e distorções históricas.” Com essas palavras, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) definiu em um relatório de 1981 do que era composto o mito da inexistência de racismo no Brasil. O documento inédito é intitulado “Brasil: raça e suas implicações para a estabilidade política” e foi localizado pela Agência Pública no acervo do projeto Opening the Archives, da Universidade Brown, em Rhode Island (EUA).

Para atestar a existência de discriminação racial, ao longo de 37 páginas, o documento examina dados, expõe gráficos e traz uma bibliografia atualizada com sociólogos brasileiros que trabalhavam o tema à época. Mais que apontar a existência de racismo, a agência norte-americana buscou analisar os impactos de uma “crescente consciência negra” no país.

“Se as tendências que identificamos se mantiverem, as relações raciais ganharão maior importância política, e o descontentamento racial pode atingir proporções sérias até o final da década. Incidentes raciais, casos de brutalidade policial, boicote econômico e esporádicas manifestações de larga escala poderiam facilmente ocorrer”, chegou a prever a agência norte-americana.

“Um oficial do Consulado dos Estados Unidos no Rio Grande do Sul informou que, em outubro de 1980, ocorreu o Primeiro Encontro Estadual da Comunidade Negra”, atesta o primeiro tópico de uma lista de atividades monitoradas. “Alguns dos temas discutidos foram a segregação racial nos níveis local, estadual e nacional, a discriminação nos trabalhos na indústria e o problema do desenvolvimento da consciência negra”, descreve o documento.

Documento foi localizado pela Agência Pública na Universidade de Brown em Rhode Island (EUA). (Foto: Kenneth C. Zirkel/Wikimedia/Creative Commons)

Entre as manifestações antirracistas listadas no relatório estão a criação de uma organização do movimento negro em Santa Catarina; um protesto após um jovem negro ser impedido de entrar no elevador de um shopping de São Paulo; a atuação da Escola de Samba Quilombo; atividades de celebração do 350º aniversário do Quilombo dos Palmares; desfiles dos blocos afro no carnaval de Salvador e as discussões sobre a questão negra durante reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

 Leia também – As Forças Armadas contra o Brasil negro [parte 1] 

O documento mergulhou na principal expressão da reorganização do movimento negro da década de 1970: a criação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978. O ato de fundação do MNU, que reuniu 5 mil pessoas em São Paulo, bem como seus líderes, “importantes porta-vozes da população negra”, e pontos do programa político foram destacados no trabalho. “Embora a liderança do MNU seja de esquerda, seu primeiro diretor tenha sido um autoproclamado marxista, e os agentes de segurança brasileiros acusem o grupo de ter proximidade com o comunismo, a organização foi autorizada a continuar suas atividades”, descreveu o relatório.

“O interesse dos EUA pela questão racial no Brasil é muito anterior ao contexto da ditadura militar, uma vez que essa era uma questão explosiva no contexto norte-americano”, analisa a socióloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Flavia Rios, que destaca ainda como intelectuais estrangeiros visitavam o país desde a década de 1920 para pesquisar sobre o tema, uma vez que o Brasil era usado como exemplo de relações harmoniosas. “E sempre esses intelectuais e pesquisadores tinham uma interação com as agências norte-americanas”, destaca.

“A imagem do Brasil como um paraíso racial é bem antiga”, explica o professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Luiz Augusto Campos. “Com a derrocada do nazismo e o fim da Segunda Guerra [Mundial], os recém-formados organismos internacionais passaram a enquadrar o Brasil como exemplo de relações raciais.”

Segundo Campos, nos anos 1970 a ideia começou a “perder legitimidade de fora para dentro”. O relatório da CIA, por exemplo, se diferenciava de modo significativo do que era relatado em documentos da ditadura. Mergulhados profundamente no mito da democracia racial, os militares brasileiros seguiram até o final do regime apostando na ideia de que o Brasil seria um país sem racismo.

Em 1988, por exemplo, já sob o primeiro governo civil pós-ditadura, o Centro de Informações do Exército [atual Centro de Inteligência do Exército (CIE)] produziu um relatório sobre as mobilizações sobre o centenário da abolição da escravidão, em que era descrito que “a miscigenação se processou sem traumas ao longo dos dois últimos séculos” e que as críticas do movimento negro buscavam “semear o germe da discórdia” explorando um “pretenso racismo”.

A consciência negra como “preocupação”

Da relação dos nascentes partidos políticos com lideranças negras aos efeitos da crise econômica, passando pelas relações do Brasil com países africanos e pela atuação de esquadrões da morte nas periferias do país, o relatório da CIA demonstrava a preocupação de tentar antever o quanto essas questões poderiam levar a um aumento da consciência racial na população negra brasileira e o que isso poderia significar politicamente no país.

O documento sugeria um modelo de checklist para futuros observadores, com perguntas como: “os centros de cultos afro-brasileiros, as escolas de samba ou outras associações negras, hoje apolíticas, estão se tornando centros de agitação política e propaganda?” e “Cuba ou qualquer outra nação comunista estão tentando exacerbar a situação racial no Brasil?”.

“No imaginário norte-americano, a possibilidade de race riots, levantes baseados em questões raciais, estava muito à flor da pele, especialmente entre os brancos de classe média”, explica o historiador da Universidade Brown e criador do projeto Opening the Archives, James Green. Conhecedor do universo das agências norte-americanas, ele explica que o corpo diplomático dos EUA no Brasil era o terceiro maior em recursos e número de funcionários, dado o imaginário sobre o país criado após a Revolução Cubana.

A pesquisadora Flavia Rios lembra que nos EUA havia a luta dos Panteras Negras, organização marxista e maoísta que, na percepção da CIA, dada a “perspectiva imperialista dos EUA”, encontraria no Brasil “solo fértil”, em razão da ditadura militar. “A gente já vinha ali de um contexto de guerrilhas, de muitas mobilizações. […] Imagina se essas duas coisas se comunicam? Um debate racial em sentido mais amplo, mais forte, mais denso, mais conflitivo, junto a grupos marxistas, revolucionários? Então se tem uma preocupação com esse potencial explosivo”, avalia.

Realidade mais particular que semelhante

Espiões norte-americanos se aproximavam da visão dos militares brasileiros quanto ao receio de manifestações antirracistas. “A publicação pela imprensa de artigos, pesquisas, análises, debates e pronunciamentos de quem quer que seja sobre preconceito e discriminação racial só servirá para criar um clima propício a efervescências e agitações sociais que poderão culminar com a implantação, no Brasil, de distúrbios raciais, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos da América do Norte”, aponta relatório do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa) de 1970.

Para os agentes da Aeronáutica, não seria surpresa se, diante dessas efervescências, surgisse no país um “Black Power verde e amarelo”. Os militares, em geral, usavam as menções aos norte-americanos na tentativa de reduzir a agenda dos militantes negros brasileiros, como fica evidente em relatório do Serviço Nacional de Informações (SNI) de 1977 que se refere aos bailes soul brasileiros como iniciativa de negros que estariam tentando “plagiar os blacks norte-americanos”.

Um dos líderes militantes do movimento negro monitorados pelos órgãos repressivos da ditadura militar foi o doutor em história, tradutor dos livros de Zygmunt Bauman e autor do livro Na lei e na raça, Carlos Alberto de Medeiros. O pesquisador, que integrou o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) no início da década de 1980, disse imaginar que a luta era monitorada, mas se surpreendeu com a produção do relatório pelos norte-americanos. “A gente não percebia esse impacto internacionalmente”, sintetizou Medeiros ao saber do documento.

Para Medeiros, as manifestações antirracistas nos EUA eram uma fonte de inspiração, ao lado das lutas por independência na África. A influência dizia respeito à questão da luta pela afirmação da identidade negra, incluindo aspectos como o cinema negro e a soul music.

“Mas nós não percebíamos a possibilidade de ter os tipos de confronto que eles [militantes norte-americanos] tinham, já que antes nós precisávamos ampliar essa coisa da consciência negra”, reflete o pesquisador. “Nós tínhamos uma cultura, uma história, que, em muitos aspectos, é muito mais rica que a deles. Então nós fomos descobrir e valorizar nossas próprias particularidades.”

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