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Bolívia, o país que sonha com o mar

Saída para o mar, perdida para o Chile na Guerra do Pacífico, continua sendo uma reivindicação nacional e popular na Bolívia
Miguel Egea
A Marinha Boliviana desfila pelas ruas de La Paz durante as celebrações do Dial do Mar. (Foto: Miguel Egea / El Salto)

Se quiséssemos viajar pela Bolívia de leste a oeste, poderíamos começar caminhando pelas férteis terras baixas amazônicas e depois subir mais de 6 mil metros, até alguns dos picos mais imponentes da Cordilheira dos Andes. Continuando em direção ao oeste, chegaríamos ao Altiplano, um gigantesco platô a cerca de 4 mil metros acima do nível do mar. Deixaríamos para trás os nevados, como são chamadas aqui as gigantescas montanhas, e poderíamos parar nas margens do Titicaca, o lago navegável mais alto do mundo, ou no salar de Uyuni, dependendo se fôssemos mais para o norte ou para o sul. Depois de recuperar o fôlego, poderíamos pensar em continuar rumo ao oeste e chegar ao Oceano Pacífico, a apenas 200 quilômetros de distância: teríamos que tirar nossos passaportes dos bolsos, mudar a hora em nossos relógios e cruzar a fronteira chilena para os portos de Arica, Iquique ou Antofagasta.

Entretanto, nem sempre foi assim. Quando a Bolívia conquistou a independência da Coroa Espanhola, em 1825, a nova e extravagante República que levou o nome do libertador Simón Bolívar tinha mais de dois milhões de quilômetros quadrados de território (hoje é apenas a metade disso), incluindo todo o litoral entre os paralelos 21 e 24. As riquezas que os espanhóis saquearam da colina de Potosí estavam fluindo para a Europa a partir dos portos do Pacífico e continuaram a ser comercializadas a partir de lá após a independência. Apenas 50 anos depois, em 1879, a Bolívia perdeu todo o litoral para o Chile e, com ele, seu acesso ao mar.

(Mapa: Sofia Zeni)

A perda do litoral: uma lição de história

Na Bolívia, é comum explicar às crianças que a Guerra do Pacífico foi perdida porque os chilenos aproveitaram o carnaval para roubar o mar e os bolivianos estavam bêbados demais para reagir: “o presidente estava em festa”, dizem os professores nas escolas. Essa maneira de contar a história tem a ver, segundo alguns, com uma tendência da sociedade boliviana de se desvalorizar. A verdade é que a cronologia começa em 14 de fevereiro de 1879, com a invasão do porto de Antofagasta, que foi rapidamente seguida pela invasão do resto da costa. Quando a notícia chegou a La Paz, na noite de 25 de fevereiro, terça-feira de carnaval, a maior parte do litoral da Bolívia já havia sido ocupada pelas tropas chilenas.

De acordo com Rafo Puente Calvo, autor de um dos manuais fundamentais para a compreensão da história boliviana, Recuperando la memoria: una historia crítica de Bolivia, essa lenda popular tem a ver com a incompetência e falta de capacidade de ação por parte do governo boliviano na época. Mas esse episódio foi apenas o ponto culminante de um processo que vinha ocorrendo há várias décadas, ou seja, a grande maioria da população que vivia no litoral da Bolívia era de origem chilena. Um exemplo é Antofagasta, que no censo de 1875 tinha 6 mil habitantes, dos quais 600 eram bolivianos e 5 mil chilenos. Além disso, a maioria das empresas estabelecidas na região também eram chilenas ou peruanas, e eram elas que se encarregavam de movimentar a riqueza que saía das minas para o interior do país.

Enquanto os oligarcas e políticos bolivianos da época, cujos sobrenomes e interesses se mesclam na história, estavam concentrados na exploração das minas e na proteção de seus negócios pessoais, uma institucionalidade estatal mais ou menos estável estava sendo formada no Chile. Esse estado vizinho mais consolidado havia decidido investir, ao contrário do estado boliviano, em vários navios de guerra. Quando a Revolução Industrial ocorreu na Europa, em meados do século XIX, houve um abandono maciço dos campos agrícolas e um aumento da demanda por alimentos nas cidades. Da noite para o dia, o guano e o salitre, que eram tão abundantes na costa boliviana, tornaram-se produtos muito procurados do outro lado do oceano por suas incríveis propriedades fertilizantes, que os incas já haviam descoberto muito antes da colonização. Essa riqueza redescoberta na área, juntamente com o abandono da região pelo estado boliviano e o fato de que ela já estava ocupada de fato por cidadãos e empresas chilenas, precipitou a invasão.

Estátua de Eduardo Abaroa, herói da Guerra do Pacífico, em praça de La Paz que leva seu nome. (Foto: Miguel Egea / El Salto)

Houve várias tentativas fracassadas de reconquistar a costa, sendo a mais famosa a batalha perdida de Calama, em março de 1879, quando o comandante boliviano Eduardo Abaroa morreu. Em 1884, a guerra se encerrou com o Chile vencedor. Nesse meio tempo, o Chile prosseguiu avançando para o norte e também tomou parte do que era então o litoral peruano, os atuais portos de Iquique e Arica. Finalmente, em 1904, foi assinado um Tratado de Paz e Amizade entre a Bolívia e o Chile, que continua em vigor até hoje e reconhece a soberania chilena sobre os territórios ocupados.

A construção de um imaginário patriótico coletivo

A Guerra do Pacífico não foi a única guerra que despojou a Bolívia de uma região; muito mais sangrenta foi a Guerra do Chaco contra o Paraguai, de 1932 a 1935, na qual grande parte da região sul do Chacho foi perdida para a república vizinha. Até hoje, ninguém pensaria em contestar a propriedade desse território, nem dos territórios que foram perdidos ou vendidos para o Brasil, Peru ou Argentina ao longo dos mais de 200 anos de história da Bolívia. No entanto, a questão do litoral é muito diferente, e a reivindicação marítima está até mesmo escrita na Constituição de 2009: “O Estado boliviano reivindica seu direito inalienável e imprescritível ao território que lhe dá acesso ao Oceano Pacífico e ao seu espaço marítimo”. Como chegamos até aqui?

Imediatamente após a guerra, foi iniciado um processo de construção de uma identidade nacional em torno da perda do litoral. Isso é explicado por Huascar Oscar Piérola Dorado, um estudante de doutorado da Universidad Mayor de San Andrés em La Paz, cuja tese trata da estratégia e da retórica da questão marítima no estado boliviano. De acordo com Huascar, a guerra do Pacífico foi a primeira guerra travada pela Bolívia em um contexto no qual ela estava construindo sua própria identidade nacional. O Estado começou a definir um certo horizonte político em nível internacional e, a partir de 1952, ano da Revolução que estabeleceu o sufrágio universal, a Bolívia começou a pensar em uma política marítima que apoiasse essa demanda por acesso à costa. As ditaduras militares de 1964 a 1982 aproveitaram os quase 100 anos de “heroificação” de certos personagens, como Abaroa, para construir um imaginário que justificasse o papel das Forças Armadas, alimentando uma retórica nacionalista útil para fortalecer as lideranças políticas da época.

Com o passar dos anos, essa retórica ligada à figura de Eduardo Abaroa e ao desastre do Litoral permeou a sociedade boliviana e, embora a perspectiva de uma nova guerra esteja longe das mentes dos governos e dos cidadãos, a questão marítima continua sendo uma reivindicação de primeira ordem. Rafo Puente descreve isso da seguinte forma: “é um tipo de sentimentalismo, ainda somos um país enclausurado que reivindica um mar que todos sabem que não vai se recuperar […] puro patriotismo vazio”. Essa é uma perspectiva bastante crítica sobre a questão, mas não está muito distante do que se pode ouvir quando se pergunta a qualquer boliviano sobre o assunto: as palavras mais repetidas são “saudade” e “impossível”.

O Estado plurinacional e a agenda marítima

Em 2004, foi realizado um referendo sobre a política de hidrocarbonetos e uma das perguntas aprovadas foi a seguinte: “Você concorda com a política do Presidente Carlos Mesa de usar o gás como recurso estratégico para recuperar uma saída útil e soberana para o Oceano Pacífico?” O presidente não durou muito tempo no cargo, e 2006 marca o início do mandato de Evo Morales e da Assembleia Constituinte que fundou o Estado Plurinacional e aprovou a atual Constituição. O protagonismo que adquiriu a ideia de repensar a questão do acesso marítimo fez com que o governo de Evo herdasse essa agenda marítima, com ela adquirindo centralidade política e ideológica.

Em 2013, depois de documentar extensivamente o histórico de suas reivindicações e relações internacionais sobre essa questão com o país vizinho, o governo de Morales processou o Chile perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ), afirmando uma suposta “obrigação do Chile de negociar de boa fé e de forma efetiva com a Bolívia, para que se chegue a um acordo que garanta a esta última uma saída soberana para o Oceano Pacífico”. A decisão do tribunal de Haia negou que o Chile tivesse tal obrigação, embora tenha dado aos dois países liberdade para negociar em um “espírito de boa vizinhança”, o que não aconteceu, já que as relações bilaterais entre os dois estados estão rompidas desde 1978.

Perguntado se essa sentença internacional encerra o assunto, Huascar Piérola acredita que a derrota de Haia não destruirá tudo o que foi construído ao longo de mais de 100 anos: “já está institucionalizado, faz parte do calendário cívico do Estado, faz parte do currículo escolar, é uma questão cotidiana, faz parte do imaginário da nação e da memória coletiva”. Ele tem razão, o Estado não abandonou sua reivindicação marítima, que é retomada a cada 23 de março, apesar da evidência de sua impossibilidade prática. Em março, como em todos os anos, os restos mortais de Abaroa foram homenageados e uma grande marcha militar foi realizada em La Paz com a presença das autoridades do país, incluindo um discurso em apoio à reivindicação.

Há várias instituições estatais dedicadas de corpo e alma à reivindicação marítima. Uma delas é o Registro Internacional de Navios da Bolívia, que pertence ao Ministério da Defesa. Além de autorizar os navios a arvorar a bandeira boliviana, seus escritórios em La Paz monitoram em tempo real a posição de todos os navios que navegam sob sua bandeira. A parte mais delicada do trabalho é realizada pelo capitão Wilson Santos, chefe da unidade de relações internacionais do registro. O capitão viaja regularmente para Londres, onde representou a Bolívia em várias ocasiões perante a Organização Marítima Internacional. A simples presença da Bolívia nessa organização da ONU é um triunfo para a agenda marítima do estado. Santos garante que seu país é respeitado dentro da organização e que, de fato, recebe consideração especial por ser um estado sem litoral com presença marítima. As reuniões técnicas das quais ele participa discutem disputas e protocolos internacionais que, uma vez aprovados, serão aplicáveis a todas as águas do mundo.

A Bolívia ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, o que lhe concede liberdade de navegação e significa que, apesar de ser um estado sem litoral, a Bolívia pode sinalizar e controlar embarcações. Atualmente, o país tem cerca de 500 navios sinalizados, a grande maioria dos quais são embarcações mercantes que circulam pela Hidrovia Paraguai-Paraná, uma hidrovia de mais de 3,4 mil quilômetros que liga a Bolívia ao Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. Essa é a saída natural do país para o Oceano Atlântico, por meio de seu principal porto de exportação, Puerto Quijarro, que pode ser visto a leste do mapa no início deste artigo.

Programa de computador usado para o controle da posição dos navios mercantes que navegam na Hidrovia Paraguay-Paraná. (Foto: Miguel Egea / El Salto)

Em busca de uma saída

Conversando com os transeuntes em La Paz, fica imediatamente claro que a questão da saída para o mar não é apenas um anseio poético, mas também está fortemente ligada à ideia da necessidade de uma solução econômica para a situação do país. A perda do mar não seria nada mais do que uma das muitas injustiças históricas que sempre colocaram a Bolívia na parte inferior das tabelas de classificações econômicas. O Banco Mundial colocou seu PIB per capita em 2021 apenas à frente do Haiti, Nicarágua e Honduras no continente.

Basta olhar ao redor em qualquer lugar deste país para ver a incidência severa da pobreza e da desigualdade. O acesso ao mar provavelmente poderia começar a mudar a maré, mas essa é uma possibilidade que está longe da realidade, e os esforços reais para encontrar uma saída para sua situação na economia internacional estão concentrados em outro lugar.

No ano passado, o vice-presidente David Choquehuanca esteve na Comissão de Narcóticos da ONU, em Viena, pedindo uma revisão crítica da classificação da folha de coca como droga narcótica. Os bolivianos defendem seu uso tradicional, nutricional e terapêutico, e seu direito de industrializar sua produção e comercialização. Se isso fosse bem-sucedido, a folha, uma das culturas mais representativas do país, poderia ser vendida em todo o mundo em seu estado natural.

Mas a principal aposta atual é o lítio. Esse material, necessário para as baterias de qualquer componente eletrônico, pode se tornar o novo ouro em um mundo que exige continuamente melhorias tecnológicas. Por meio da empresa pública Yacimientos de Litio Bolivianos, o Estado está se preparando para explorá-lo e exportá-lo para todo o mundo. Em janeiro de 2022, a Bolívia assinou um acordo com o consórcio chinês CBC para a instalação de dois complexos de extração industrial e, no ano seguinte, anunciou que quatro outras empresas demonstraram possuir a tecnologia para a extração direta de lítio: duas chinesas, uma americana e uma russa. Se a riqueza gerada pelo novo recurso será redistribuída ou se a velha tradição da mineração estrangeira, que trouxe tanta miséria a esse canto do mundo, será perpetuada, dependerá da capacidade do Estado de negociar os lucros que essas empresas deixarão no país.

(*) Tradução de Raul Chiliani

El Salto El Salto é um meio de comunicação social autogerido, horizontal e associativo espanhol.

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