Pesquisar

O anti-intelectualismo na esquerda

Ao invés de fortalecer o anti-intelectualismo, é preciso criar espaços fora da universidade em que possam surgir os intelectuais orgânicos da classe trabalhadora

Carlos Hortmann
“O Peregrino” (Le Pélerin), 1966, de René Magrite.

“Teoria sem prática é tão incompleta
 quanto prática sem teoria,
ambas devem andar juntas.”
(Assata Shakur)

Um antigo vídeo de Eduardo Galeano voltou a circular na minha “bolha” de esquerda, em que o escritor uruguaio diz, de forma contumaz: “eu não sou um intelectual!”. A sua explicação para negar tal coisa é que os intelectuais separariam a cabeça do corpo, e que seria preciso ter cuidado com “aqueles que somente racionalizam”, pois podem criar monstros. Algumas questões e considerações.

Gostaria de saber como qualquer ser humano consegue fazer isso: a cabeça não faz parte do corpo? (até hoje não vi nenhum corpo sem cabeça a saltitar por aí – desculpem a ironia macabra). Se somos “um todo” como o mesmo diz, que habilidade especial têm esses intelectuais (na “cabeça” do Galeano) que conseguem tal proeza? Tal justificação biologista não esconde a questão fundamental da sociedade capitalista: a classe? Portanto, bastariam os intelectuais orgânicos-tradicionais da classe dominante conectarem a cabeça ao corpo para ganharem consciência de que também são subalternos? O perigo latente desse tipo de fala é reforçar um mantra ideológico liberal de que existe uma racionalidade desinteressada na academia, no jornalismo e afins; sem paixão ou coração, isto é, supostamente neutra e sem interesses de classes. 

Galeano recorre às gravuras de “Los Caprichos” de Francisco de Goya para dizer que as pessoas que só utilizam a racionalidade se arriscam a criarem monstros. Outras perguntas: como alguém consegue atingir só a racionalidade, sem sentir? Seria possível separar o sentir da racionalização? A razão não é um modo de sentir/ser afetado, que nos ajuda a perceber e entender o mundo? Como se reconhece a nossa dimensão irracional/inconsciente se não pela própria “monstra” racionalidade? Um certo apelo à irracionalidade enquanto negação da razão moderna – com todos os seus problemas e contradições – me parece se inscrever na corrente teórica contrarrevolucionária do irracionalismo de estirpe nietzschiana.  

As interrogações que enunciei acima destino especialmente àquelas pessoas de esquerda que partilharam efusivamente e propalaram por todos os lados o quanto Galeano estava certo. Pois, além dos problemas supracitados, penso que o brilhante escritor de As veias abertas da América Latina (obra que ensinou a muitos de nós acerca da nossa condição periférica e de latino-americano), comete um erro ao tratar como sinônimos o intelectual e o acadêmico. Fazermos uma crítica implacável contra o academicismo em geral, mas especialmente no campo da esquerda moderada e radical/comunista, é urgente e mais que necessário. É preciso evidenciar e denunciar a lógica mercadológica do capital predominante no âmbito universitário/acadêmico, por ser domesticadora, castradora e conservadora da ordem: desde a sua versão moderna do século XIX, são pouquíssimos os/as intelectuais que escapam desse armadilha. Lutar contra o academicismo e os intelectuais tradicionais-orgânicos da classe dominante deve fazer parte da nossa militância política em todos os espaços. 

O ponto central é que todo acadêmico (pressupõe-se) que seja um intelectual (enquanto atividade e função), mas nem todo intelectual é um acadêmico – de um ponto de vista estrito. O sentido forte do adjetivo intelectual se refere a todo o ser social que tem a capacidade de intelecção, de pensar, refletir, de antecipar e organizar uma determinada atividade/ação. Nesse sentido, Gramsci é categórico: “todos os [humanos] são intelectuais, mas nem todos os [humanos] têm na sociedade [capitalista] a função [divisão social do trabalho] de intelectuais”. Sinteticamente, os estudos do militante sardo apontam que na sociedade de classes (com as suas franjas e frações), cada camada tem os seus intelectuais orgânicos, isto é, os que vão atuar na direção de conservação da ordem ou os que lutarão para superação e transformação, portanto, na formulação teórica e organização de uma força social contra-hegemônica capaz de fazer a revolução. Nitidamente inspirado na formulação de Lênin de que “não há movimento revolucionário sem teoria revolucionária”.

Esse setor da esquerda, em nome de combater o academicismo, os intelectuais da ordem, os que se dizem de esquerda mas não têm ligação com realidade mais imediata da classe, acaba por cair numa cruzada anti-intelectual, o que no meu entender é extremamente perigosa, para não dizer outras coisas mais duras. Ao invés de fortalecer o anti-intelectualismo abstrato, por que não criarmos um campo e espaços em que os intelectuais orgânicos da nossa classe trabalhadora, fora da esfera da universidade, possam produzir conhecimento crítico da realidade, formulação estratégica, na preparação dos nossos quadros-militantes e afins, a partir do contato com as necessidades mais imediatas, mas sem perder de vista as nossas tarefas históricas (a construção do socialismo/comunismo)? Arrisco dizer que num largo espectro da esquerda desapareceu a cultura do estudo sistemático e aprofundado dos autores fundamentais do marxismo; pelo visto, parece ser mais confortável ficar horas a passar o dedo num smartphone nas redes sociais ou a simularem conhecimento na internet com frases de efeito e a reproduzir jargões – isso é uma responsabilidade coletiva e não uma culpabilização individual. Os partidos, movimentos sociais, organizações, etc. devem organizar espaços para desenvolver a consciência e o hábito da necessidade da leitura e estudo. Conhecermos a estrutura e sistema social que enfrentamos, através do conhecimento científico, é mais um momento de luta e urdirá da nossa intervenção.  

  Outra faceta da falta de esmero pelo estudo é a influência de correntes pós-modernas no interior dos movimentos, partidos e organizações da classe trabalhadora; como o “culto da experiência”, o “eu-pirismo”, o “lugar de fala” (enquanto primazia e condição epistêmica do conhecimento). Não é porque um sujeito vive/sente uma determinada realidade que ele tem a capacidade de entender essa realidade do ponto de vista teórico – são dimensões distintas do mesmo contexto. Por outras palavras, não se pode colocar como equivalente a formulação teórica e capacidade analítica e a experiência/vivência fechada na sua singularidade. Uma sem a outra é um conhecimento “incompleto”, e quem capta de forma primorosa o espírito dessa contradição é o já citado militante e dirigente do Partido Comunista Italiano: “Passagem do saber ao compreender, ao sentir, e, vice-versa, do sentir ao compreender, ao saber. O elemento popular ‘sente’, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual ‘sabe’, mas nem sempre compreende e, menos ainda, ‘sente’ (Gramsci).” Por isso que Gramsci irá categorizar o marxismo como filosofia da práxis (teoria e prática). 

O deputado estadual Renato Freitas (PT-PR), um dos quadros políticos mais importantes e vibrantes que emergiu no seio da classe trabalhadora e periférica brasileira, tem enfatizado muito que “a cabeça pensa onde os pés pisam”. Uma verdade in conteste, mas é preciso ressaltar que ele fez uma longo caminho de estudo, preparação e formação para se apresentar como sujeito político-coletivo que tem a possibilidade de representar uma esperança de futuro para os subalternos no Brasil. Foi a integração entre teoria e a experiência que ele entendeu o motivo da fome e o pauperismo que imperar nas periferias de Curitiba. Porque onde ele pisa tem muita gente sem casa e muita casa sem gente. 

Por mais intelectuais orgânicos como Renato Freitas, Jones Manoel, Natan, Oliveira, Jodi Dean, Angela Davis e menos acadêmicos de esquerda elitistas e domesticados pelo liberalismo. Paro por aqui, com algumas das palavras mais belas, emocionantes e profundas de Lise Vogel: “Somente na análise de uma situação real é que a abstração ganha vida, pois é a história que coloca a carne sobre os ossos da teoria.” 

(*) Carlos Hortmann é filósofo, historiador e jornalista.
Revista Opera A Revista Opera é um veículo popular, contra-hegemônico e independente fundado em abril de 2012.

Continue lendo

Novo mapa-múndi do IBGE "inverte" representação convencional. (Foto: Reprodução)
O IBGE e os mapas
Cerimônia de celebração dos 80 anos do Dia da Vitória na Segunda Guerra Mundial sobre o fascismo. Praça Vermelha, Rússia - Moscou. (Foto: Ricardo Stuckert / PR)
80 anos depois: lembrando a derrota do fascismo ou testemunhando seu retorno?
Robert Francis Prevost, o papa Leão XIV, se dirige aos fiéis no Vaticano durante sua posse. (Foto: Mazur / cbcew.org.uk / Catholic Church England and Wales / Flickr)
Frei Betto: o legado de Francisco e os desafios do papa Leão XIV

Leia também

São Paulo (SP), 11/09/2024 - 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo no Anhembi. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Ser pobre e leitor no Brasil: um manual prático para o livro barato
Brasília (DF), 12/02/2025 - O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, durante cerimônia que celebra um ano do programa Nova Indústria Brasil e do lançamento da Missão 6: Tecnologias de Interesse para a Soberania e Defesa Nacionais, no Palácio do Planalto. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
O bestiário de José Múcio
O CEO da SpaceX, Elon Musk, durante reunião sobre exploração especial com oficiais da Força Aérea do Canadá, em 2019. (Foto: Defense Visual Information Distribution Service)
Fascista, futurista ou vigarista? As origens de Elon Musk
Três crianças empregadas como coolies em regime de escravidão moderna em Hong Kong, no final dos anos 1880. (Foto: Lai Afong / Wikimedia Commons)
Ratzel e o embrião da geopolítica: a “verdadeira China” e o futuro do mundo
Robert F. Williams recebe uma cópia do Livro Vermelho autografada por Mao Zedong, em 1 de outubro de 1966. (Foto: Meng Zhaorui / People's Literature Publishing House)
Ao centenário de Robert F. Williams, o negro armado
trump
O Brasil no labirinto de Trump
O presidente dos EUA, Donald Trump, com o ex-Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado Henry Kissinger, em maio de 2017. (Foto: White House / Shealah Craighead)
Donald Trump e a inversão da estratégia de Kissinger
pera-5
O fantástico mundo de Jessé Souza: notas sobre uma caricatura do marxismo
Uma mulher rema no lago Erhai, na cidade de Dali, província de Yunnan, China, em novembro de 2004. (Foto: Greg / Flickr)
O lago Erhai: uma história da transformação ecológica da China
palestina_al_aqsa
Guerra e religião: a influência das profecias judaicas e islâmicas no conflito Israel-Palestina