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Israel impõe um ‘fait accompli’ à Síria para condicionar a transição de acordo com seus interesses

Por meio de avanço de tropas e bombardeios contra alvos militares na Síria, Israel busca criar nova situação estratégica para negociar com o novo regime
Tom Grossman
Soldados israelenses nas proximidades da fronteira Síria-Israel. 06/06/11. (Foto: Israel Defense Forces / Wikimedia Commons)

Num espaço de poucas horas, Israel mais uma vez rompeu os limites, suas tropas atravessaram barreiras vigentes durante meio século e romperam os parâmetros estabelecidos sob a mediação da ONU desde 1974. Aproveitando a queda do regime de Bashar Al Assad na Síria, no domingo suas tropas ultrapassaram a cerca divisória de ferro nas Colinas de Golã, ocupadas desde 1967, e avançaram em direção ao sul da Síria. A perspectiva agora é incerta, pois ainda não se sabe se a ação de Israel é meramente tática ou se levará a uma ocupação permanente.

Apenas dois dias após a primeira incursão terrestre de Israel na Síria desde os pactos de cessar-fogo de 1974, suas tropas assumiram o controle de ao menos 235 quilômetros quadrados do território sírio que correspondem à chamada zona-tampão, a zona desmilitarizada entre a Síria e Israel, patrulhada por uma missão da ONU que supervisionou a trégua entre os dois países nos últimos 50 anos, após o fim da Guerra do Yom Kippur. Esse posto avançado foi acompanhado pelo maior bombardeio israelense em alvos do Exército Sírio nos últimos anos.

Em Damasco e em outras partes do país, os sírios estão comemorando a derrubada da dinastia de Al-Assad e planejando sua transição, mas o Estado judeu está atuando diante dessa frágil situação para não ficar para trás. “Israel está buscando uma posição de força para condicionar o futuro da Síria”, diz Salman Fakhreddin, analista e ex-membro do Al Marsad, um grupo de direitos humanos nas Colinas de Golã.

No cenário cambiante histórico que reina no país atualmente, o status quo e as demarcações que marcaram a área por décadas foram abruptamente destruídas, e o papel desempenhado na área pelos mais de mil soldados da UNDOF (Força de Observação de Desengajamento da ONU) parece não fazer mais sentido aos olhos de Israel. Suas tropas também tomaram o lado sírio do Monte Hermon, a grande montanha da região, com seu pico mais alto de 2.814 metros. “Isso também lhes garante o controle da estrada que liga Beirute a Damasco”, outro elemento estratégico no atual conflito regional, diz Salman.

Tudo isso segue um padrão que tem sido típico de Israel ao longo de sua história: a adoção de uma política de fait accompli (fato consumado) no terreno para impor novas regras do jogo a seus inimigos ou rivais em potencial. Esse método é aplicado por meio da força, de ameaças ou de intimidação, associados à unilateralidade, sem respeito aos parâmetros do direito internacional, como analistas apontam ocorrer agora na Síria.

Fakhreddin, na casa dos setenta anos, é morador de Majdal Shams, o maior vilarejo de Golã, que faz fronteira com a barreira metálica de separação com a Síria, onde a maioria dos moradores como ele – árabes sírios da religião drusa – já não se encontram há décadas, desde a ocupação desse altiplano por Israel na Guerra dos Seis Dias de 1967. O Estado judeu considera a região fundamental para sua segurança, tanto que anexou-a em 1981 e, desde então, vem adotando uma política de colonização na área que levou cerca de 25 mil colonos israelenses para lá.

Com as tropas israelenses atravessando a linha divisória, Fakhreddin adverte sobre “o interesse colonialista de Israel em tomar mais terras” com base em eventos passados. Os temores não surgem do nada e são agravados pela presença, na coalizão governamental, de partidos e figuras judaicas de extrema direita, supremacistas e messiânicas que defendem o projeto expansionista da “Grande Israel”.

“Está escrito que o futuro de Jerusalém é expandir-se até Damasco”, disse em outubro deste ano o ministro das Finanças israelense, Bezalel Smotrich, um dos expoentes mais extremistas do Executivo, em um documentário do canal Arte.

No entanto, após a queda de al-Assad no domingo, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu argumentou que os acordos de 1974 de separação com a Síria não estavam mais em vigor. As autoridades também alegaram que sua incursão é temporária e limitada, e que estão tentando criar uma zona de segurança. No entanto, vários especialistas – assim como a ONU e muitos Estados que condenaram esse avanço – apontam que a mudança de poder na Síria não dá a Israel a legitimidade para contornar os pactos e, portanto, viola novamente a lei internacional.

“As Forças de Defesa de Israel não interferem nos eventos que ocorrem na Síria e continuarão agindo para preservar a zona tampão e proteger o Estado de Israel”, disse o porta-voz do exército israelense em língua árabe, Avichay Adraae, na segunda-feira (9), por meio de sua conta no X. No domingo, ele também pediu aos moradores de cinco vilarejos sírios na faixa ocupada por Israel que não se locomovessem, em uma espécie de toque de recolher. “Para sua segurança, vocês devem ficar dentro de casa e não sair até segunda ordem”, disse ele.

No entanto, o argumentação de Israel de não interferência diante dos eventos que se desenrolam rapidamente na transição síria cai por terra diante da força absoluta de seu bombardeio ao país como um todo. Em apenas 48 horas, o exército reconheceu que havia realizado cerca de 480 ataques aéreos em alvos militares estratégicos na Síria para evitar que caíssem “em mãos terroristas”. Israel bombardeou regularmente postos de milícias e alvos ligados ao Irã e ao Hezbollah na Síria durante a última década, mas uma campanha de bombardeio da intensidade desta dos últimos dias não tem precedentes. Os drones e caças israelenses procuraram destruir tudo o que restou do exército de al-Assad, desde navios de guerra, bases militares, depósitos de armas, arsenais avançados ou aeronaves de sua força aérea. Isso está de acordo com o objetivo de Israel de impor sua hegemonia militar regional, enfraquecendo a capacidade militar de um possível novo estado sírio.

“Israel está destruindo todas as capacidades militares atuais e futuras da Síria”, denunciou o Observatório Sírio para os Direitos Humanos na terça-feira (10). O próprio exército israelense, por sua vez, estima que tenha destruído de 70 a 80% do equipamento estratégico restante das forças sírias.

Na terça-feira (10), depois de comparecer a uma nova audiência em seu julgamento por corrupção em Tel Aviv, Netanyahu disse que quer estabelecer relações com os poderes recém-formados na Síria, mas novamente fez advertências: “o que aconteceu com o antigo regime também acontecerá com este, se ele permitir que o Irã se restabeleça na Síria” ou “nos ataque”. Se isso acontecer, “responderemos com força”, concluiu em uma intimidadora mensagem de vídeo.

(*) Tradução de Raul Chiliani

El Salto El Salto é um meio de comunicação social autogerido, horizontal e associativo espanhol.

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