Recentemente Donald Trump fez uma ameaça bizarra na sua rede social, a Truth Social, de que aplicaria tarifas de 100% sobre as importações de qualquer país que não se comprometesse a não abandonar o dólar como moeda de reserva.
O maior pesadelo de Donald Trump reside em sua imaginação
A ameaça foi bizarra por vários motivos: primeiro, ele aparentemente imagina que os países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e seus aliados estão no processo de criação de uma moeda alternativa ao dólar.
Isso é algo muito difícil de imaginar, pois esse grupo de países tem pouco em comum além do fato de se sentirem marginalizados pelos Estados Unidos, pela Europa Ocidental e pelas instituições internacionais criadas por estes. Chegar a um acordo sobre as regras de uma moeda comum envolve uma negociação considerável e é difícil mesmo entre países que são semelhantes em suas economias, história e cultura. Pergunte aos países da zona do euro. Reunir esse grupo em uma moeda comum parece um tiro no escuro, mesmo daqui a uma ou duas décadas.
Portanto, Trump fez uma grande ameaça contra um desenvolvimento que quase certamente não acontecerá. Enfim, o novo presidente parece seguir ao máximo a expressão “é sempre bom ser cauteloso”.
Quem se importa se eles criarem sua própria moeda?
A ignorância de Trump sobre questões comerciais e financeiras realmente transparece nessa questão. Paul Krugman tem se esforçado muito para tentar educar o público sobre o significado de uma moeda de reserva.
Em primeiro lugar, não existe uma única moeda de reserva. Não há nenhuma lei que exija que todos os pagamentos internacionais sejam feitos em dólares, e muitos, de fato, não são. Se as empresas acharem mais conveniente vender em euros ou ienes, não há nada que as impeça de fazerem isso. Não está claro se Donald Trump não está ciente desse fato ou se acha que, de alguma forma, vai policiar todas as transações no mundo e exigir que sejam feitas em dólares.
Os bancos centrais também mantêm moedas de reserva para cobrir pagamentos internacionais e para respaldar sua própria moeda em casos de crises. O dólar é a moeda de reserva predominante, mas não a única. Os bancos centrais também detêm euros, libras esterlinas, ienes japoneses e até francos suíços. Talvez Trump queira monitorar as reservas de moeda dos bancos centrais e começar a aumentar o imposto sobre as importações de qualquer país em que as reservas de dólar estejam abaixo de um determinado nível. Essa parece ser uma maneira bem maluca de definir a política comercial (violaria a maioria dos nossos acordos comerciais), mas tem similaridades com a sua política econômica.
O dólar como moeda de reserva prejudica o sonho de Donald Trump de um comércio equilibrado
Na prática, o principal benefício de ter o dólar como a principal moeda de reserva do mundo seria aumentar a demanda por essa moeda e, assim, elevar seu valor em relação a outras moedas. Isso seria bom no sentido de que tornaria mais barato para as pessoas nos Estados Unidos comprar itens importados de outros países.
É provável que o efeito não seja significativo. O principal motivo para reter dólares é investir em ativos financeiros dos EUA, como ações e títulos, tanto públicos quanto privados. Enquanto os investidores acharem que os Estados Unidos têm uma economia forte e estável, eles vão querer ter dólares para poder investir aqui.
Se os Estados Unidos fossem apenas mais uma moeda de reserva, como o euro, menos dólares seriam mantidos como reservas e para a realização de transações. Isso provavelmente significaria que o dólar seria um pouco menos valorizado em relação a outras moedas, mas é improvável que a queda fosse superior a 5-10%. Esse é o tipo de movimento no dólar que vemos o tempo todo ao longo de um ou dois anos. Normalmente, não recebe muita atenção. Por exemplo, o dólar subiu mais de 5,0% em relação ao euro entre maio de 2021 e o final do ano, e parece que ninguém notou.
O mais importante para esta questão é que o fato de ser a principal moeda de reserva aumenta o valor do dólar, o que vai na direção contrária dos objetivos de Donald Trump em relação à política comercial. Donald Trump parece querer que os Estados Unidos tenham um comércio equilibrado ou até mesmo um superávit comercial.
Um dólar mais valorizado prejudica diretamente o esforço para atingir essa meta. Se o dólar estiver mais valorizado em relação a outras moedas, as importações ficarão mais baratas para os cidadãos dos Estados Unidos. Isso significa que compraremos mais produtos importados.
Se o dólar estiver mais valorizado em relação a outras moedas, isso significa que os estrangeiros terão de usar mais de sua própria moeda para comprar um dólar. Isso torna nossas exportações mais caras para eles. Se nossas exportações forem mais caras, as pessoas que moram em países estrangeiros comprarão menos exportações.
Se comprarmos mais importações e vendermos menos, nosso déficit comercial será maior. Isso significa que a busca de Donald Trump para preservar o status do dólar como a principal moeda de reserva vai totalmente contra seu objetivo de reduzir o déficit comercial.
A tarifa de 100% de Donald Trump nos prejudicará muito mais do que prejudicará a China
Os Estados Unidos são um valioso mercado de exportação para a China, mas seria necessária uma aritmética mirabolante para imaginar que a China, de alguma forma, depende do mercado dos EUA para sua prosperidade. Vale a pena, primeiramente, ter uma ideia do volume de exportações em jogo.
Os EUA importaram 322 bilhões de dólares em mercadorias da China até setembro de 2024, o que os coloca em uma rota de importação de aproximadamente 430 bilhões de dólares no ano. Em comparação, o PIB da China, em termos de poder de compra, está projetado para ser de 37,1 trilhões de dólares este ano usando uma medida de paridade de poder de compra (PPP) do PIB, enquanto seria de 18,3 trilhões dólares usando uma medida de taxa de câmbio. Isso significa que suas exportações para os EUA seriam iguais a 1,2% de seu PIB usando a medida da PPP e 2,3% usando a medida da taxa de câmbio.
A diferença entre essas duas medidas é que a medida PPP usa um determinado conjunto uniforme de preços em todos os países para todos os bens e serviços. Isso significa estabelecer que um corte de cabelo e uma operação cardíaca têm o mesmo preço nos Estados Unidos e na China, bem como em todos os outros países. Por outro lado, a medida da taxa de câmbio considera o PIB do país calculado em sua própria moeda e, em seguida, converte-o em dólares de acordo com a taxa de câmbio atual.
A grande diferença entre as duas medidas é explicada pelo fato de que muitos serviços custam muito menos na China do que nos Estados Unidos e em outros países ricos. Por exemplo, o aluguel de um apartamento ou a realização de um exame médico custaria muito menos na China do que nos Estados Unidos.
Embora para muitas finalidades, como a comparação de padrões de vida, a medida PPP seja adequada, neste caso, a medida da taxa de câmbio é provavelmente a correta. A pergunta é quanta demanda a China perderia em sua economia se fosse cortada do mercado dos EUA. Como os produtos vendidos internacionalmente provavelmente têm preços na China próximos aos preços internacionais, a perda de demanda seria maior do que a indicada pela participação no PIB medida em termos de PPP.
Isso significa que, no caso extremo de a China perder todo o seu mercado de exportação dos EUA, a demanda em sua economia cairia 2,3%, sem levar em conta qualquer efeito multiplicador. Isso está longe de ser trivial, mas não é provável que levasse a economia da China ao colapso. Em comparação, quando a bolha imobiliária entrou em colapso nos Estados Unidos em 2006-2008, a participação da construção de imóveis no PIB caiu 4,0 pontos percentuais.
Essa queda levou os EUA a uma grave recessão, mas é importante ter em mente o problema econômico que estamos descrevendo. Trata-se de um problema de demanda inadequada na economia. Isso pode ser compensado pelo fato do governo gastar mais dinheiro, o que foi feito, até certo ponto, com o pacote de estímulo promulgado pelo presidente Obama em 2008-09 e com um pacote ainda maior pelo presidente Biden em 2021-22.
Podem haver considerações políticas que atuem como obstáculos para o estímulo em larga escala na China, como há aqui, mas não há razão econômica para que a China não possa impulsionar sua economia de forma a substituir a demanda perdida do mercado de exportação dos EUA. Se o governo da China quisesse, poderia até pegar emprestado um truque da cartilha dos EUA e enviar cheques de 2.000 dólares para todos no país e colocar o nome de Donald Trump no cheque. Isso dificilmente representaria uma crise do ponto de vista da China.
O cenário parece muito pior do ponto de vista dos EUA. Os EUA pagarão substancialmente mais pelos 430 bilhões de dólares em mercadorias que compravam da China. Seria necessário analisar possíveis substitutos para essas importações em uma base setorial, mas digamos que, em média, o custo adicional para a substituição seja de 40% do preço dos produtos da China. Nesse caso, estaríamos pagando 170 bilhões de dólares a mais por ano, cerca de 1.400 dólares por família, para cobrir o custo adicional.
O motivo pelo qual isso parece pior do ponto de vista dos EUA do que do ponto de vista chinês é que a China só precisa criar uma nova fonte de demanda, o que seu governo pode fazer diretamente dando dinheiro às pessoas. Por outro lado, os Estados Unidos estão vendo o custo de vários itens aumentar, o que, na prática, significa uma escassez de oferta comparável ao que aconteceu com a crise da cadeia de suprimentos durante a pandemia.
A maioria dos governos não infligiria deliberadamente esse tipo de sofrimento à sua população sem uma boa causa, mas Donald Trump se orgulha de ser pouco ortodoxo. Essa ameaça sobre o status do dólar como moeda de reserva certamente é certamente heterodoxa.