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Ratzel e o embrião da geopolítica: a “verdadeira China” e o futuro do mundo

Ratzel enxergava a China como uma potência adormecida que, devido à sua população, cultura e resiliência, inevitavelmente deixaria sua marca no futuro do mundo
Euclides Vasconcelos
Três crianças empregadas como coolies em regime de escravidão moderna em Hong Kong, no final dos anos 1880. (Foto: Lai Afong / Wikimedia Commons)
Três crianças empregadas como coolies em regime de escravidão moderna em Hong Kong, no final dos anos 1880. (Foto: Lai Afong / Wikimedia Commons)

Um exame ainda que inicial das obras do geógrafo alemão Friedrich Ratzel nos faz questionar o senso comum de “determinismo geográfico” a ele atribuído. Se a ideia de um Ratzel determinista é facilmente desmentida pelos estudos que o tornaram famoso, o que explica a associação quase automática que entrelaça Ratzel e o determinismo? Uma breve observação do caminho de sua fama no continente europeu ajuda-nos a rastrear o início de tudo. Indiscutivelmente imbricado ao processo de formação da Alemanha moderna, o pensamento de Ratzel – apesar de seus adeptos fora do país – foi recebido com bastante desconfiança nas potências vizinhas, e entre esses o caso mais relevante é o francês, cuja escola de pensamento geopolítico nasceu em oposição ao pensamento ratzeliano e aos perigos (para a França) dos desdobramentos de suas teorias.

Foi então no contexto de oposição ao pensamento de Ratzel que surge, na França, principalmente a partir da obra “A terra e a evolução humana: uma introdução geográfica à história” (1922) do historiador Lucien Febvre (um dos fundadores da famosa Escola dos Annales), a ideia de um Ratzel “determinista”. É importante salientar a importância e antecedência de outro pensador francês nesse quesito, o geógrafo Paul Vidal de la Blache (1845-1918). Contemporâneo de Ratzel, Vidal de la Blache (de quem Lucien Febvre foi aluno) foi o mais importante crítico do geógrafo alemão e o pioneiro da “escola francesa” aqui mencionada. A extensão e importância da obra do geógrafo francês e a contenda francesa contra o pensamento de Ratzel é magistralmente descrita no clássico “A geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra” do também francês Yves Lacoste. Por agora, basta dizer que já depois da morte tanto de Ratzel quanto de la Blache, Lucien Febvre realiza seu “balanço” do engajamento intelectual da escola francesa contra Ratzel e nesse momento a escola francesa recebe o nome de “possibilista”: contra o determinismo geográfico e ambiental, a ideia de que o meio não determinava, mas sim abria possibilidades.

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Apesar da vulgarização da obra de Ratzel para assim defini-la – além do óbvio (ainda que dissimulado) engajamento político contrário ao projeto alemão por parte dos franceses –, essa é a visão que perdura até hoje em boa parte dos manuais introdutórios. Em oposição ao “determinismo” de Ratzel, o “possibilismo” de Vidal de La Blache – ainda que este último nunca tenha definido sua teoria assim. Se no fim das contas devemos a graça dessa visão a Lucien Febvre, sua disseminação a ponto de tornar-se senso comum certamente deve-se também – pelo menos no caso brasileiro –, à assimilação praticamente automática de parte considerável das ciências humanas em nosso país ao que se produz e exporta a partir da França. 

Por sua importância, a operação de construção de um Ratzel determinista será assunto de um texto à parte. Por agora, basta notar o seguinte: se o exame dos escritos de Ratzel durante sua viagem aos Estados Unidos e México já serviu para contrariar a ideia dos determinismos geográficos que lhes são atribuídos, seu estudo sobre a China desmonta esse mito por completo. 

Escrito como parte do processo de habilitação à cátedra de geografia na Universidade Politécnica de Munique, a monografia “A emigração chinesa: uma contribuição para a geografia cultural e comercial” foi o primeiro trabalho de Ratzel em moldes acadêmicos. Tendo a atenção despertada para o assunto da emigração chinesa durante sua viagem para os Estados Unidos, Ratzel decidiu então estudar esse êxodo como fenômeno global – e para isso lançou mão de uma investigação atenta que, como o próprio nome já denuncia, mostra ao leitor uma abordagem geográfica voltada principalmente para os aspectos cultural e comercial do fenômeno.

Ainda na primeira parte do escrito (disponível apenas em alemão), depois de uma minuciosa descrição e delimitação do que entende como China, Ratzel assim arremata o lugar que a geografia física ocupa na sua análise: “depois de aprendermos, nas seções anteriores, sobre a extensão, localização, clima, fertilidade e topografia do país, resta-nos agora examinar até que ponto a população chinesa sabe aproveitar essas condições naturais.” (p. 25, destaques meus) Esse exame é a razão de ser do estudo. Longe de colocar as características físicas de uma região ou país (no caso, a China) em primeiro plano, atribuindo-lhes o papel de determinância da ação e existência humanas, Ratzel atribui ao homem o arbítrio sobre o meio: o que acontece ou pode acontecer não encontra razão na geografia pura em simples, mas no que faz o ser humano diante do meio que o cerca concepção que para ser classificada como um simples determinismo geográfico carece de uma considerável vontade política daquele que assim o adjetiva.

Outra vez a questão racial

No último texto da série pudemos observar em Ratzel a expressão de uma mudança de paradigma teórico na abordagem daquilo a que chamava-se “questão racial”. Ratzel era ao mesmo tempo causa e consequência de uma transição do paradigma biológico do racismo científico (por ele combatido) para um paradigma cultural na análise dos diferentes povos não-europeus, suas relações entre si e com a Europa – além, é claro, das implicações coloniais de tais relações. Nem perto de representar uma inflexão no eurocentrismo, esse novo paradigma surgia em parte como reflexo das mudanças na conjuntura mundial, que vivia a decadência das antigas potências coloniais e a ascensão de países como Estados Unidos, Japão e da própria Alemanha ao hall de potências da nova divisão colonial do planeta.

Com o mérito de não diminuir os povos não-brancos a povos sem cultura ou inteligência, tal nova abordagem tratou de elaborar, no lugar da antiga visão, um discurso de dominação mais refinado. Se o racismo científico costumava fundamentar a dominação europeia com base na suposta superioridade de suas “raças”, a nova abordagem buscaria em aspectos culturais, intelectuais e “civilizatórios” a explicação e a justificativa para a dominação europeia sobre outros povos.

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Se os escritos das viagens de Ratzel aos Estados Unidos e ao México demonstram essa mudança de paradigma à qual nos referimos, seu estudo sobre a China chega a teorizar sobre a necessidade de abandonar de uma vez por todas o paradigma biologizante. Já no prefácio (s.p) encontramos o apelo que, não suficiente, atribui à nova conjuntura comercial do globo – leia-se, à nova redistribuição colonial do mundo – a razão de ser dessa mudança de ponto de vista:

“As questões raciais estão se tornando cada vez mais importantes à medida que o comércio com os povos ultramarinos se expande, e é hora de abandonar a ideia de que a interação entre as raças dotadas de diferentes habilidades humanas seja apenas uma luta implacável pela sobrevivência. A história das colônias chinesas é uma refutação convincente dessa visão superficial e prejudicial, e nada me agradaria mais do que se este trabalho contribuísse para uma consideração mais completa e justa das relações entre os povos.” (destaques meus)

No caso do estudo em questão, o esforço de contribuir “para uma consideração mais completa e justa” é mencionado como resposta à presença da “questão chinesa” na ordem do dia em diferentes países, já que, quando Ratzel escreveu o trabalho, era considerável a quantidade de chineses vivendo não só no Leste e Sul da Ásia – coisa que pouco preocupava, a bem da verdade –, como também nos países do Ocidente, essa sim a questão principal, que suscitava desde preocupações nas autoridades ocidentais até medidas anti-imigratórias e violência de cunho racial:

“A questão chinesa já tomou seu lugar entre os assuntos discutidos, especialmente na Inglaterra. Nessas circunstâncias, não é necessário justificar o envio deste trabalho sobre a migração e as colônias chinesas para o mundo. Já decidi elaborá-lo enquanto estava na América e, na Europa, vi-me ainda mais fortalecido pela grande incerteza que existe nos julgamentos sobre a questão chinesa e, de maneira geral, sobre questões raciais. No entanto, o trabalho cresceu muito além do esperado.” (prefácio, s.p., destaques meus)

Uma “potência em potencial”, ainda que sempre atrás do Japão, é como Ratzel enxergava a China que lhe era contemporânea. Não deixa de ser uma leitura sagaz, considerando que naquele momento a China já havia passado pelas duas guerras do ópio (droga cujo efeito devastador sobre a população aparece mais de uma vez nas suas reflexões sobre o país), encontrava-se fragmentada e sua população era traficada como escrava em um comércio de contornos globais (coisa a que Ratzel também estava atento). 

É tentando equilibrar a “incerteza nos julgamentos sobre a questão chinesa” que ele empreende um esforço considerável. Sua investigação se dividiu em duas seções: na primeira, contextualizadora, percorre a já mencionada delimitação do que entende por China e suas características demográficas – difíceis de precisar com os dados disponíveis – e destaca as características econômicas do país para finalmente chegar às causas da migração e às diferentes ondas migratórias. Na segunda seção, debruça-se sobre o fenômeno migratório propriamente dito, a que chama de “colonização” – a segunda parte do estudo chama-se, inclusive, Descrição das colônias, termo que ele usa para designar as diversas comunidades chinesas fora da China, seja no imediato entorno asiático, seja nas África ou nas Américas. 

Aqui cabe uma importante nota teórica: o colonialismo da modernidade europeia, iniciado a partir das grandes navegações, envolveu a dominação, exploração e subordinação de terras e populações em outros continentes, com o objetivo de extrair recursos naturais e humanos, para isso utilizando de todo tipo de violência, do tráfico de seres humanos escravizados ao extermínio de povos inteiros. As potências coloniais impunham leis, religiões, línguas e valores e as populações locais eram subjugadas a um sistema de controle direto e coercitivo, cujo maior exemplo que podemos dar é a partilha, colonização e escravização da África e da Ásia. Não é a esse fenômeno que Ratzel se refere quando fala das “colônias chinesas” pelo mundo. Trata-se de colônias de imigrantes, formadas por grupos que se mudam voluntariamente ou até de forma coercitiva para outro país (como é o caso do comércio dos coolies chineses, que Ratzel observa e problematiza com atenção). Nesses casos, tais “colônias” não visam dominar ou explorar o lugar para onde migram, tampouco os povos que já vivem nesse território. A “colônia” é assim descrita por ser a reunião de um mesmo povo vivendo fora de seu país de origem, que costuma se reunir numa tentativa de estabelecer redes de apoio dentro da sociedade receptora, preservando assim elementos como a língua e os costumes de sua terra natal, sem impor sua identidade. 

Apesar do uso do mesmo termo, falar em uma colônia de chineses vivendo na Inglaterra, por exemplo, não é o mesmo que dizer que por isso a Inglaterra é uma colônia da China. Pelo contrário, no momento em que Ratzel escrevia seu estudo, a China já vivia seu século das humilhações, o século em que foi colonizada pelas potências europeias. Por isso o fenômeno da emigração se intensificava de forma avassaladora, já que a população chinesa passou a emigrar em massa fugindo da pobreza e destruição que tomava conta de seu país e, ao mesmo tempo, foi submetida a um sistema de comércio internacional de trabalhadores, que eram enviados para outros países em um regime muito semelhante à escravidão nos moldes clássicos, inclusive fortemente marcado pelo caráter racial. A principal diferença entre tais “colônias”, portanto, está na natureza do poder, sendo o colonialismo baseado em violência e exploração, e as colônias de imigrantes (sejam quais forem), focadas na reunião de um mesmo povo fora de seu local de origem.

A “verdadeira China”

Ao contrário de seus escritos de viagem – feitos à medida em que percorria territórios até então desconhecidos – e dos escritos sobre os países visitados – feitos anos depois –, esse escrito de Ratzel, uma vez que ele nunca esteve na China, foi feito com base em dados recolhidos e analisados a partir de fontes variadas, muitas vezes contraditórias entre si. E é esse o principal desafio: delimitar exatamente do que se fala tanto em termos numéricos (extensão territorial, índices econômicos e demográficos, etc.) como em termos políticos (fronteiras, relações com os países vizinhos e tribos internas não submetidas à administração central, etc). À sua delimitação Ratzel chama de “verdadeira China”, a saber: 

“as oito grandes províncias, que desde a época da dinastia Mongol, com a única adição de Taiwan sob os Manchus, compreende uma área variando entre 60.100 e 97.600 milhas quadradas. A estimativa mais recente aceita geralmente é de cerca de 73.000 milhas quadradas. […] esta ‘Verdadeira China’, incluindo a Manchúria e a Mongólia interior, forma uma unidade etnográfica, linguística e culturalmente homogênea. É esta verdadeira China que devemos considerar como o núcleo da emigração.” (p. 8)

Sem sequer considerar sobre o status chinês de Taiwan (cuja importância é salientada páginas à frente), tampouco sobre sua integração ao poder central – já que tal questionamento e efetiva dualidade só passariam a existir depois da revolução de 1949 – Ratzel menciona o perigo à integridade territorial chinesa de outro separatismo, esse também conhecido do público contemporâneo: a região de Xinjiang, cuja relação com o governo central chinês é trazida à tona de tempos em tempos. 

No ano em que Ratzel publicou seu estudo (1876) parte da região estava sob controle do Estado de Yettishar (também conhecido como Kashgaria), que desde 1864 reunia sete cidades do Noroeste da China numa monarquia islâmica (no idioma uigur, Yettishar significa literalmente “Sete Cidades”). Reconhecido pelo Império Otomano como “Estado vassalo” em 1873, o Estado de Yettishar durou até 1877, quando a dinastia Qing derrotou a rebelião separatista e restaurou o domínio sobre a região. Observando o perigo de um desmembramento permanente do território chinês, uma vez que àquela altura o status quo ainda era o de um Estado muçulmano autodeclarado controlando parte importante do noroeste chinês, Ratzel escreveu:

“As fronteiras permanecerão indefinidas enquanto houver incerteza se a China reintegrará as partes desintegradas ao seu território ou por astúcia as deixará nas mãos do usurpador muçulmano. De fato, a política de extrema cautela da China permitiu que certas tribos montanhesas selvagens permanecessem praticamente independentes, embora essas mesmas tribos sejam há muito tempo um obstáculo à administração e a qualquer desenvolvimento ordenado.” (p. 8)

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Tanto a formação histórica da China quanto sua relação com o que chama de “países vassalos” são destrinchadas já nas primeiras páginas seu escrito, e mais de uma vez Ratzel destaca o que chama de “astúcia” chinesa: a decisão de manter com as nações vizinhas ou mesmo com as diferentes tribos internas uma política não de submissão violenta, mas uma relação em uma espécie de “via mão dupla”, onde se permitia a esses povos (em medidas variadas) a preservação de suas  identidades cultural, linguística, etc., em troca de uma mera declaração formal de submissão e do estabelecimento de relações econômicas, essas sim as mais importantes para o poder central chinês. Era o caso da península coreana, formalmente tributária ao mesmo tempo da China e do Japão: 

“A China sempre esteve e ainda está em relações incertas com seus vizinhos e tribos vizinhas, porque sua política externa foi mais baseada em astúcia do que em força, e por isso uma verdadeira subjugação política nunca foi realizada. Eles preferiam obter reconhecimentos formais de submissão, mas quase sempre evitavam dar os passos práticos para implementar esses reconhecimentos. É significativo para essa incerteza que ainda hoje a Coreia e as Ilhas Ryūkyū se reconhecem tributários tanto da China quanto do Japão.” (p. 7)

O tema da relação entre a China e os diversos Estados e povos em seu entorno imediato aparece em detalhes ao longo da monografia, e na segunda parte do escrito cada uma das regiões recebe uma atenção específica, da Mongólia e Manchúria a todo o Sudeste Asiático e Japão. Nessa empreitada, Ratzel discorre com mais detalhes sobre Taiwan, ora referindo-se a ela como Formosa (nome dado pelos portugueses no século XVI), ora chamando-a de Taiwan. Nos importa, nesse caso, as considerações estratégicas que Ratzel faz sobre a ilha, salientando sua importância defensiva para o território continental:

“Formosa possui a localização mais importante para a China entre todas as ilhas do mar Índico e do mar da China Meridional. É a única grande ilha que está situada na costa chinesa e, portanto, forma uma barreira natural.

Ela deve ser parte de seu domínio, uma vez que em qualquer outro lugar representaria uma ameaça constante ao território principal, que está visível diante dela. É possível ver as montanhas de Formosa da costa de Fuzhou, e o braço de mar que a separa, o estreito de Bashi, é largo o suficiente para ser considerado um dos principais corredores marítimos. Ele conecta o mar do Sul com o mar da China Oriental de forma privilegiada e, portanto, não é apenas o caminho adequado para o comércio entre o sul e o norte da China, mas também para todo o comércio entre os países e ilhas ao norte e ao sul, de maneira geral.” (p. 120, destaques meus)

Uma consideração como essa feita a quase 150 anos atrás consegue, ao salientar a importância de Taiwan para a China, adiantar a importância estratégica que Taiwan viria a ter contra a China um século depois, quando as forças do Partido Comunista venceram a guerra civil chinesa e o governo de Chiang Kai-shek fugiu para Taiwan, configurando diplomaticamente a existência de “duas Chinas”: a China continental (oficialmente República Popular da China) e Taiwan (República da China). Desde então a enorme ilha passou a cumprir papel central para a estratégia estadunidense de “contenção do comunismo” na Ásia durante a Guerra Fria, papel esse que o general Douglas MacArthur resumiu extraordinariamente bem ao descrever a ilha como “um porta-aviões gigantesco e inafundável no Pacífico”. Dessa forma, a barreira natural elementar para defender o território continental passou a ser um trampolim perfeito para pressionar permanentemente a nova nação socialista com a ameaça, sempre sincera, de agressão militar.

Há uma certa ironia na coincidência de, sendo Taiwan reconhecida internacionalmente como a “verdadeira China” até 1971, Ratzel também usar da expressão “verdadeira China” para descrever a China de sua época, a China das “oito grandes províncias, desde a época da dinastia Mongol, com a única adição de Taiwan sob os Manchus”; uma China que precisa de Taiwan sob seu domínio, “uma vez que em qualquer outro lugar representaria uma ameaça constante ao território principal”. Ratzel, é claro, não sonhou em considerar uma revolução socialista na milenar nação camponesa e se isso lhe fosse contemporâneo, suas considerações certamente teriam algo mais a dizer –, mas a sinceridade e a qualidade de sua análise ajuda-nos a pensar a quantas andam, ainda hoje, as questões em aberto para a verdadeira China.

“No movimento reside vida e progresso”

Quem já teve contato com comentários sobre a obra de Ratzel ou algum contato direto com as formulações pelas quais ficou famoso especialmente sua Antropogeografia e Geografia Política , certamente tem alguma ciência do organicismo que caracteriza sua teoria. Ratzel traçou um paralelo entre o Estado e um organismo vivo que, como tal, cresce, se desenvolve (ou se expande) e entra em decadência e morre. Segundo essa lógica, o território é para o Estado o que a terra é para as plantas: um meio indispensável para o seu desenvolvimento e expansão. Concepções como essa permeiam toda a sua obra e, apesar de caracterizar seu corpus teórico mais maduro, aparecem de forma inicial já nos seus estudos de juventude, muito em decorrência de suas viagens e observações empíricas. Nos Estados Unidos, diante da variedade de comunidades de imigrantes e seu papel na construção do jovem país, Ratzel observou de perto a importância e potencialidade das ondas migratórias para o desenvolvimento das sociedades, sejam elas ondas migratórias internas ou vindas de terras estrangeiras, dinâmica que ele resumiu em axioma já na introdução de seu estudo sobre a emigração chinesa: “No movimento reside, tanto para os povos quanto para qualquer organismo, vida e progresso.” (s.p.)

O fator demográfico assume, então, papel central em um pensamento geográfico que a todo o tempo articula os povos e o território em razão do Estado, colocando aqueles como variável fundamental do desenvolvimento deste. A função dessa articulação, nesse caso específico, é pensada de maneira extra-continental, como uma articulação entre a Europa e a China, colocando a gigantesca massa populacional do país asiático a serviço de um “desenvolvimento mútuo”, que como esperado tinha o continente europeu em sua dianteira. Diz Ratzel na já citada introdução (s.p.):

“Não deve, a partir desse ponto de vista, a fusão da Europa com a China parecer como um fato de maior importância para o nosso tempo e o futuro? De um lado, a Europa com sua população ativa e inteligente, com a posse de todos os frutos da ciência e da experiência prática adquiridos até agora; do outro, a China com suas massas organizadas de forma robusta, trabalhadoras, perseverantes, cuja população ainda supera em muito a de toda a Europa. Que outros povos ou complexos de povos do mundo poderiam antecipar uma interação igualmente frutífera? É sabido que, mesmo que esses dois grandes grupos de povos já estejam começando a interagir, e mesmo que a China não se mova tão rapidamente em direção à modernização como o já altamente desenvolvido Japão, com seu peso populacional cada progresso individual significará muito mais.”

Mais à frente esse projeto extra-continental é retomado, desta vez com um terceiro envolvido: o continente africano. Ratzel resgata, então, uma proposta estruturada em espécie de relação triangular o uso de trabalhadores chineses para a colonização europeia do continente africano:

“No entanto, há espaço suficiente no mundo onde o chinês pode se servir melhor a si mesmo e aos interesses gerais da cultura do que com as massas dos antigos povos europeus? A ideia de colonizar a África com chineses, sugerida por Francis Galton em uma carta para Sir Bartle Frere (Times, 6 de junho de 1873), foi certamente discutida com razões consideráveis. E de qualquer forma, além dos europeus e dos norte-americanos, nenhum povo na Terra tem tanto chamado para extrair as terras férteis de natureza bruta como os chineses.” (p. 266)

A todo tempo a questão colonial dá o ar de sua graça. Com o tempo, acompanhando o próprio desenvolvimento histórico da época, ela se torna tema de mais e mais atenção de sua parte. Nunca é demais ressaltar que Ratzel é contemporâneo do esforço das potências emergentes por uma nova partilha colonial no mundo, que toma forma menos de dez anos depois desse escrito na Conferência de Berlim (1884-1885), capitaneada justamente pela Alemanha que até então não possuía nenhuma colônia formal no continente

Essa preocupação aparece em outros momentos do escrito, sempre ressaltando o enorme potencial demográfico chinês em termos também comerciais, já que além de mão de obra para o esforço colonizador europeu, a população chinesa representava um mercado de milhões de consumidores para a pujante indústria europeia:

“É justo esperar grandes e felizes resultados da união dos povos que carregam a cultura ocidental e este reservatório incansável de trabalhadores diligentes, que moldaram o mundo. Este povo parcimonioso, sóbrio, paciente, incansável, perspicaz, que tão habilmente cultiva o solo, tão competente na aquisição de riquezas necessárias, não só está destinado a oferecer um grande mercado para nossa indústria, mas também será uma fonte inesgotável de riquezas para os esforços colonizadores dos ingleses e norte-americanos, que ganharam uma expansão colossal.” (p. 267, destaques meus)

Mas para além de salientar a utilidade do trabalho chinês submetido aos planos europeus, Ratzel também analisa as ondas migratórias chinesas para as regiões em seu entorno imediato e seu papel na formação de uma “esfera de influência chinesa”. É o caso do Reino do Camboja, por exemplo, que, “por meio de suas negociações comerciais com a Indochina, […] foi mais integrado à esfera de influência chinesa do que sua localização geográfica indicaria” (p. 155). A própria Indochina, nesse caso, cumpre o papel de “posto avançado chinês”, dada a enorme presença de chineses emigrados e a influência cultural chinesa sobre a região.

A despeito do grande detalhamento das comunidades nas regiões analisadas por Ratzel, basta-nos observar como desde já o fator demográfico e suas implicações figuram em seu pensamento como o principal elemento que, colocado na mesma equação que o solo, o terreno propriamente dito, dá ao Estado vantagens ou desvantagens impossíveis de serem desconsideradas. No caso chinês, seu alto índice demográfico é sua principal vantagem já que, para além de representar uma quase infinita disponibilidade de mão de obra, representa também a possibilidade de estender seu raio de influência e ação por meio das comunidades fora do país mas ainda indiscutivelmente ligados à terra natal, mesmo que apenas de maneira subjetiva e sentimental. 

Essa vantagem, ainda que vista por Ratzel como uma ferramenta a serviço dos planos da “cultura ocidental”, não lhe passa despercebida também como uma ameaça à Europa – ainda que, nesse caso, como uma ameaça adormecida. A destruição sofrida pela China nas guerras do ópio e a verdadeira epidemia do consumo da droga entre o povo chinês figuram para Ratzel como um amortecimento de seu potencial milenar, com risco de deixar sequelas permanentes. O ópio aparece várias vezes ao longo do escrito e ele não deixa de salientar que ele “pode ter um impacto profundo em todo o futuro do povo, que até agora tem resistido a todas as tempestades” (p. 40) – chegando mesmo a comparar com o efeito do consumo de álcool nos Estados Unidos:

“Não é necessário enfatizar o perigo deste vício, especialmente em um povo como o chinês, cujas principais virtudes são a paciência, a moderação e a diligência. Estas são também as bases de seu sucesso econômico. O consumo de ópio mina precisamente estas bases. Mesmo em um povo tão voluntarioso e enérgico como os norte-americanos, o vício do álcool causa destruição considerável, tanto que o álcool é considerado um flagelo para a nação. Como uma droga como o ópio afetará as naturezas menos resistentes dos chineses?” (p. 41)

Para Ratzel, o principal risco do alastramento do consumo do ópio era justamente a possibilidade que este afetasse o potencial demográfico chinês, o que acabou acontecendo direta ou indiretamente. A mortalidade aumentou e a expectativa de vida, bem como a taxa de fertilidade e a produtividade do trabalho, caíram de maneira exponencial. Dada a deterioração econômica, política e social do país, a gigantesca insatisfação levou também a uma série de rebeliões contra a dinastia Qing, incluindo a famosa Rebelião Taiping (1850-1864), na qual morreram algo entre 20 e 30 milhões de chineses. Embora nem todos esses números sejam uma decorrência direta do consumo de ópio, certamente a penetração europeia sobre a China (da qual a epidemia de ópio decorria) era o principal fator de desagregação naquele momento. Falando sobre a possibilidade de reerguimento da China, Ratzel enxerga a presença europeia de tal forma arraigada ali que nem mesmo uma nova liderança chinesa  “não poderia proteger a China da influência corrosiva da cultura ocidental, que busca entrar de mil maneiras diferentes” (p. 53). 

Nem mesmo a ânsia de libertação dessa “influência corrosiva” lhe passa despercebida. Pelo contrário, um choque entre as potências estrangeiras sobre a China e o povo chinês em rebelião é dado como certo:

“um governante forte e enérgico provavelmente faria mais mal do que bem ao país, pois ele o manteria em seu estado imperial, tentando finalmente colocar um limite às invasões dos bárbaros europeus, e o golpe que inevitavelmente viria poderia derrubar a antiga estrutura em um único momento, enquanto o atual sistema de desvio e evasão pode pelo menos sustentá-lo por mais algum tempo. Se, por outro lado, um estadista favorável aos estrangeiros seria possível nas atuais circunstâncias, é uma questão que pode quase certamente ser respondida negativamente. 

O exemplo do Japão não é relevante aqui, pois o Japão sempre teve, em suas relações com o exterior, uma posição oposta à da China. É mais provável que a China continue a navegar da mesma forma que até hoje por algum tempo, mas que, a longo prazo, um confronto com as potências estrangeiras, mais severo do que todos os anteriores, será inevitável.” (p. 54, destaques meus)

Esse “sistema de desvio e evasão” que menciona nada mais é que o escoamento populacional na forma das ondas migratórias, que destinava para fora parte daquele imenso potencial populacional que, se mantido dentro de suas fronteiras, hora ou outra viria a explodir em uma insatisfação invencível, como uma panela de pressão cuja ruptura colocaria abaixo a “antiga estrutura”. E aqui está mais uma das lições orgânicas de Ratzel: uma vez que as fronteiras tornam-se estreitas demais para o seu potencial, a população de um país se verá impelida a migrar em busca de novas circunstâncias.

“No entanto, este país, por maior que seja, permanece inalterável dentro de suas fronteiras, como definido por sua natureza e geografia, enquanto sua população está constantemente em crescimento. Daí resulta que, em algum momento, essas fronteiras se tornarão estreitas demais e parte da população se verá obrigada a migrar. Uma população dotada de mobilidade, ambição e iniciativa comercial dos chineses não diminuirá até que seu país esteja tão cheio quanto as circunstâncias permitirem, mas fluirá, impulsionada por sua própria natureza, como um rio transbordante além do leito do vaso.” (p. 254, destaques meus)

Aquele grande colosso adormecido e submetido que era a China do século XIX, embora em uma rota de colisão com as potências que a dominavam, não era ainda uma ameaça com a qual se preocupar, e para Ratzel não havia a necessidade de dissimular isso:

“[sobre os chineses,] apesar da massa que os suporta, temos pouco medo de suas próprias conquistas. Enquanto um europeu puder forçar centenas de chineses a se dissolver, não temos medo de uma inundação mongol. Enquanto os chineses mostrarem tão pouca capacidade de serem senhores, de comandar, de exigir respeito, seus quatrocentos milhões de súditos e pobres permanecerão do nosso lado.” (p. 265, destaques meus)

Se antes dissemos que Ratzel não poderia ter considerado a possibilidade da revolução socialista que quase um século depois sacudiria a China de cima abaixo, agora vemos que pelo menos a perspectiva da revolução social era para ele algo na ordem do dia. Não que tenha sido essa uma previsão do futuro, trata-se de uma constatação analítica: dado o grau e a intensidade do domínio europeu sobre a gigante nação asiática, não havia outra forma de pôr um fim absoluto naquela penitência que não um levantamento das quatrocentas milhões de almas submetidas à dominação, ou seja, uma revolução. Mas tratava-se então de uma reflexão hipotética. Naquele momento, a atenção de Ratzel estava inteiramente voltada para a inundação de chineses mundo afora, intensificada pela falta de perspectivas em seu próprio país. Nesse escopo foi estruturado todo um sistema internacional de “translado” de trabalhadores chineses, os coolies, que logo assumiu os contornos de um novo tráfico de escravos, em partes substituindo a lacuna deixada pelo declínio do tráfico transatlântico de africanos escravizados especialmente nas colônias britâncias. A isso Ratzel também não deixou escapar suas reflexões.

Um novo comércio de seres humanos

Em meados do século XIX mais especificamente por volta de 1830 –, em resposta à abolição da escravidão negra nas colônias europeias e à grande demanda por mão de obra barata (ou escravizada sob novas formas), um novo sistema de tráfico humano começou a se estruturar: o comércio de coolies. Os coolies eram trabalhadores asiáticos, especialmente chineses e indianos, transportados para fora de seus países de origem e empregados em larga escala em grandes plantações, na construção de ferrovias, mineração e outras atividades de grande esforço físico, não por coincidência atividades onde até então era usada a mão de obra negra escravizada.

Esses trabalhadores eram submetidos a regimes de trabalho que, ainda que formalmente regulamentados por contrato, se assemelhavam às condições de trabalho forçado ou de escravidão por dívida, já que os contratos prometiam transporte, alimentação e salário mas, na prática, os coolies enfrentavam péssimas condições de vida, abusos físicos, baixos salários e a dificuldade ou total impossibilidade de retornar aos seus países de origem. Estima-se que durante quase um século de vigência desse sistema (que durou até as primeiras décadas do século XX) algo entre 8 a 10 milhões de pessoas tenham sido “recrutadas” e enviadas para regiões que antes dependiam fortemente do trabalho escravizado africano, como o Caribe, a América Latina (particularmente Cuba e Peru) e o sul dos Estados Unidos, além de plantações no Sudeste Asiático e na África. Apenas para fins de comparação numérica, hoje estima-se que em quatro séculos o sistema internacional de tráfico de africanos tenha condenado cerca de 12,5 milhões de pessoas ao regime de trabalho escravo fora da África.

Como se imagina, as empresas que controlavam a captura e o transporte dos coolies eram em sua esmagadora maioria de origem europeia embora também houvesse envolvimento de comerciantes locais na Ásia e de intermediários de outras regiões –, e movimentavam fortunas nas bolsas dos principais países capitalistas, da mesma forma que suas irmãs que décadas antes administravam o tráfico de africanos escravizados. Também isso não passou despercebido à análise de Ratzel. À medida em que ele analisa as “colônias” chinesas fora da Ásia, esse sistema de “fornecimento” de trabalhadores asiáticos aparece em detalhes no seu estudo, inclusive comparando-o ao comércio de escravos:

“Para as regiões que ficam mais a leste do que as partes do arquipélago até agora consideradas, como Polinésia e América, as ondas de emigração chinesa começaram a fluir apenas nas últimas décadas, e a emigração que ocorreu para esses lugares foi, em grande parte, involuntária, podendo até ser comparada ao comércio de escravos, de modo que não se pode falar realmente de assentamento aqui. Para esses países distantes, os chineses foram atraídos menos por iniciativa própria e mais pela demanda externa. A dizimação da população nativa, a insuficiência da imigração europeia e, finalmente, a abolição ou restrição da escravidão fizeram com que os olhares se voltassem para os antigos países asiáticos, cuja superpopulação parecia, em comparação com os países escassamente povoados do Pacífico ocidental, como uma força abundante de mão-de-obra esperando para ser canalizada.” (p. 229, destaques meus)

O entrelaçamento entre essa nova escravidão modernizada também fortemente marcada pela questão racial, já que os povos “amarelos” eram considerados racialmente inferiores e o desenvolvimento do capitalismo em sua etapa imperialista é também destacado, com sua intensificação atribuída à descoberta das famosas minas de ouro na Califórnia:

“[…] o impulso principal foi a descoberta das minas de ouro da Califórnia. Isso trouxe, em poucos anos, 25.000 chineses (segundo a estimativa, embora não muito precisa, de 1852) às costas da nova terra do ouro.

O transporte de chineses para a Califórnia, assim como mais tarde para a Austrália, foi inicialmente uma especulação dos proprietários de navios, que buscavam passageiros para completar rapidamente suas cargas.” (p. 230)

No caso da Califórnia, foi tão rápida a inundação de chineses que dizia-se, segundo o próprio Ratzel pôde ouvir em sua passagem pelo estado anos antes, que sua capital, São Francisco, “será um dia uma cidade predominantemente chinesa” (p. 230). Esse tipo de oferta de mão-de-obra barata ou escravizada não poderia deixar de despertar a insatisfação entre os trabalhadores já estabelecidos nos Estados Unidos, que viam pressionados para baixo os seus salários e as condições de trabalho diante daquela “nova concorrência”:

“[…] já há uma grande classe de americanos e, ainda mais, de imigrantes europeus que veem nos chineses um concorrente que odeiam e temem. Esta é a classe dos proletários, que, mesmo em um lugar tão jovem e rico como a Califórnia, não está ausente. Líderes desta classe são políticos que dependem do apoio popular e pessoas temerosas que veem na afluência dos chineses um novo conflito racial.” (p. 234, destaques meus)

Trata-se de um exemplo perfeito para ilustrar como, tanto antes como agora, a imigração é usada para, ao mesmo tempo, obter nova força de trabalho a baixíssimo custo, baratear o custo da mão-de-obra já disponível no país e estimular entre os trabalhadores o ódio racial e o sentimento anti-imigração, fortemente reforçado pela efetiva piora das condições de vida dos trabalhadores já estabelecidos no país. Ratzel chega a mencionar o quão positiva é a adoção desse tipo de regime de trabalho para  a burguesia e ainda argumenta contra a discriminação anti-imigração chinesa não em favor dos chineses, mas contra as demandas por melhores condições de trabalho dos proletários estadunidenses. Assim ele equaciona a questão e a sua solução:

“A posição que os chineses ocupam no extremo oeste da América do Norte pode ser resumida assim: a eles são atribuídas aquelas funções do organismo econômico que exigem menos iniciativa, mas também oferecem menos recompensas rápidas, e por isso demandam maior paciência e frugalidade. […] Como serventes, trabalhadores da terra, cozinheiros, lavadeiros, passadores de roupa, fabricantes de charutos, jardineiros e em trabalhos mecânicos semelhantes de menor complexidade, eles superam os europeus e americanos não apenas em número, mas também em desempenho. São justamente essas funções para as quais, em um país tão vasto, escassamente povoado e rico, e em uma sociedade tão jovem, se encontra a menor disposição. Não há dúvida de que os empreiteiros de ferrovias, construção de estradas e represas, grandes industriais, a classe possuidora que não se serve a si mesma, enfim, todos que necessitam de mão-de-obra barata e eficiente, veem a imigração chinesa como uma bênção para o país. […] A oposição do populacho branco à migração amarela é atualmente nada mais que ‘inveja de trabalho’. Ela só poderia ter justificativa se de alguma forma os oponentes se comprometessem a trabalhar tão barata e diligentemente quanto os candidatos daquele lado, cuja suplantação eles atacam com palavras altissonantes.” (p. 233-235)

Mas se nos Estados Unidos ele observa que a imigração chinesa é marcada bem mais pelos conflitos com o trabalho assalariado estadunidense, em outros países do continente americano a maior marca do trabalho coolie é a sujeição e a escravização de fato. Esse é o caso da América Latina, com grande destaque para as colônias e ex-colônias espanholas na região, especialmente Cuba e o Peru, onde “em vez da livre imigração, surge o tráfico de escravos de uma forma que se assemelha ao tráfico humano, substituindo o trabalho livre pelo trabalho forçado com todas as atrocidades associadas à escravidão”. (p. 238, destaques meus)

O método de captura, tráfico e vinculação definitiva desses trabalhadores ao local para onde foram destinados é descrita de maneira precisa em uma passagem longa mas suficientemente relevante para ser reproduzida aqui:

“Sobre a grande massa de emigrantes, muitos estão vinculados, antes mesmo de chegarem ao seu destino, por algum tipo de contrato que geralmente fixa o pagamento das despesas de viagem. O verdadeiro comércio de coolies começou em Macau em 1848, embora já onze anos antes coolies indianos tivessem sido enviados para as Índias Ocidentais britânicas. Inicialmente, era um simples comércio de escravos sem qualquer regulamentação. Mesmo atualmente, ele não é muito melhor, sendo um empreendimento extremamente lucrativo de importação de emigrantes, em sua maioria involuntários.

Apesar de todas as medidas recentes aparentemente tomadas em favor dos coolies, no fundo, continua sendo um comércio de escravos e, de fato, um comércio de escravos apenas ligeiramente mitigado. Não faz muita diferença que se venda um escravo para a vida toda, enquanto o coolie é vendido apenas por oito anos.

Nos parágrafos seguintes, veremos os esforços necessários para assegurar aos coolies em Cuba e no Peru sua liberdade contratual após oito anos. Muitos, apesar dos contratos, envelheceram e morreram na escravidão. O comércio de escravos começa já com o recrutamento dos coolies. No processo contra os amotinados do navio francês de coolies La Nouvelle-Pénélope’, os recrutas declararam que 60% de todos os coolies haviam emigrado contra sua vontade, e é conhecido que as autoridades chinesas prestavam assistência cúmplice nessa captura de pessoas, em vez de se oporem a ela. Os recrutadores são bandidos da pior espécie, que não hesitam em usar todos os meios para ganhar a recompensa que lhes é prometida contratualmente por cada coolie que entregam. Se um coolie ousa declarar, perante essas gangues de recrutadores, que foi forçado a emigrar, ele é enviado à próxima autoridade para ser levado de volta à sua terra natal, como exige a lei. Mas essa autoridade, muitas vezes subornada pelo comerciante, frequentemente o entrega ao navio, onde não há mais escapatória. 

[…] Dennys considera três classes de emigrantes coolies. Segundo ele, eles são: prisioneiros, que são feitos durante os frequentes conflitos em Cantão e vendidos por seus vencedores conforme o costume antigo; habitantes de vilarejos raptados à força; ou, finalmente, aqueles que se endividaram em jogos de azar e foram vendidos. Muitos são transportados por [meio do] engano, ao serem informados de que precisam passar por exames médicos e policiais em troca de um pagamento generoso, ocupando o lugar de um emigrante que deseja escapar dessa inspeção. Naturalmente, ninguém os substitui e qualquer protesto é inútil assim que estão a bordo.” (p. 65-66, destaques meus)

Cuba e o Peru são, nesse contexto, os países onde o emprego de trabalho escravo coolie atingia os maiores picos de violência e onde mais se assemelhava à escravidão negra. No caso do Peru, o país já havia declarado independência décadas antes e a escravidão fora abolida formalmente há cerca de uma década, mas ainda assim era lá que a maioria dos coolies tinha “uma vida tão miserável quanto qualquer escravo negro”, a ponto de serem “marcados a ferro quente e espancados até a morte”. (p. 245) Também em Cuba, ainda uma colônia europeia onde a escravidão não havia sido abolida, os coolies eram colocados lado a lado com os escravos negros, com eles sofriam os mesmos castigos e como destacado por Ratzel junto a eles lutavam:

“A maior parte deles está empregada nas plantações de açúcar, onde, embora não possuam a mesma força física que os negros, se destacam pela maior inteligência, o que os torna aptos para trabalhos que exigem mais habilidades do que força bruta. Por exemplo, muitos são empregados nas refinarias de açúcar. No entanto, sua introdução é geralmente vista como pouco benéfica para o sistema escravista. Os chineses não aceitam passivamente o tratamento desumano como os negros, exigindo um grau de liberdade que dificilmente poderia ser concedido enquanto escravos e trabalhadores contratados coexistirem. Muitos escapam de sua condição miserável por meio do suicídio, e outros, com maior frequência, pela fuga. Diz-se que milhares deles se juntaram aos bandos revolucionários que operavam nas montanhas do leste, alimentando a resistência contra os governantes espanhóis.” (p. 241, destaques meus)

Ratzel, no fim das contas, ainda que olhe para o potencial demográfico chinês como um grande reservatório de mão-de-obra que pode ser utilizado para os desígnios europeus (vide o projeto de colonizar a África através de trabalhadores chineses), descreve sempre em tom de denúncia as violências a que os coolies eram submetidos, bem como o próprio sistema de captura e comércio desses trabalhadores. Ele logo se dá conta que, mais que um “excesso”, as atrocidades daquele sistema eram sua conclusão lógica, já que recém saídas da escravidão (ou ainda contemporâneas a esse regime de trabalho), as colônias e ex-colônias abastecidas de coolies não precisavam de outra coisa que não novos escravos. Da mesma forma, o sistema de tráfico transatlântico de africanos, agora em declínio, tinha nos coolies sua nova mercadoria. Nas palavras do próprio Ratzel, “logo se convence que, em uma sociedade escravista, apesar da lei e do contrato, o coolie inevitavelmente deve ser degradado à condição de escravo.” (p. 243)

O horror ao que chama de “atrocidades” da condição de escravidão dos trabalhadores chineses, não necessariamente dissimulado, é parte daquilo que já vimos: o esforço por “abandonar a ideia de que a interação entre as raças dotadas de diferentes habilidades humanas seja apenas uma luta implacável pela sobrevivência”, como diz em seu prefácio. Trata-se do esforço de sua mudança de paradigma, que não considera mais tolerável uma instituição como a escravidão racial mas considera razoável e legítima uma “aliança” entre o brilho da mentalidade europeia e o trabalho chinês em nome da colonização da África. Esse discurso de dominação mais refinado, que lentamente passaria a substituir o paradigma biologizante da questão racial, anos depois foi resumido por Frantz Fanon de maneira sucinta: “Nesse estágio o racismo não ousa mais apresentar-se sem disfarce.” 

* * *

Mais impressionantes que o nível de detalhamento com que ele analisa a China e a emigração chinesa são as considerações que Ratzel traça sobre o futuro do país. Tendo considerado a inevitabilidade de um futuro “confronto com as potências estrangeiras, mais severo do que todos os anteriores” (ainda que improvável naquele momento) Ratzel não deixa de salientar o verdadeiro barril de pólvora sobre o qual a Europa se banqueteava. Ele é taxativo ao alertar sobre os riscos de subestimação da China:

“Independentemente da opinião que se possa ter sobre a permanência do poder chinês, deve-se sempre distinguir entre o julgamento sobre o Estado chinês e o julgamento sobre o povo chinês. O Estado pode sucumbir, mas 400 ou 500 milhões de pessoas deixarão suas marcas no mundo de qualquer maneira.” (p. 264, destaques meus)

Passagens como essa, lidas à luz da China de hoje 150 anos e uma revolução socialista depois soam quase premonitórias, já que anteviram desdobramentos que ainda estavam longe de acontecer. Ratzel enxergava a China como uma potência adormecida marcada pela opressão das potências estrangeiras, mas que, devido à sua vasta população, cultura milenar e resiliência, inevitavelmente deixaria sua marca no futuro do mundo. Para ele, os milhões de habitantes da China de sua época eram não apenas força de trabalho, mas também uma fonte de poder que, quando mobilizada, poderia reverter a condição de submissão do país e reposicioná-lo no cenário internacional. Isso é muito bem resumido quando ele diz que, diante do poder estrangeiro, “os chineses têm apenas suas massas como vantagem, e essas armas, como vimos, ainda não foram usadas” (p. 262). 

Suas projeções servem não apenas para um retrato de sua obra e sua época, mas principalmente como um lembrete de que a correta compreensão das dinâmicas do presente permite delinear cenários futuros com maior ou menor grau de precisão, além de traçar as “grandes questões” que sobrevivem ao imediatismo das análises de curto prazo. É o caso das considerações de Ratzel sobre Xinjiang ou Taiwan, por exemplo, que ainda hoje são de importância central para a China e para os projetos de cerco e desestabilização do dragão asiático. O mesmo vale para a centralidade do fator demográfico, que em tempos de catástrofes climáticas se mostra um peso ainda maior na balança do que era já no tempo de Ratzel. De que forma as ondas migratórias que já acontecem pelo planeta em razão de mudanças de temperatura e aumento do nível do mar, por exemplo, definirão a ação dos Estados ou sua inação daqui em diante?

Em questões como essas a obra de Ratzel certamente tem algo a contribuir, mas antes precisa ser colocada do avesso: um autor muito falado mas pouquíssimo lido, o que há de útil em Ratzel precisa ser destrinchado e colocado a serviço de um projeto político diferente do seu.

(*) Euclides Vasconcelos é professor de história e geografia. Estuda e escreve sobre os temas da guerra e da política. Organizou e prefaciou a publicação dos escritos militares de Friedrich Engels (Editora Baioneta) e atualmente trabalha nos escritos de Stálin, Trótski e Blanqui. Nascido e criado em Recife, é um apaixonado pelo Brasil.

 

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