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Papas também renunciam

Com a internação do Papa Francisco, inicia-se agora, nos bastidores da Igreja, uma sutil campanha eleitoral: a da eleição de seu sucessor

Frei Betto
Papa Francisco assina livro de visitantes do Palácio de Belém, em Portugal, durante o Dia Mundial da Juventude de 2023. (Foto: Agência Lusa / Youtube / Wikimedia Commons)
Papa Francisco assina livro de visitantes do Palácio de Belém, em Portugal, durante o Dia Mundial da Juventude de 2023. (Foto: Agência Lusa / Youtube / Wikimedia Commons)

“O papa não adoece até que morra”, diz o antigo provérbio romano. João Paulo II, homem midiático, não temeu expor–se enfermo aos olhos do mundo. Bento XVI deu um testemunho de humildade ao admitir as limitações de seu precário estado de saúde e anunciar sua renúncia, em 28 de fevereiro de 2013. Nada impede que Francisco venha a adotar a mesma atitude.

Na história da Igreja, cinco papas renunciaram ao ministério petrino: Bento IX (1º de maio de 1045), Gregório VI (20 de dezembro de 1046), Celestino V (13 de dezembro de 1294), Gregório XII (4 de julho de 1415) e Bento XVI.

Sagrado papa aos 20 anos, em 1032, Bento IX não primava pela ética e muito menos pela moral. Sua vida era um escândalo para a Igreja. O povo romano expulsou-o da cidade em 1044. No ano seguinte, voltou a ocupar o trono de Pedro e, meses depois, renunciou. Retornou ao papado em 1047, do qual foi deposto definitivamente no mesmo ano.

João Graciano, padrinho de Bento IX, pagou considerável quantia de dinheiro para que o afilhado lhe cedesse o lugar. Eleito papa em maio de 1045, adotou o nome de Gregório VI e governou a Igreja até dezembro de 1046, quando o afilhado o derrubou sob acusação de simonia.

Morto Nicolau IV, em 1292, cardeais italianos e franceses fizeram do conclave arena de disputas pelo poder, como bem demonstra o filme “Conclave”, movidos mais por interesses políticos que pelas luzes do Espírito Santo. Após dois anos e três meses de impasse na eleição do novo papa, Pedro Morrone, eremita italiano, de sua caverna nas montanhas enviou carta ao conclave instigando-o a não abusar da paciência divina. 

Os cardeais viram na carta um sinal de Deus e decidiram fazer do monge o novo chefe da Igreja. Pedro Morrone relutou, não queria abandonar sua vida de pobreza e silêncio, mas os prelados o convenceram de que o consenso em torno de seu nome tiraria a Igreja do impasse.

 Leia também – Francisco, o Papa do fim do mundo 

Com o nome de Celestino V, tornou-se papa em agosto de 1294. Menos de quatro meses depois, a politicagem vaticana o levou ao limite de sua resistência. Em consulta a seus eleitores, levantou a pergunta-tabu: pode o papa renunciar?

O colégio cardinalício não se opôs e, numa bula histórica, Morrone justificou-se, alegando deixar o trono de Pedro para salvar sua saúde física e espiritual. A 13 de dezembro do mesmo ano retornou à solidão contemplativa nas montanhas. Vinte anos depois foi canonizado, exaltado como exemplo de santidade. A 19 de maio a Igreja celebra a festa de São Pedro Celestino.

Também o papa Gregório XII renunciou, no início do século XV – período em que três papas reivindicavam legitimidade – para evitar que o cisma na Igreja se aprofundasse.

Joseph Ratzinger (Bento XVI) era sobretudo um teólogo. Enquanto papa, não deixou de escrever, tanto que lançou uma trilogia sobre Jesus. São raros os papas autores, sem considerarmos os documentos pontifícios, como encíclicas, bulas e alocuções, quase sempre redigidos por assessores. Francisco lançou em fevereiro deste ano sua autobiografia, “Esperança”.

Em geral, intelectuais não se dão bem com funções de poder. As questões administrativas parecem enfadonhas diante de tantos livros por ler e escrever. O político quer administrar; o intelectual, criar. Ratzinger talvez tenha decidido reservar o que lhe restava de tempo de vida para recolher-se à oração e à produção teológica.

Com a internação de Francisco, inicia-se agora, nos bastidores da Igreja, uma sutil campanha eleitoral: a da eleição de seu sucessor. Entre os atuais 252 cardeais da Igreja Católica, 138 têm direito a voto, pois ainda não completaram 80 anos.

Entre os eleitores figuram sete brasileiros: Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo; Orani Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro; Sérgio da Rocha, arcebispo de Salvador; Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus; Jaime Spengler, arcebispo de Porto Alegre; Paulo Costa, arcebispo de Brasília; e João Braz Avis, ex-arcebispo de Brasília, atualmente em Roma como cardeal emérito da Cúria Romana. 

Quem será o sucessor do papa Francisco? Os 17 cardeais dos EUA com certeza haverão de tentar a eleição de um deles. Os italianos, ainda inconformados com a perda da sucessão contínua de tantos papas oriundos de seu colégio de cardeais, também se empenharão em recuperar o trono de Pedro. Mas é possível que muitos prelados queiram que, pela primeira vez nos tempos modernos, seja eleito um papa africano ou asiático. No momento não há nenhum cardeal latino-americano “papabile”, ou seja, capaz de se tornar papa. 

O próximo conclave será tenso, já que a maioria do clero católico, formado ao longo dos 34 anos dos pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI, se sente incomodada com as medidas e as encíclicas progressistas do papa Francisco. Assim como a política mundial, a Igreja também está em retrocesso. 

Tempos difíceis e desafiadores configuram o horizonte daqueles que, como eu, se empenham na conquista de um mundo menos desigual e menos devastador da natureza. Mas é preciso guardar o pessimismo para dias melhores. 

(*) Frei Betto é escritor, autor de “Jesus revolucionário – contradição de classes no evangelho de Lucas” (Vozes), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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