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Donald Trump e a inversão da estratégia de Kissinger

Nos anos 70, EUA buscaram aproximação com a China para estimular cisão do país com a URSS; hoje Trump inverte a estratégia buscando aproximação com a Rússia
Vijay Prashad
O presidente dos EUA, Donald Trump, com o ex-Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado Henry Kissinger, em maio de 2017. (Foto: White House / Shealah Craighead)
O presidente dos EUA, Donald Trump, com o ex-Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado Henry Kissinger, em maio de 2017. (Foto: White House / Shealah Craighead)

O presidente dos EUA, Donald Trump, telefonou para o presidente russo, Vladimir Putin, e afirmou que o governo dos EUA está comprometido com o processo de paz na Ucrânia. Como parte do acordo, a administração de Trump deixou claro que partes do leste da Ucrânia e da Crimeia permaneceriam nas mãos da Rússia. Em discurso na sede da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o secretário de Defesa de Trump, Pete Hegseth, disse que era “irrealista” supor que a Ucrânia retomaria suas fronteiras anteriores a 2014, o que significa que a Crimeia não seria parte de nenhuma negociação com a Rússia. A adesão da Ucrânia à OTAN, segundo ele, não seria possível, no entendimento dos Estados Unidos. Os Estados Unidos, disse Hegseth à OTAN, não estão “focados primordialmente” na segurança europeia, mas, antes de tudo, em colocar seus próprios interesses nacionais em primeiro lugar. O melhor que os líderes europeus na OTAN poderiam fazer seria exigir que a Ucrânia tivesse um lugar nas conversações, disse ele, mas não comentou sobre a pressão nos EUA de que a Rússia fizesse concessões para se sentar à mesa. A Ucrânia e a Europa podem se manifestar, disse Hegseth, mas Trump é quem definirá a agenda. “O que ele decide permitir ou não permitir é de competência do líder do mundo livre, do presidente Trump”, disse Hegseth com a arrogância característica do meio-oeste americano. Os caubóis estão de volta ao comando – ao menos é o que ele disse com sua linguagem corporal.

Enquanto Hegseth estava em Bruxelas, Trump estava em Washington, DC, com seu aliado próximo, Elon Musk. Ambos estão em uma corrida desenfreada para cortar os gastos do governo americano. Nas últimas cinco décadas, o governo dos EUA já encolheu, sobretudo no que diz respeito à provisão de bem-estar social. O que resta são áreas como a indústria de armas, que tem sido zelosamente defendida por grandes corporações. Sempre pareceu que esse setor era inviolável e que seria impossível sustentar cortes nos gastos militares nos Estados Unidos. Mas o setor de armamentos pode ficar tranquilo (exceto a Lockheed Martin, que pode perder o subsídio para o caça F-35); Musk e sua equipe não vão cortar os contratos militares, mas irão atrás de funcionários militares e civis. Durante sua audiência de nomeação, Hegseth disse aos senadores que, durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos tinham sete generais de quatro estrelas, e agora têm quarenta e quatro. “Há uma relação inversa entre o tamanho do pessoal e a vitória no campo de batalha. Não precisamos de mais burocracia no topo. Precisamos de mais combatentes capacitados na base”. Ele disse que “a gordura pode ser cortada, para que [as Forças Armadas dos EUA] possam ir em direção à letalidade”.

Há uma interpretação fundamentalmente errônea dessas medidas do governo Trump. Às vezes, elas são vistas como um comportamento idiossincrático de um presidente de extrema-direita que está comprometido em colocar os “Estados Unidos em primeiro lugar” e, portanto, não está disposto a travar guerras caras que não sejam de seu interesse. Mas essa é uma avaliação míope e errônea do telefonema de Trump com Putin sobre a Ucrânia e sua abordagem em relação às Forças Armadas dos EUA. Em vez de considerá-las manobras isolacionistas, é importante entender que Trump está tentando adotar uma estratégia Kissinger reversa, ou seja, tornar-se amigo da Rússia para isolar a China.

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Trump entende que a Rússia não é uma ameaça existencial para os Estados Unidos. O governo dos EUA não teme a venda de energia russa para a Europa, já que não há nenhuma pretensão de que essas vendas de commodities primários prejudiquem o controle geral dos EUA sobre a economia global. Entretanto, o rápido desenvolvimento da tecnologia e da ciência da China, bem como de novas forças produtivas, representa genuinamente uma ameaça ao domínio dos EUA sobre os principais setores da economia global. É a percepção da “ameaça” da China aos Estados Unidos que motiva a abordagem de Trump em relação a alianças e inimigos.

A estratégia de Kissinger: aproximar-se da China para isolar a Rússia

Henry Kissinger (1923-2023) foi um dos mais influentes burocratas da política externa dos EUA na história. Durante a presidência de Richard Nixon, de 1969 a 1974, Kissinger basicamente dirigiu a política externa dos Estados Unidos. Tanto Nixon quanto Kissinger acompanharam de perto a disputa entre a União Soviética e a República Popular da China (RPC). Quando Nixon se tornou presidente, a disputa fronteiriça entre a URSS e a RPC em torno da Ilha Zhenbao quase se desdobrou em um possível ataque nuclear soviético contra Pequim. Kissinger reconheceu que essa disputa era de grande valor para os Estados Unidos, pois impedia que os dois grandes países da Eurásia criassem uma união integral contra a aliança atlântica encapsulada pela OTAN. Se a Rússia e a China se unissem, escreveu Kissinger, elas seriam capazes de minar a base do poder ocidental no mundo. Impedir essa aliança era essencial, e usar a disputa sino-soviética para criar uma barreira profunda entre os dois países era o cerne da política de Kissinger. A reaproximação com a China também permitiu que os EUA tentassem fechar a linha de suprimento logístico para as forças de libertação nacional do Vietnã em sua guerra contra a agressão dos EUA.

Foi por esse motivo que Kissinger iniciou conversas secretas com o governo chinês por intermédio do Paquistão em 1970, fez uma viagem secreta a Pequim em 1971 e, assim, abriu as portas para Nixon visitar a China no ano seguinte. Em seu relatório verbal para a equipe da Casa Branca após sua visita à China, Kissinger fez este importante comentário: “Os chineses são pessoas extremamente sérias. Eles não nos querem bem. Não temos ilusões quanto a isso. Mas, em termos de nossa situação geral, com a pressão soviética e com a situação no Sudeste Asiático, é de nosso interesse trazer os chineses para perto de nós”. A visita histórica de Nixon à China foi totalmente motivada pelos interesses dos EUA de separar a Rússia e a China para que os EUA pudessem estabelecer seu poder no continente asiático.

Muito depois do colapso da URSS, Kissinger continuou a defender que os Estados Unidos deveriam se aproximar da China, isolar a Rússia e subordinar a Europa para continuar seu domínio de longo prazo. Esse é o argumento subjacente no épico de 600 páginas de Kissinger, “Sobre a China”, publicado em 2011.

A inversão de Trump: se aproximar da Rússia para isolar a China

Com a queda da URSS, o establishment dos Estados Unidos desenvolveu uma estratégia para fazer parcerias tanto com a Rússia quanto com a China, mas principalmente com a Rússia. A elite da política externa acreditava que a subordinação da Rússia aos Estados Unidos – sob a presidência de Boris Yeltsin de 1991 a 1999 – era total, e que os russos se tornariam um ator menor no continente eurasiano. A entrada da Rússia no G7 (que depois se tornou o G8) em 1998 foi o auge dessa subserviência. O retorno do cristianismo em público na Rússia e a promoção de uma cultura russa orientada para a Europa sugeriam que a Rússia havia abraçado sua herança ocidental. Parecia que ela havia se afastado da soberania e da Ásia e, portanto, da China. Em 1993, o presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, telefonou para Yeltsin e disse: “Quero que saiba que estamos nessa com você por um longo tempo”.

Um setor de extrema direita do establishment dos EUA identificou duas tendências no final dos anos 2000. Primeiro, o desenvolvimento tecnológico da China de suas forças produtivas ameaçava seriamente o domínio da propriedade intelectual pelas empresas americanas. Segundo, o novo nacionalismo da Rússia tinha como premissa tanto a soberania (identificada pelo surgimento dos partidos patrióticos de Putin) quanto a supremacia branca e a ortodoxia russa (como a ancorada pelas teorias de Aleksandr Dugin). Há um bloco inteiro na extrema-direita dos EUA que vê no nacionalismo patriótico russo sua própria ideologia, e no comunismo chinês seu adversário.

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Mesmo em seu primeiro mandato, Trump procurou se aproximar da Rússia para isolar a China e subordinar a Europa. Essa inversão da estratégia de Kissinger não é progressiva, mas igualmente reacionária e perigosa. O objetivo comum é garantir a supremacia dos Estados Unidos com a mesma estratégia de divisão, mas com os atores invertidos. Trump foi então acusado de ser um beneficiário da interferência russa.

O que os Estados Unidos estão fazendo agora é tentar romper o relacionamento estabelecido entre a China e a Rússia desde 2007, quando Putin rompeu oficialmente com os Estados Unidos na 43ª Conferência de Segurança de Munique. A boa cooperação entre a China e a Rússia avançou rapidamente, e os dois países têm um acordo de segurança que fundamenta a transferência de bens e serviços em rublos e renminbi. Romper esse relacionamento não será fácil, mas agora é a estratégia que Trump decidiu tentar executar.

Vale a pena rememorar a análise de Kissinger sobre a liderança chinesa em 1971: “O interesse deles é 100% político… Lembre-se, esses são homens de pureza ideológica. [Zhou Enlai] filiou-se ao Partido Comunista na França em 1920, muito antes de existir um Partido Comunista Chinês. Essa geração não lutou por 50 anos e não participou da Longa Marcha de graça”. Essa visão abrange não apenas Zhou Enlai e Mao Zedong, mas também Vladimir Putin e Xi Jinping. Eles também foram forjados em uma luta contra os Estados Unidos ao longo da última década. É improvável que algumas bugigangas atraiam Putin a adotar a estratégia Kissinger reversa de Trump.

(*) Vijay Prashad é um historiador, editor e jornalista indiano. Ele é um escritor e correspondente chefe da Globetrotter. Ele é editor da LeftWord Books e diretor do Tricontinental: Instituto de Pesquisa Social.

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