O que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, fez no dia 28 de fevereiro com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, normalmente acontece a portas fechadas. Mas, nas palavras do próprio Trump, foi “um ótimo espetáculo”. É assim que os EUA tratam os países do Sul Global há anos: como neocolônias que devem dizer docilmente “obrigado” por acordos impostos que saqueiam seus recursos. Não é diferente da maneira como Trump fala sobre o Panamá, a Groenlândia ou Gaza – neste caso, incluindo animações repulsivas de IA. Os EUA veem o mundo como um globo gigante de recursos que pertencem a eles. Isso tem um nome: imperialismo. Ele nunca desapareceu de fato; simplesmente agora voltou nu e sem vergonha, pisoteando a última força contrária que ainda restava contra ele e que um dia o conteve – o direito internacional.
Internamente, Trump faz o mesmo. Ele busca reviver o capitalismo do século XIX dos “barões ladrões”, um capitalismo sem contrapesos: sem sindicatos, sem proteções trabalhistas e com poder absoluto para tomar decisões que afetam milhões de pessoas, inclusive as deportações. Para vencer essa guerra, ele recrutou Elon Musk e sua equipe do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE).
O comportamento calmo e controlado de Zelensky diante do presidente mais poderoso do mundo atraiu respeito, principalmente entre as nações do Sul Global, que estão muito familiarizadas com o bullying dos EUA. Mas ele não nos aproxima da paz. “A guerra invencível”, escrevi em Mutiny, “já jogou dezenas de milhares de jovens no moedor de carne no início de suas vidas”. Na véspera da reunião entre Trump e Zelensky, parecia iminente um acordo pelo qual Trump transferiria o custo da guerra para a Europa, enquanto os EUA receberiam o controle sobre a extração de recursos e minerais da Ucrânia por meio de um novo fundo. Isso deixou claro que essa guerra suja nunca teve a ver com valores – apenas com interesses geoestratégicos e controle sobre recursos e terras férteis. A questão é: por que o acordo fracassou no último minuto?
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Uma possibilidade é que os EUA tenham como objetivo enfraquecer ainda mais a posição de Zelensky, humilhá-lo e, por fim, pressionar por uma mudança de regime. Essa tem sido a marca registrada da política externa dos EUA há décadas: orquestrar mudanças de regime quando e onde quer que os interesses dos EUA sejam considerados não atendidos. Esse foi o destino de Manuel Noriega no Panamá e de Saddam Hussein no Iraque. Em um dia, um aliado de confiança; no outro, derrubado. O ex-diplomata americano Jeffrey Sachs me lembrou na semana passada de uma suposta citação de Henry Kissinger: “Pode ser perigoso ser inimigo dos Estados Unidos, mas ser amigo dos Estados Unidos é fatal”.
Até mesmo um dos mais fortes aliados dos Estados Unidos, a União Europeia, está aprendendo essa lição. Em setembro de 2023, escrevi no Mutiny que a Europa está perdendo o seu continente justamente porque segue Washington cegamente. “É uma espécie de síndrome de Estocolmo”, eu disse ao primeiro-ministro belga Bart De Wever no Parlamento na semana passada. “Quanto mais os EUA humilham a Europa, mais a Europa se agarra às costas do Tio Sam.” O ministro da Defesa da Bélgica, Theo Francken, por exemplo, insiste em manter laços privilegiados com Washington a todo custo, se inspira no “modelo social” dos EUA, acha normal que Trump tente anexar a Groenlândia e quer encomendar mais caças F-35 de custo inviável dos EUA.
De quantos choques a Europa precisa para crescer? A recessão alemã pós-sanções não foi suficiente. A intromissão de Elon Musk nas campanhas eleitorais? Não foi suficiente. A humilhação feita pelo vice-presidente dos EUA, J.D Vance, e pelo secretário de Defesa, Pete Hegseth, em Munique? Ainda não foi suficiente. A nova guerra tarifária de Trump? Menos ainda. Hoje, o establishment da Europa entra em pânico novamente, correndo como um cavalo selvagem fugindo de um estábulo – mais armas, mais guerra, preparando-se para a Terceira Guerra Mundial! A Europa não deve se tornar um clone dos EUA. Ela não precisa de um Trump doméstico. Em vez disso, ela deve se atrever a traçar um novo rumo.
Enquanto isso, a ministra das Relações Exteriores da União Europeia, Kaja Kallas, insiste em declarações sobre prolongar a guerra suja na Ucrânia, a alimentando com armas e jovens homens e mulheres. Kallas não tem legitimidade democrática para se envolver em um discurso tão incendiário. A Europa precisa de menos belicistas como Kallas e de mais maturidade para realmente mudar de rumo e se unir às nações do Sul Global, como o Brasil e a China, que há muito tempo buscam soluções negociadas.
Como escrevi em Mutiny, essa guerra sempre teve a face de Jano. De um lado está a violação da integridade territorial da Ucrânia, o desrespeito à lei internacional por meio da agressão russa. As nações do Sul Global entendem isso. Por outro lado, há uma guerra por procuração entre os EUA e a Rússia em solo ucraniano, onde dezenas de milhares de jovens são bucha de canhão para um conflito geoestratégico. Washington agora admite descaradamente que essa foi uma guerra por procuração alimentada pelos EUA. Trump, no entanto, afirma que foi a guerra por procuração “errada” – que a Rússia não é o verdadeiro adversário dos EUA e que todos os esforços devem ser direcionados para a guerra que seu governo está preparando contra a China. Essa afirmação se deve exclusivamente ao fato de Washington ver sua hegemonia econômica e tecnológica desafiada pela China.
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O último sofisma da moda é que “se você quer paz, prepare-se para a guerra”. Parece cativante, mas é catastrófico. A história mostra que quando as economias se preparam para a guerra e as mentes estão preparadas para o conflito, a guerra se aproxima. Passo a passo, a histeria substitui a análise sóbria. Mais políticos falam de guerra e menos ousam falar de paz. O pensamento é interrompido, as soluções diplomáticas são descartadas e a paz global é jogada fora. A Europa não tem futuro como um continente de guerra. A militarização destruirá sua indústria manufatureira, e a tensão permanente com os vizinhos do leste não nos aproximará da paz.
“Minha experiência ensina que é preciso conversar com o outro lado. Não se pode dizer: ‘Não vamos conversar – sabemos o que eles pensam’. A diplomacia é essencial, especialmente em momentos de tensão”, disse-me Jeffrey Sachs.
A Europa precisa encontrar seu próprio caminho. A Rússia não vai embora; não é possível apagá-la do mapa. Em vez de se afundar ainda mais no vórtice da histeria e dos chavões, a Europa deve desenvolver uma diplomacia madura – uma diplomacia que trace um curso independente com uma visão para seu setor industrial, respeito pelo direito internacional e relações pragmáticas com todos os gigantes econômicos: EUA, China, Índia, Rússia, Brasil e África do Sul.
(*) Tradução de Raul Chiliani