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Frei Betto: Calendário político

A política está presente em tudo: na qualidade do nosso café da manhã ou no transporte, e também em nosso calendário e datas comemorativas
Frei Betto
O homem de agosto: estátua do primeiro imperador romano, Augusto. (Foto: Domínio Público)
O homem de agosto: estátua do primeiro imperador romano, Augusto. (Foto: Domínio Público)

Podemos não perceber, mas a política está presente em tudo: na qualidade do nosso café da manhã e do transporte utilizado para ir à escola ou ao trabalho.

Mas nem tudo é política. Um casal em lua de mel não é necessariamente uma questão política. Porém, o local para o qual viajou (ou não) tem a ver com política, que influencia na renda familiar.

 A política é uma faca de “dois legumes”, como se diz em Minas. Serve para oprimir ou libertar. É como a religião, que também serve para oprimir ou libertar. 

Um dos exemplos mais curiosos de que tudo tem a ver com a política é este: pergunte a um grupo qual é o último mês do ano. Todos responderão: “Dezembro”. Agora indague: “Equivale a qual numeral?” Com certeza a maioria dirá: “Doze”. Errado! Dezembro equivale ao numeral dez. Antes dele, novembro, nove; outubro, oito; setembro, sete. E por que o ano tem doze meses? 

Eis a política: na Roma antiga o ano tinha 304 dias e dez meses (martius, aprilis, maius, junius, quintilis, sextilis, september, october, november e december). Mais tarde, foram acrescidos os meses de janus e februarius.

Para homenagear os césares, o senado romano mudou os nomes de quintilis para julho, em honra do imperador Júlio César. O imperador Augusto, seu sucessor, não quis ficar atrás e exigiu também um mês em sua homenagem. Sextilis virou agosto, em honra de César Augusto. 

Os astrônomos do reino, constrangidos, lembraram ao imperador da alternância de 31/30 nos dias de cada mês. Portanto, o mês de Augusto teria um dia a menos que o de Júlio. “Quero isonomia!”, teria dito o imperador. “Ou amanhã os senhores não terão a cabeça em cima do corpo”. O que fizeram? Arrancaram um dia de fevereiro. Julho e agosto são os únicos meses consecutivos com 31 dias.

Uma pergunta que sempre me fazem: por que a data do Carnaval muda todo ano e sob que critérios? Mudam-se também as datas da Semana Santa, de Corpus Christi e de outras efemérides litúrgicas.

Nosso calendário gregoriano é solar, ou seja, regido pela rotação da Terra em torno da estrela que nos ilumina. O calendário litúrgico é lunar, baseado nas fases da lua. Sua festa central é a Páscoa, sempre comemorada pelos judeus na primeira lua cheia do mês de Nisan. Este mês do calendário judaico corresponde ao período entre 22 de março e 25 de abril. Para nós, que vivemos no hemisfério Sul, o domingo de Páscoa é sempre aquele seguido da primeira lua cheia do outono. Neste ano, 20 de abril. Para evitar confusão com a festa judaica, a Igreja adotou o domingo seguinte ao da festa da Páscoa judaica como o da celebração da ressurreição de Jesus. 

O domingo de Carnaval é sempre o sétimo antes da Páscoa cristã. A quinta-feira de Corpus Christi, a primeira depois do domingo da Santíssima Trindade, comemorado 57 dias depois da Páscoa. 

O domingo de Páscoa é a data de referência das demais festas litúrgicas chamadas móveis. Há também as imóveis, como o Natal, comemorado invariavelmente a 25 de dezembro, não importa o dia da semana em que cai. 

Todos os povos que seguem um calendário anual celebram a chegada do Ano-Novo denominada, entre nós, réveillon, do verbo francês réveiller, que significa “despertar”. Foi o imperador Júlio César que, no ano 46 a.C., decretou o 1º de janeiro como primeiro dia do Ano-Novo. Celebrava-se na data a festa de Jano, deus dos portões, dotado de duas faces, uma virada para frente, outra para trás. Janeiro deriva de Jano. 

Os dias da semana, em português, foram nomeados por Martinho de Dume, bispo de Braga, Portugal, no século VI. Ele denominou, em latim, os dias da Semana Santa como aqueles nos quais não se devia trabalhar: feria secunda (segundo dia de feriado ou férias), feria tertia etc. Feria originou a corruptela feira.

O imperador Constantino (280-337), convertido ao Cristianismo, já havia denominado Dies Dominica, “dia do Senhor”, o domingo, primeiro dia da semana. O sétimo dia, sábado, vem do hebreu shabāt, que significa “descanso”. 

Outros idiomas latinos conservam os nomes pagãos dos dias, concernentes aos planetas, como é o caso do francês, do italiano e do espanhol. Na língua de Cervantes segunda-feira é lunes, de lua; terça, martes, de Marte etc.

Todas essas convenções e denominações estão calcadas na dança cabrocha da Terra em torno do mestre-sala, o Sol. Nesse bailar, percorre quatro estações: verão, outono, inverno e primavera. E não apenas a Estação Primeira de Mangueira…

Aliás, se a evolução do Universo, surgido há 13,8 bilhões de anos, fosse compactada no calendário gregoriano, o Big-Bang, a explosão primordial, teria ocorrido a 1° de janeiro; nossa galáxia, a Via Láctea, se formado em 1° de maio; nosso sistema solar, em 9 de setembro; o surgimento da Terra, em 14 de setembro; as primeiras manifestações de vida, a 25 de setembro; e o ser humano, nos últimos segundos de 31 de dezembro. 

De vez em quando é muito bom dar um passeio pela ciência, tão desprestigiada por essa gente que adora as fake news de Trump.  

(*) Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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