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Frei Betto: Páscoa em tempo de incertezas

A Páscoa, a ressurreição, não é apenas um acontecimento espiritual. É também fato político, chamado à ação

Frei Betto
"A ressurreição", obra de Ugolino di Nerio. 1324-25. (Foto artuk.org / Domínio Público)
“A ressurreição”, obra de Ugolino di Nerio. 1324-25. (Foto artuk.org / Domínio Público)

A Páscoa é, por excelência, a celebração da vida que vence a morte. Mais que data religiosa, traz em seu bojo uma mensagem universal de esperança, renovação e possibilidade de recomeço. A ressurreição de Jesus Cristo, há mais de dois mil anos, continua a ecoar como símbolo máximo de superação diante do impossível. E, hoje, essa mensagem se faz necessária em um mundo mergulhado em incertezas econômicas e sociais e guerras atrozes.

Vivemos um momento de profunda crise global agravada pelo desatino do (des)governo Trump. Inflação elevada, desemprego crescente, cadeias produtivas fragilizadas, uberização das relações trabalhistas e um abismo cada vez maior entre os que têm muito e os que mal sobrevivem. 

Em todo o mundo, famílias enfrentam desafios diários para colocar comida na mesa e sonhar com um futuro minimamente estável. A esperança parece escassa, o desânimo se espalha como uma sombra silenciosa, a distopia abate inúmeros jovens.

Nesse cenário, a mensagem da Páscoa brota como luz insistente e resistente. O sepulcro vazio, sinal da ressurreição de Cristo, é uma metáfora significativa: o fim nem sempre é o fim. Aquilo que parecia perdido, vencido, destruído, pode se transformar em ponto de partida para algo novo. Jesus, que sofreu humilhação, dor e morte, ressurgiu como sinal de que o amor, a justiça e a verdade não podem ser enterrados.

A crise econômica aprofundada pela guerra das tarifas, com toda sua força destrutiva, nos coloca diante de um “sábado de silêncio”, como aquele vivido pelos discípulos entre a morte e a ressurreição de Jesus. Um tempo de incerteza, de luto, de espera. Mas o domingo chega. A pedra do túmulo é removida. A vida ressurge. E é justamente aí que se situa o convite pascal: acreditar que há esperança, que há um “depois”, mesmo quando tudo parece perdido.

Essa esperança não é ingênua. Não ignora a dor nem minimiza os sofrimentos. Pelo contrário, nasce justamente no coração da adversidade e como clamor de justiça. Jesus não foi poupado do sofrimento e o assumiu. Do mesmo modo, a Páscoa nos convida a enfrentar as dores do presente com coragem e fé, certos de que a crise, por mais dura que pareça, não tem a última palavra.

A ressurreição não é apenas um acontecimento espiritual. É também fato político, chamado à ação. Quando Jesus ressuscita, envia seus discípulos a transformar o mundo. A Boa Nova da ressurreição não se limita ao consolo pessoal; é fermento de mudança social, ética e econômica. O Cristo ressuscitado convoca seus seguidores a serem agentes de justiça, solidariedade e renovação.

Diante da crise econômica mundial, da degradação ambiental e dos conflitos bélicos, essa convocação se torna urgente. Ressuscitar, hoje, é promover políticas centradas no cuidado dos mais pobres, fomentar economias sustentáveis, preservar a natureza, alcançar a paz como fruto de justiça, combater as desigualdades sociais. É recusar a indiferença, agir com compaixão. É erguer os que desanimam, partilhar o pão, dar voz aos silenciados. É fazer a ressurreição de Cristo se traduzir em ressurreições cotidianas, visíveis, palpáveis.

A crise, por mais aguda que seja, não anula a possibilidade de recomeços. Ao contrário, pode ser o terreno fértil para novas sementes libertadoras. A mensagem do túmulo vazio é que nenhuma escuridão é definitiva. Nenhuma morte, econômica, moral ou social, é irreversível. Há sempre um terceiro dia.

Tomara que esta Páscoa, em meio a tantas instabilidades e incertezas, nos inspire a não perder a esperança, não sucumbir ao medo e não aceitar a injustiça como normal. A ressurreição de Jesus deve nos mover à solidariedade e à construção de um novo modelo de sociedade, mais humana, justa e fraterna. Afinal, a verdadeira vitória da Páscoa não está apenas na superação da morte, mas na escolha diária pela vida – e vida em plenitude.

(*) Frei Betto é escritor, autor de “Jesus rebelde – Mateus, o evangelho da ruptura” (Vozes), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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