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A jornada de Jorge Bergoglio, o Papa que tentou reformar a Igreja e não conseguiu

Antes acusado de cumplicidade com a ditadura argentina, Jorge Bergoglio, ungido Papa Francisco, tornou-se uma voz contra a ultradireita e o neoliberalismo

Martín Pared
Despedida do Papa Francisco de visita ao México, em 17/02/2016. (Foto: Presidencia de la República Mexicana / Flickr)
Despedida do Papa Francisco de visita ao México, em 17/02/2016. (Foto: Presidencia de la República Mexicana / Flickr)

“É com profunda tristeza que tenho que anunciar que o Papa Francisco faleceu às 7h35 de hoje. O bispo de Roma retornou à casa do Pai, toda a sua vida foi dedicada ao serviço do Senhor e de sua Igreja e ele nos ensinou o valor do Evangelho com fidelidade, coragem e amor universal e, de maneira particular, em favor dos mais pobres e marginalizados”. Essas foram as palavras com as quais o cardeal Kevin Joseph Farrel anunciou na segunda-feira, 21 de abril, a morte de Jorge Bergoglio, que escolheu o nome Papa Francisco ao assumir o cargo no Vaticano em março de 2013, em homenagem ao criador da Ordem Franciscana fundada no século XIII.

Bergoglio foi o primeiro papa originário da América Latina e também o primeiro a adotar o nome Francisco, em homenagem ao jovem nascido em Assis que renunciou à sua riqueza para viver entre os pobres, um gesto político que Bergoglio escolheu em sintonia com sua vida austera como padre jesuíta, que ele já levava na Argentina, inclusive durante seus anos como arcebispo de Buenos Aires. Bergoglio era com frequência visto no metrô ou no trem, próximo à vida dos mortais, passando pelos locais habituais do bairro de Flores, em Buenos Aires, onde está localizada a Basílica de San José, local onde ele disse ter encontrado sua vocação sacerdotal.

Com Bergoglio, morre um papado com vontade reformadora frente à instituição mais antiga do planeta, atrelada a um conservadorismo doutrinário que vive um momento histórico de decadência, com uma crescente perda de fiéis. Francisco tomou partido em diferentes temas que a extrema-direita, representada por Donald Trump nos Estados Unidos ou por Javier Milei na Argentina, engloba na chamada “agenda woke”. O pontífice falou sobre guerras, a questão palestina, a situação dos imigrantes e fez gestos de abertura em relação à comunidade LGBT e às mulheres que abortam. Ele criticou os magnatas das empresas de tecnologia, se manifestou contra o capitalismo selvagem, pediu justiça social e até condenou a repressão policial promovida pelo governo Milei contra os aposentados.

Em um contexto de crescimento das expressões de extrema-direita e do hiperindividualismo em diversos países do mundo, a figura de Francisco é um contraponto. Os diferentes setores do peronismo na Argentina, que atualmente sofre com profundas fissuras internas, incorporaram Francisco ao santuário dos mitos nacionais ao lado de Perón, Evita e Maradona. Eles também falam de um antes e um depois, de dois homens em um. De um lado, Jorge Bergoglio, o arcebispo de Buenos Aires que manteve distância da presidência de Cristina Fernández de Kirchner e era próximo de figuras da oposição de direita da época. Por outro lado, Francisco, o Papa da justiça social, o Papa argentino ou o Papa peronista.

Para a organização Católicas pelo Direito de Decidir, a aproximação de Francisco com a agenda feminista é um fato notável. Natalia Rodríguez, membro dessa organização, diz: “Como feministas cristãs, temos uma tradição muito ampla de discordância com alguns aspectos da Igreja Católica que têm a ver com sexualidade, gênero e a capacidade das mulheres grávidas de decidir sobre seus corpos. Trabalhamos em discussões que nos permitam, dentro de nossa tradição e da doutrina da Igreja, amenizar essa dissidência e, dessa forma, estamos apostando em uma igreja mais plural e aberta, como o Papa Francisco muitas vezes incentivou. Uma igreja mais aberta em diálogo com a realidade social e política”.

 Leia também – Frei Betto: Francisco, o Papa do fim do mundo 

Durante o papado de Francisco, acrescenta Rodriguez, uma série de mudanças ocorreu “em relação à questão da cultura do abuso e dos encobrimentos da Igreja Católica”. Uma dessas mudanças, continua ela, tem a ver com o Código de Direito Canônico, que foi reformado para endurecer as penalidades por abuso sexual e encobrimento na hierarquia da Igreja. Ele também reduziu, explica, a liberdade que os bispos e os encarregados de receber denúncias na instituição tinham. “O Papa reconheceu que essa cultura de abuso existe e pediu um caminho de denúncia”, resume ela.

No entanto, a instituição das fogueiras inquisitoriais, a instituição do obscurantismo medieval que excomungou Galileu Galilei, a instituição que liderou a colonização e o extermínio da América, a instituição que perdoou criminosos nazistas e abençoou ditaduras latino-americanas, foi mais uma vez exposta quando o alemão Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI que foi denunciado por seu passado nazista, teve que deixar seu cargo em 2013 para dar lugar a Jorge Bergoglio. Ratzinger havia assumido o cargo de chefe da Santa Sé após a morte, em 2005, do polonês Karol Józef Wojtyła, João Paulo II, que chefiou a Santa Sé nos anos da cruzada neoliberal de Ronald Reagan e Margaret Thatcher contra o estado de bem-estar social, o que lhe rendeu o apelido de “papa anticomunista”.

Mas o questionamento e o descrédito da Igreja aumentaram nas últimas décadas com a visibilidade de inúmeros casos de abuso, estupro e pedofilia perpetrados por padres católicos em diferentes países do mundo, que foram narrados em Spotlight, o filme vencedor do Oscar de 2016 sobre o caso da Igreja Católica em Massachusetts, que durante anos ocultou um número significativo de abusos sexuais perpetrados por padres em Boston, nos Estados Unidos.

A Argentina, país onde Bergoglio nasceu, também foi palco de um caso escandaloso envolvendo Julio César Grassi, conhecido como Padre Grassi, que teve relações obscuras com o governo Menem durante a década de 1990 e foi condenado a 15 anos de prisão por abuso sexual infantil e corrupção de menores enquanto dirigia uma fundação chamada “Felices los niños” (“Felizes as crianças”, em tradução livre). Mas não foram apenas os casos de abuso e pedofilia que minaram a autoridade da Igreja de Roma nos últimos anos, – também os casos de corrupção financeira e o peso de uma instituição envelhecida diante dos grandes problemas seculares do mundo contemporâneo jogaram seu papel.

Para o parlamentar da Cidade de Buenos Aires e membro da Frente de Esquerda, Gabriel Solano, quando Bergoglio foi eleito papa em 2013, ele mesmo enfatizou em seu discurso inicial que “tinham ido procurar um papa no fim do mundo”. E a lógica não era outra senão “tentar buscar uma renovação da Igreja para tentar reverter o que era o declínio de uma instituição milenar que estava atravancada por denúncias de corrupção, cumplicidade com governos ditatoriais e, muito fortemente, por denúncias de abusos sexuais cometidos pelos próprios sacerdotes”.

Em uma análise dos doze anos de seu papado, fica claro que essa transformação da Igreja Católica não ocorreu, argumenta Solano: “Além de um discurso diferente do papa anterior e de algumas medidas isoladas, o que prevaleceu foi o resgate dessa instituição reacionária”. Do ponto de vista geopolítico, o Papa Francisco tentou colocar o Vaticano em uma dinâmica de “certa contenção dos conflitos internacionais existentes”. Como exemplo, ele dá sua posição sobre o massacre na Palestina e a guerra na Ucrânia. No entanto, ressalta, essas intervenções foram feitas a partir de “uma instituição que está fortemente ligada ao sistema capitalista, porque a Igreja tem sido isso na atualidade, é impossível que possa reverter as tendências mais fundamentais que existem para o caminho da guerra, do surgimento de governos de direita, inclusive fascistas”.

Por todas essas razões, aponta o legislador de esquerda, “as ações do Papa e suas palavras não foram capazes de reverter o avanço da ultradireita no mundo, o avanço da xenofobia, a perseguição aos migrantes”. Sua gestão no Vaticano, continua, “não deu o resultado esperado, como nunca poderia ter dado, porque a luta para transformar uma sociedade que está apodrecendo não pode vir da mão de uma instituição reacionária como a Igreja, senão de uma ação histórica do povo”.

Igreja e ditadura

Na Argentina, a Igreja Católica acrescentou mais um elemento político ao seu desprestígio internacional: o papel central desempenhado por sua cúpula como partícipe dos crimes perpetrados pela ditadura cívico-militar entre 1976 e 1983. A Igreja argentina chegou ao ponto de abençoar os instrumentos de tortura dos centros de detenção clandestinos.

Um caso emblemático foi o do padre Christian Von Wernich, que foi condenado em 2007 por sete assassinatos, 31 casos de tortura e 42 privações ilegais de liberdade enquanto atuava como capelão da polícia da província de Buenos Aires sob a ditadura. A liderança eclesiástica também foi responsável pela entrega de padres e religiosos alinhados com a Teologia da Libertação ou com a Opção pelos Pobres. Nesse contexto, dois padres da Ordem dos Jesuítas, da qual Bergoglio era superior desde 1973, foram sequestrados. Os padres Francisco Jalics e Orlando Yorio foram sequestrados e levados para a Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA), um dos mais sinistros campos de concentração da ditadura, comandado pelo almirante Eduardo Emilio Massera, um dos chefes da junta militar.

Durante um julgamento em 2010, Bergoglio foi apontado por uma testemunha, María Elena Funes, que foi mantida em cativeiro na ESMA e contou sobre o sequestro dos padres jesuítas na época. Funes disse que Yorio lhe contou que o “chefe da ordem”, Jorge Bergoglio, havia retirado a permissão deles para trabalhar lá “por razões ideológicas”.

Os dois padres foram sequestrados em uma grande operação e “levados para a ESMA”, onde Yorio ficou preso por cinco meses e foi libertado por uma operação do Vaticano. Bergoglio depôs como testemunha nesse caso, negando as acusações da testemunha, mas admitindo contatos com Massera e Videla, e seu conhecimento da existência de detentos ilegais na ESMA.

As ligações entre a Igreja e os líderes da ditadura foram denunciadas pelo jornalista Horacio Verbitsky em seu livro El Silencio (O Silêncio), que aponta a Bergoglio diretamente como cúmplice dos genocidas. O texto leva o nome de uma ilha no Delta argentino pertencente à Igreja que foi emprestada para esconder os detidos desaparecidos da ESMA durante uma visita de uma delegação do Conselho Interamericano de Direitos Humanos (CIDH) à ESMA. A CIDH não encontrou nenhum rastro dos prisioneiros, pois, com a ajuda da Igreja, a Marinha escondeu os detentos na ilha de El Silencio, onde, segundo Verbitsky, Jorge Bergoglio costumava descansar.

Em 2023, a Igreja entregou ao sistema de justiça federal documentos em seu poder da época da ditadura. Lá foram encontrados apenas os nomes de pessoas desaparecidas que haviam procurado a Igreja por meio de seus parentes em busca de ajuda. Na época, Myriam Bregman, a advogada de acusação em julgamentos contra a humanidade, declarou que “a Igreja estava totalmente ciente do processo pelo qual a Argentina estava passando. E que, já em julho de 1976, começou a chamar de ‘desaparecimentos’ as ausências denunciadas pelos familiares”.

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