No dia 4 de abril, 122 dias após a decretação da lei marcial na Coreia do Sul, o tribunal constitucional confirmou a moção de impeachment da Assembleia Nacional e destituiu o ex-presidente Yoon Suk Yeol. Agora, o país se prepara para as eleições presidenciais antecipadas previstas para o dia 3 de junho.
Embora derrubar um presidente tenha exigido esforços hercúleos, o maior desafio será mudar as condições sociais para impedir a ascensão de outro Yoon. Afinal, há só oito anos, a então presidente Park Geun-hye (2013-2017) também foi destituída. O fracasso do presidente Moon Jae-in (2017-2022) e do Partido Democrático em cumprir o mandato de mudança social e reforma exigido pela Revolta das Velas, que levou à queda de Park Geun-hye, causou uma decepção e descontentamento generalizados, acabando por abrir caminho para a eleição de Yoon.
Com o candidato favorito Lee Jae-myung, do Partido Democrático, declarando-se um “conservador de centro”, a eleição na Coreia do Sul se tornou uma mera disputa entre conservadores. E embora uma vitória de Lee possa ser necessária para extirpar aqueles que apoiaram e defenderam diretamente o autogolpe de Yoon (quando ele tentou superar seu impasse político com a Assembleia Nacional decretando a lei marcial), ela também requer o estabelecimento de bases sólidas para quebrar o domínio dos partidos liberais e conservadores que levaram a sociedade coreana a este ponto. Para isso, é necessário dar ao povo o poder de destituir autoridades eleitas e propor diretamente suas próprias leis.
Déjà Vu na Coreia do Sul
Há oito anos, aproveitando a euforia da Revolta das Velas, Moon Jae-in, do Partido Democrático, recebeu um mandato para realizar reformas. Faltando dois anos para o fim de seu mandato, seu partido chegou a obter maioria absoluta (180 dos 300 assentos) na Assembleia Nacional seguinte. No entanto, apesar das promessas de campanha, Moon não conseguiu tornar a sociedade coreana mais igualitária (ou seja, aumentar substancialmente o salário mínimo e controlar os preços da habitação), mais segura (por exemplo, uma investigação completa da tragédia de Sewol para evitar que ela se repita e responsabilização criminal por acidentes industriais) e livre de discriminação (por exemplo, por meio da lei abrangente contra a discriminação).
Agora, com Lee Jae-myung, do Partido Democrático, claramente na liderança das pesquisas de opinião, é provável que o Partido Democrático volte à presidência. Se o conservador Partido do Poder Popular orgulhosamente carrega o legado da ditadura militar sul-coreana, o liberal Partido Democrático, cujas fileiras engrossaram com militantes pela democratização da década de 1980, há muito tempo foi capturado pela elite econômica da Coreia do Sul. Se Lee vencer, estará em uma posição forte para implementar reformas: o Partido Democrata manterá sua maioria na Assembleia Nacional (conquistada em 2020 e 2024) pelo menos durante os três primeiros anos da próxima presidência.
No entanto, olhando para o histórico de Lee como líder do Partido Democrático desde 2022 e para a sua retórica de campanha, não está claro se seu governo ofereceria soluções políticas para os problemas mais urgentes da população: inflação, desigualdade crescente, preços da habitação e discriminação. Afinal, durante a liderança de Lee, o Partido Democrático usou sua ampla maioria principalmente para culpar o governo Yoon pelos problemas. E, em vez de combater a desigualdade através da redistribuição da riqueza por meio de impostos, eles aboliram o imposto sobre investimentos financeiros e agora estão falando em aumentar a parcela das heranças isentas de impostos.
Não é de surpreender que, antes do autogolpe de Yoon, o Partido Democrata fosse quase tão impopular quanto o Partido do Poder Popular. Mesmo agora, um voto em Lee tornou-se simplesmente um voto no “menor dos males”. E embora seja necessário escolher o menos pior para extirpar os elementos fundamentais do autogolpe de Yoon, são necessárias mudanças estruturais para romper este ciclo de impeachment-eleições-impeachment.
Quebrar o ciclo
Hoje, todos os partidos concordam em emendar a Constituição de 1987, que estabeleceu a atual democracia formal. Até mesmo o desacreditado e conservador Partido do Poder Popular está pedindo emendas constitucionais para encurtar o próximo mandato presidencial, dada a sua provável derrota. O Partido Democrático está propondo emendar a Constituição para redistribuir o poder do Executivo para o Legislativo. No entanto, nenhum dos dois está abordando as limitações da Constituição de 1987: uma democracia formal que limita a participação democrática ao voto nas eleições.
O impeachment do presidente Yoon criou uma oportunidade extraordinária para que pessoas comuns (entre elas, mulheres jovens e membros da comunidade LGBTQ+) se levantassem como atores democráticos. Sem ampliar a participação, a resposta da democracia formal aos seus esforços, crescimento e exuberância resume-se a: “obrigado por defender a democracia. Não se esqueçam de votar”. A democracia coreana deve acomodar o espaço democrático para que esses atores possam moldar suas vidas e seu futuro para além da escolha entre dois partidos.
É por isso que uma corrente progressista está se formando em torno da necessidade de expandir a democracia participativa. Mais especificamente, o People Power Direct Action (criado para organizar pessoas comuns para destituir Yoon e expandir a democracia direta) está propondo erradicar as bases do autogolpe. A iniciativa quer fazer isso dando poder ao povo, com o direito de destituir autoridades eleitas e propor suas próprias leis. Com esses poderes ampliados, os eleitores poderiam destituir líderes que se afastem do caminho democrático.
Antes de declarar a lei marcial na Coreia do Sul, as ações e políticas de Yoon já o haviam transformado em um presidente sem poder, com apenas 20% de aprovação. No entanto, sem o referendo de destituição, os eleitores não poderiam fazer nada além de esperar que ele completasse a segunda metade de seu mandato. Além disso, mesmo depois que Yoon impôs a lei marcial e sofreu o impeachment pela Assembleia Nacional, o povo só pôde torcer ansiosamente para que o Tribunal Constitucional mantivesse o impeachment.
Em segundo lugar, o poder de propor leis quebraria o domínio dos interesses das elites no Parlamento. Se o partido conservador orgulhosamente carrega o legado da ditadura, o partido liberal, cujas fileiras foram formadas de militantes pró-democratização a partir da década de 1980, há muito tempo foi capturado pelas elites. Afinal, em uma das questões mais importantes para os jovens – o custo de moradia –, os membros da Assembleia Nacional (conservadores e liberais) estão alinhados com as elites.
O patrimônio imobiliário médio dos membros da Assembleia Nacional da Coreia do Sul é de 1,9 bilhão de wons (cerca de 1,3 milhão de dólares), quase cinco vezes a média nacional. Entre os dez legisladores mais ricos, quatro são do Partido Democrático; os outros seis, do Partido do Poder Popular. Na verdade, o maior patrimônio imobiliário – 41 bilhões de wons (cerca de 30 milhões de dólares) – pertence a um membro da Assembleia do Partido Democrático. Mais importante ainda, 54,7% dos membros das três comissões permanentes ligadas ao setor imobiliário possuem eles próprios propriedades significativas. Se a Assembleia Nacional não consegue propor projetos de lei que controlem os preços da habitação, é porque isso prejudica diretamente os seus interesses.
O mesmo argumento aplica-se ao controle da especulação financeira e da propriedade de ações de mercado. E embora isto não seja chocante, nem uma exclusividade da Coreia do Sul, a democracia exige que as pessoas comuns tenham o poder de propor leis que representem os seus interesses.
Lições ao longo do tempo e em diferentes lugares nos mostraram que o caminho para os maiores males é o acúmulo de decepções e raiva por se contentar com o mal menor. Para se libertar, as pessoas precisam ser capazes de se levantar como atores democráticos. Se o impeachment de Yoon abriu espaços extraordinários de participação, agora eles devem se integrar ao funcionamento normal da democracia na Coreia do Sul. A capacidade de destituir autoridades eleitas e propor leis seria um começo.
(*) Tradução de Raul Chiliani