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Diário do julgamento do golpe – Ato 3: Fake news e desinformação levam 7 ao banco dos réus

Sessão que tornou réus acusados de compor “núcleo da desinformação” dá tom de como STF vai punir propagação de fake news

Alice Maciel | Edição: Ed Wanderley
Primeira Turma do STF julga denúncia sobre o núcleo 4 da PET 12.100. (Foto: Fellipe Sampaio /STF)
Primeira Turma do STF julga denúncia sobre o núcleo 4 da PET 12.100. (Foto: Fellipe Sampaio /STF)
“Arma”, “veneno político”, “explosivo”, “commodity para comprar a antidemocracia”, foram algumas das analogias usadas pelos ministros da primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) para ilustrar o caráter criminoso das fake news. O tema foi central no julgamento da terça-feira (6), que resultou no recebimento da denúncia contra os sete acusados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) de integrarem o “núcleo da desinformação” da tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023.

A sessão foi emblemática ao apontar o tom com o qual o STF deve punir as fake news e enfrentar demais casos envolvendo a disseminação de notícias falsas e o papel das big techs. Dois inquéritos também tratam da propagação de desinformação e ainda devem ser analisados pela Corte: o das fake news e o das milícias digitais, citados durante o julgamento pelo ministro Alexandre de Moraes, relator de ambos e também do inquérito da trama golpista.

De acordo com Moraes, o “núcleo de desinformação” teria agido “exatamente” com “o mesmo modus operandi” das milícias digitais “investigado e descoberto no âmbito do inquérito das fake news”, instaurado em 2019. O magistrado destacou que este núcleo seria o responsável por produzir a mentira que era disseminada em massa por perfis falsos, robôs, e posteriormente compartilhadas pelo “núcleo político”, como uma “espécie de lavagem de notícias fraudulentas”, dando aparência de legitimidade às mentiras difundidas nas redes. Dessa forma, afirmou, “a origem ilícita da notícia acabava desaparecendo”.

Seguindo o voto do relator, por unanimidade, a primeira turma do STF tornou réus o ex-major do Exército Ailton Barros, o major da reserva Angelo Denicoli, o presidente do Instituto Voto Legal, Carlos Rocha, o subtenente Giancarlo Rodrigues, o tenente-coronel Guilherme Marques Almeida, o policial federal Marcelo Bormevet e o coronel Reginaldo Vieira de Abreu.

Segundo a denúncia da PGR, eles “propagaram notícias falsas sobre o processo eleitoral e realizaram ataques virtuais a instituições e autoridades que ameaçavam os interesses do grupo”. “Todos estavam cientes do plano maior da organização e da eficácia de suas ações para a promoção de instabilidade social e consumação da ruptura institucional”. Com a decisão do STF, chega a 21 o número de réus acusados de orquestrar uma tentativa de golpe.

Fake news: veneno moderno pouco inocente

Durante a sessão, Flávio Dino destacou o caráter inovador do debate que emergiu no julgamento, ao reconhecer as fake news como meio de execução de crimes. O ministro observou que uma notícia falsa pode ser “tão cruel e incendiosa” quanto um explosivo ou um veneno.

“Para além do debate sobre se havia ou não violência e grave ameaça – que é um debate obviamente imprescindível – há um debate sobre a natureza das fake news como caminho de execução de um crime, porque às vezes há uma ideia de minimização”, sustentou.

Fazendo coro ao colega, a ministra Cármen Lúcia reforçou que as fake news têm sido usadas como instrumento específico para uma finalidade. “Como eu preciso de uma arma para um assassinato, ou como um veneno”, comparou.

“A mentira é um veneno político plantado socialmente e exponencialmente divulgado por novas tecnologias que hoje são um grande problema”, acrescentou. Ao longo de sua explanação, Carmen Lúcia ainda ressaltou que a mentira virou “commodity para comprar a antidemocracia”.

Brincadeiras e afagos no plenário

Ao contrário da tensão do primeiro e do segundo julgamento contra os envolvidos na trama golpista, que contou com a participação de acusados – o ex-presidente Jair Bolsonaro, em março, e do ex-assessor de assuntos internacionais Filipe Martins, em abril – o clima no plenário durante o julgamento do chamado “núcleo 4” da denúncia da PGR estava mais ameno.

Os ministros fizeram piada, brincaram entre si, e um dos advogados chegou a convidar a ministra Cármen Lúcia para a comemoração de 25 anos de formatura da sua turma de direito. Segundo Hassan Magid Souki, que fez a defesa do policial federal Marcelo Bormevet, a ministra foi sua professora na Pontifícia Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) por dois semestres.

Uma vez que o debate em relação ao combate às fake news é um tema de consenso na primeira turma do STF, os ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux também aproveitaram a oportunidade para afastar os rumores de um suposto desentendimento pessoal devido às divergências que tiveram em decisões envolvendo a tentativa de golpe. Fux disse respeitar “muitíssimo” o trabalho do colega, que classificou como “robusto”, e ressaltou não haver “discórdia”, mas “divergência” de entendimento entre eles. Moraes acrescentou que o STF é um local de debate.

Caso da Abin Paralela embasou defesa

A situação que gerou uma tensão pontual durante a sessão foi o momento em que Carmen Lúcia perguntou à advogada Juliana Malafaia o que seria “investigar as urnas”, em alusão à afirmação da defensora de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) investigava as urnas eletrônicas desde 2020.

“A senhora advogada acaba de afirmar que a Abin já investigava as urnas desde 2020. O que é ‘investigava’?”, perguntou a ministra. “Excelência, confesso que não sei, mas está nos autos”, respondeu a defensora do subtenente Giancarlo Gomes Rodrigues.

Em uma segunda oportunidade, a advogada retornou à tribuna para explicar que a agência havia investigado a empresa que fornece as urnas eletrônicas. Em conversa com a Agência Pública, Malafaia disse que a informação consta no inquérito que apura o uso irregular da Abin, mais conhecido como Abin Paralela, em que seu cliente também consta como investigado.

Ela usou esse argumento ao longo de sua sustentação como forma de embasar a afirmação de que Giancarlo Gomes não produziu fake news. “Essas notícias que a acusação traz não foram postadas pelo próprio denunciado, eram notícias que já existiam”, afirmou Malafaia.

Giancarlo e Marcelo Bormevet, segundo a PGR, trabalhavam juntos na Abin, sob a gestão de Alexandre Ramagem, e teriam usado a estrutura estatal para monitorar opositores. “Não há vínculo entre Marcelo e os demais, ora, isso é necessário para a condenação de alguém por organização criminosa, não basta dizer que se reuniam”, defendeu o advogado de Bormevet.

O que disseram as defesas dos réus

De modo geral, os advogados dos acusados argumentaram que a denúncia da PGR não trazia narrativa detalhada das condutas relacionadas aos crimes imputados aos seus clientes. Thiago Ferreira da Silva, que representou Reginaldo Abreu, afirmou que os fatos descritos na denúncia “são genéricos, imprecisos e mais do que isso, anêmicos, frágeis”.

Segundo a PGR, o coronel teria proposto mudanças falsas em relatórios do Exército para ajustá-los às narrativas disseminadas nas redes sociais e teria impresso, no Palácio do Planalto, documentos sobre a criação de um “gabinete de crise” que atuaria após o golpe de Estado.

Primeira a fazer a sustentação, a defensora pública que representou o ex-major Ailton Barros, Érica de Oliveira Hartmann, argumentou que o militar “não tinha conhecimento do que ocorria [no âmbito da organização criminosa] e muito menos poder decisório sobre tais fatos”. De acordo com a PGR, Barros recebeu orientações para atacar os então comandantes do Exército e da Aeronáutica por se recusarem a apoiar o golpe.

“A denúncia pode ser perfeita e precisa em relação aos demais, mas em relação a Denicoli há um excesso acusatório”, destacou o advogado Zoser Hardman, que representa o major da reserva Angelo Denicoli. De acordo com a PGR, o militar teria atuado na produção e divulgação de fake news sobre o pleito de 2022 e teria feito a interlocução com o argentino Fernando Cerimedo, autor da live com ataques às urnas. Hardman questionou o fato de seu cliente ter sido denunciado e Cerimedo não – o argentino foi indiciado pela Polícia Federal.

Na mesma linha, a defesa do presidente do Instituto Voto Legal, Carlos Rocha, que, segundo a denúncia da PGR, teria produzido relatório com dados falsos sobre as urnas, levantou o fato de o presidente do Partido Liberal (PL), Valdemar da Costa Neto, que contratou o instituto, estar fora da lista de denunciados.

Já o advogado do tenente-coronel Guilherme Almeida seguiu o caminho de negar que seu cliente tenha produzido fake news. “Um homem e um celular jamais teriam capacidade de influenciar a movimentação de uma massa da magnitude do Rio de Janeiro”, destacou Leonardo Avelar.

O relator do caso, Alexandre de Moraes,  destacou, no entanto, que a investigação recuperou conversas em que Almeida tenta sustentar a falsa narrativa de fraude nas eleições e que ele defendia a convocação de protestos em frente ao Congresso Nacional. Para Alexandre de Moraes, a PGR “descreveu satisfatoriamente” os fatos criminosos contra todos os acusados: “Me parece aqui, com absoluta certeza, que para esse momento processual, a Procuradoria-Geral da República descreveu satisfatoriamente os fatos típicos e ilícitos. Descreveu satisfatoriamente todas as circunstâncias, todas as provas presentes na investigação realizada com extrema competência”, afirmou.

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