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Sanções como guerra civilizacional: o custo humanitário da pressão econômica dos EUA

Na prática, as sanções transformam o “livre mercado” em uma arma estratégica empunhada pelas potências dominantes para punir a dissidência e a desobediência

Peiman Salehi
Mural anti-imperialista pintado na Embaixada dos EUA em Teerã após a crise dos reféns. (Foto: Phillip Maiwald (Nikopol) / Wikimedia Commons)
Mural anti-imperialista pintado na Embaixada dos EUA em Teerã após a crise dos reféns. (Foto: Phillip Maiwald (Nikopol) / Wikimedia Commons)

As sanções econômicas são frequentemente descritas como alternativas “pacíficas” à guerra. No entanto, para milhões de pessoas em países como o Irã e a Venezuela, elas parecem uma guerra, mas por outros meios. Essas sanções, impulsionadas principalmente pela política externa dos EUA, devastaram os sistemas de saúde, inflacionaram os preços dos alimentos e perturbaram a vida cotidiana. Não se trata simplesmente de pressão econômica, mas de uma forma de guerra civilizacional que visa desmantelar o tecido social das nações.

No Irã, anos de sanções dos EUA restringiram severamente o acesso a medicamentos. A Human Rights Watch relata que pacientes com câncer, epilepsia e outras doenças crônicas enfrentam rotineiramente uma escassez que põe em risco suas vidas. Embora existam isenções humanitárias no papel, sanções secundárias – que penalizam bancos e empresas estrangeiras por negociar com o Irã – levaram a um excesso generalizado na busca de conformidade legal. O resultado: até mesmo a importação legal de medicamentos vitais é bloqueada.

Como observou um oncologista de Teerã: “Temos o conhecimento para tratar nossos pacientes, mas não as ferramentas. As sanções transformaram tratamentos simples em tarefas impossíveis”. Um caso trágico é o de Armin, um menino de 7 anos com hemofilia, cuja família não conseguiu obter um coagulante essencial. “O medicamento existe”, disse sua mãe, “mas ninguém se atreve a vendê-lo ao Irã”. Armin morreu de complicações evitáveis devido a este cerco silencioso.

Na Venezuela, especialistas da ONU classificaram a situação como uma “catástrofe humanitária”. Os hospitais carecem de suprimentos básicos e milhões fugiram devido ao colapso econômico. Em 2020, o relator da ONU Alfred-Maurice de Zayas declarou: “As sanções econômicas modernas e os bloqueios são comparáveis aos cercos medievais”.

Essas políticas não pressionam apenas os governos; elas corroem sociedades inteiras. As restrições bancárias paralisam a ajuda humanitária. A inflação e a escassez de alimentos enfraquecem a coesão civil. As indústrias locais entram em colapso sob o peso do isolamento. Isso não é diplomacia – é guerra econômica disfarçada pela linguagem jurídica.

Mesmo dentro do pensamento liberal, essas sanções são contraditórias. Pensadores como Locke e Smith enfatizaram a troca voluntária e os direitos inalienáveis, princípios que são minados quando as sanções punem populações inteiras. Na prática, as sanções transformam o “livre mercado” em uma arma estratégica empunhada pelas potências dominantes para punir a dissidência e a desobediência.

Essa contradição expõe uma verdade mais profunda: as sanções não são apenas ferramentas de política externa – elas representam a traição do liberalismo pelos próprios regimes que afirmam defendê-lo. Quando o Ocidente impõe punições econômicas que privam crianças de medicamentos ou famílias de alimentos, ele mina os alicerces morais de sua própria filosofia política.

No entanto, a resistência continua. As nações sancionadas estão formando novas alianças. O Irã aprofunda seus laços com a China e a Rússia. A Venezuela recebe ajuda com combustível de aliados. Em todo o Sul Global, vozes se levantam contra a punição coletiva.

Em 2023, mais de 200 organizações exortaram a ONU a abordar o custo humanitário das sanções. Grupos como o Code Pink protestaram em Washington, D.C., contra a economia de cerco que prejudica mais os civis do que os Estados.

É importante ressaltar que, com os recentes desenvolvimentos políticos, como a queda do governo de Assad na Síria, o discurso global sobre sanções está entrando em uma nova fase. Embora as sanções anteriores sob a Lei César dos Estados Unidos tenham prejudicado gravemente a reconstrução e a ajuda à Síria, a trajetória futura permanece incerta. O que está claro, no entanto, é que o uso de sanções como ferramenta de domínio deve ser examinado criticamente, tanto em termos de política quanto de princípios.

Punir uma nação pode servir a objetivos estratégicos de curto prazo. Mas quando esse isolamento faz com que uma criança fique sem insulina ou um paciente morra sem tratamento, torna-se algo muito mais sombrio. Não é mais política – é crueldade sistematizada.

As sanções devem ser reconhecidas pelo que são: guerra econômica. E, como todas as guerras, suas vítimas merecem justiça.

Globetrotter O Globetrotter é um serviço independente de notícias e análises internacionais voltado aos povos do Sul Global.

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