Já faz um ano desde que Israel invadiu Rafah pela primeira vez e cruzou a ilusória “linha vermelha” de Biden. O exército israelense destruiu a passagem de Rafah, isolando Gaza do Egito e cortando-a completamente do mundo exterior. Israel ficou livre para promover o deslocamento em massa de palestinos para longe da fronteira egípcia, embora nunca tenha admitido tal objetivo.
Agora, porém, Rafah não existe mais, e o plano recentemente aprovado por Israel de reocupar Gaza indefinidamente tornou explícito o que muitos já esperavam há meses: que o motivo oculto da criação de instalações militares permanentes e zonas tampão em Gaza é facilitar a expulsão em massa dos palestinos.
Israel já está anunciando abertamente suas intenções e divulgando publicamente a limpeza étnica como “migração voluntária”. Isso não aconteceu da noite para o dia, mas foi o resultado de um processo lento e deliberado de confinar os palestinos em sub-guetos de concentração sob bombardeio, enquanto criava vastas zonas tampão militares em áreas devastadas do território de Gaza. O plano foi implementado aos poucos nos últimos 18 meses, mas agora as peças do quebra-cabeça estão começando a se encaixar.
No início de maio, Benjamin Netanyahu anunciou que o principal objetivo de guerra de Israel, “derrotar seus inimigos”, passou a substituir a meta de libertar os prisioneiros israelenses em Gaza, ecoando declarações anteriores de seu ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, o chamado “linha-dura” do governo.
Isso não é uma novidade. Esse sempre foi o plano de Israel, mas o governo israelense teve que escalonar sua implementação ao longo de um ano e meio devido a uma série de restrições internas e externas. Ainda assim, o governo israelense continuou armando o cenário para a limpeza étnica a cada passo.
O momento decisivo ocorreu em fevereiro, durante o curto cessar-fogo entre Israel e o Hamas, quando o presidente dos EUA, Trump, articulou seu chocante plano para os EUA “possuírem” Gaza e transformá-la em uma “Riviera do Oriente Médio”, enquanto o povo de Gaza seria realocado em outro lugar. De uma hora para a outra, o presidente dos Estados Unidos estava endossando um plano que Israel nunca ousou expressar em público. Mesmo um mês antes, Netanyahu havia dito em uma declaração televisionada que “Israel não tem intenção de reocupar permanentemente Gaza ou deslocar sua população civil”.
Este é exatamente o plano que o gabinete de guerra israelense acaba de aprovar.
Desde que Trump fez sua declaração em fevereiro, da qual mais tarde se retratou, Israel se sentiu encorajado a seguir em frente com seu plano. A retomada da guerra e a ruptura do cessar-fogo são em parte motivadas por essa nova determinação de levar adiante a “solução final” de Israel para a questão de Gaza. A razão pela qual Israel é capaz fazê-lo é porque a comunidade internacional mal levantou um dedo para impedir suas ações.
Mas o anúncio de Trump em fevereiro não foi onde se originou a estratégia de Israel para tomar o controle da faixa e deslocar seu povo. Muito antes de Israel ser forçado por Trump a firmar o cessar-fogo com o Hamas, seu exército havia lançado toda a sua força em um plano militar proposto por um grupo de generais israelenses com base em uma visão anterior apresentada pelo general aposentado Giora Eiland. Apelidado de “o Plano dos Generais”, seu objetivo era despovoar completamente o norte de Gaza por meio de cerco e fome. A implementação do plano incluía isolar completamente os 400 mil palestinos que residiam na área e deixá-los sem comida, água ou medicamentos; uma onda ininterrupta de demolições e detonações de prédios residenciais e casas; bombardeios generalizados; e a evacuação direta e forçada de escolas transformadas em abrigos e hospitais no norte.
Quando o cessar-fogo foi acordado, em 19 de janeiro, a população do norte de Gaza havia sido reduzida a menos de 100 mil pessoas. O último hospital em funcionamento na área, o Hospital Kamal Adwan, também foi evacuado à força após um cerco de 80 dias e vários ataques diretos de drones israelenses. As forças israelenses também sequestraram vários membros da equipe médica, incluindo o diretor do hospital, Dr. Hussam Abu Safiya, que continua detido pelas forças israelenses até hoje.
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O Plano dos Generais fracassou depois que centenas de milhares de palestinos retornaram ao norte em uma marcha histórica durante o cessar-fogo, montando acampamentos ao lado dos escombros a que foram reduzidas suas casas e enviando uma mensagem clara de que seu deslocamento não tinha sido nada “voluntário”.
Os planos de Israel para concretizar sua solução para o “problema de Gaza” foram frustrados, e o país foi arrastado para o cessar-fogo aos gritos e pontapés. Israel continuou procrastinando em todas as etapas do cessar-fogo, sabotando-o em todas as oportunidades e recusando-se a entrar em negociações que levassem a um fim definitivo da guerra. Continuou ganhando tempo, esperando por uma abertura. Trump deu a Israel a abertura de que precisava em fevereiro, e o gabinete de guerra de Netanyahu tem enfrentado todos os obstáculos internos do sistema político israelense desde então.
Como Israel começou a implementar seu plano de “migração voluntária”
Em março, o Ministério da Defesa israelense aprovou a criação de um departamento especial para promover a expulsão de palestinos. Na época, o cessar-fogo entre Israel e o Hamas ainda estava em vigor, embora fragilizado, já que Israel se recusava a avançar para a segunda fase das negociações de cessar-fogo, que envolveria negociações para o fim definitivo da guerra. Cinco dias após o rompimento do cessar-fogo, o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Mike Waltz, ainda afirmava que a ideia de transferir palestinos era “prática” e “viável”.
Então, no início de abril, Israel revelou a criação de uma nova faixa militarizada ao sul de Khan Younis, chamada de Corredor Morag, que isolaria a província mais ao sul de Rafah do resto de Gaza. Tudo ao sul de Morag, incluindo toda Rafah, foi anunciado como parte de uma zona tampão militar, reduzindo a superfície do enclave palestino em um quinto. Isso foi possível graças à intensificação da campanha de bombardeios e demolições de Rafah pelo exército israelense desde que invadiu a província em maio de 2024, destruindo toda a infraestrutura da cidade.
O Canal 12 de Israel informou que o objetivo do Corredor Morag era facilitar a “migração voluntária” dos palestinos, enquanto o ministro da Defesa de Israel, Israel Katz, anunciou em uma declaração televisionada que o exército israelense estava “rompendo” a continuidade da Faixa de Gaza e implementando o plano de migração voluntária. Katz reiterou esse plano semanas depois, afirmando que a estratégia de Israel em Gaza incluía destruir a infraestrutura, bloquear a entrada de ajuda humanitária e “promover a transferência voluntária”.
Quem é responsável?
Desde o início do genocídio israelense em Gaza, Israel revelou partes de seu plano final em etapas. No início do genocídio, o então ministro da Defesa, Yoav Gallant, disse que Israel estava impondo um “cerco total” a Gaza, impedindo a entrada de alimentos, água, eletricidade ou combustível e rotulando os palestinos como “animais humanos”. As implicações genocidas do objetivo final da guerra eram evidentes, mas o desenrolar do plano de Israel em Gaza continuou oculto politicamente por uma retórica interminável sobre negociações de cessar-fogo e até mesmo a libertação de reféns israelenses. O governo israelense agora não faz mais alusão à importância dos reféns, depois de oficialmente transferi-los para o fim da lista de prioridades dos objetivos de guerra.
A cada passo, Israel não enfrentou consequências práticas por sua escalada, e nenhum governo com qualquer influência sobre Israel tomou medidas para impor quaisquer retaliações políticas. Mesmo a rejeição oficial generalizada dos governos europeus e árabes ao plano de Trump para Gaza não foi seguida de nenhuma ação. E, é claro, a recusa de Israel em avançar para a segunda fase do cessar-fogo e suas constantes violações da trégua foram recebidas com silêncio. Esse silêncio continua ensurdecedor enquanto Israel esculpe o Corredor Morag, apaga Rafah e agora se prepara para fazer o mesmo com outras partes de Gaza.
A impunidade total acompanhou cada um dos marcos de Israel na sua marcha para exterminar Gaza, desde as centenas de bombardeios de escolas, hospitais, trabalhadores humanitários, paramédicos e jornalistas, até a fome deliberada da população de Gaza. Agora, a permanência da ocupação israelense de Gaza é oficial, assim como o objetivo declarado de limpar etnicamente seu povo. E ainda não temos nenhuma reação.
O fato de que o silêncio persiste enquanto os objetivos finais de Israel ficam cada vez mais claros confirma que o extermínio de Gaza nunca foi a visão da extrema direita israelense, nem mesmo de Netanyahu pessoalmente; foi uma decisão internacional.
Esta deve ser uma constatação básica de qualquer relato sobre a destruição da vida palestina, incluindo a iminente anexação israelense da Cisjordânia e a colonização total de Jerusalém Oriental, do Naqab (Negev) e de qualquer outra parte da Palestina histórica onde o povo palestino ainda luta para preservar sua existência coletiva.
(*) Tradução de Raul Chiliani