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China: o ponto fraco da geopolítica de Dugin

A geopolítica de Dugin nunca foi uma mera “resistência ao Ocidente”, mas sim um projeto restauracionista agressivo, que visa restaurar zonas de influência russa perdidas, inclusive contra a China

Euclides Vasconcelos
O presidente russo, Vladimir Putin, com o secretário geral do Comitê Central do Partido Comunista da China, Xi Jinping, em Moscou. Junho de 2019. (Foto: The Presidential Press and Information Office / Kremlin / Wikimedia Commons))
O presidente russo, Vladimir Putin, com o secretário geral do Comitê Central do Partido Comunista da China, Xi Jinping, em Moscou. Junho de 2019. (Foto: The Presidential Press and Information Office / Kremlin / Wikimedia Commons))

Ao longo dos últimos anos, o filósofo russo Alexander Dugin conseguiu cultivar no Brasil, com certo sucesso, um círculo de discípulos que hoje são responsáveis por propagandear sua produção e desdobrar suas teorias – embora, a bem da verdade, o façam sem a mesma habilidade e refino que Dugin costuma imprimir em suas formulações. O interesse por sua obra se fortaleceu consideravelmente com a publicação, no Brasil, de Fundamentos da Geopolítica, seu livro mais famoso e influente, lançado originalmente em 1997 e publicado em português no ano passado, por iniciativa editorial dos que há alguns anos difundem sua obra no Brasil. 

Mais do que um tratado de geopolítica, o livro se tornou um artefato ideológico de impacto em alguns nichos, encontrando eco em diversos setores chauvinistas do país. No entanto, parte da recepção ocidental – e, mais recentemente, brasileira – embarcou numa leitura caricatural de Dugin, tomando-o como o “guru de Putin”, rótulo repetido à exaustão. Essa simplificação, apesar de sedutora, não se sustenta diante de evidências muito fáceis de confrontar, sendo o tema da China um dos maiores obstáculos a essa identificação direta. Em Fundamentos da Geopolítica, Dugin advoga abertamente uma postura agressiva contra a China, trata-a como ameaça estratégica à Rússia e propõe até mesmo o fomento de movimentos separatistas dentro de seu território. Putin, por sua vez, seguiu na direção oposta ao longo de seus mandatos, cultivando com Pequim uma relação pragmática e cada vez mais estreita, especialmente a partir dos anos 2010. Isso por si só já deveria bastar para questionar a validade da tese do “guru de Putin”. 

Esse “desencontro” é tão flagrante que não pode ser ignorado. É esse o caso do discreto reconhecimento do autor do prefácio da edição brasileira, que, em vez de enfrentar de frente a contradição central do livro, prefere descrevê-la de maneira oblíqua, quase como um acidente de percurso. Segundo ele, “é muito interessante ver a evolução da perspectiva duginiana em relação à China”, mudança que atribui não à necessidade de revisão crítica de suas posições passadas por parte do autor, mas ao “reencontro da própria China com seu caminho” (p. 12). Dugin, portanto, estaria apenas reagindo com sensibilidade ao “neomaoísta-confucionista” Xi Jinping, como se a guinada teórica operada entre Fundamentos da Geopolítica e Teoria do Mundo Multipolar (publicado 15 anos depois) fosse uma atualização serena, e não uma reviravolta radical e curiosamente conveniente frente à nova correlação de forças. 

Um novo tratado do velho chauvinismo grão-russo 

Publicado pela primeira vez em 1997, Fundamentos da Geopolítica não apresenta propriamente uma nova teoria geopolítica. O que há ali é, antes, uma reorganização do cânone clássico – Mackinder e Haushofer, principalmente – a partir de uma premissa central: a Rússia como sujeito histórico do destino eurasiático. É uma geopolítica de poder terrestre, “continentalista”, que vê no mar e em seus impérios (sobretudo o americano, em nosso tempo) o inimigo existencial do Heartland. A principal “novidade” do livro, portanto, não está em sua arquitetura teórica, mas no deslocamento do centro gravitacional de geopolítica para Moscou. Se Mackinder desenvolve sua teoria preocupado que uma união do Heartland (ou seu controle por uma única potência) viesse a ameaçar a hegemonia inglesa sobre os mares e sobre o mundo, Dugin fala a partir do Heartland

Esse deslocamento é reforçado por elementos que extrapolam os limites do pensamento estratégico clássico. Entrelaçada com suas proposições geopolíticas, a obra trabalha o conceito de “geografia sagrada”, uma dinâmica simbólica entre norte e sul, céu e terra, luz e trevas – que insere no discurso geopolítico um forte componente esotérico. Esses acréscimos servem menos à racionalidade estratégica do que à legitimação de uma missão espiritual: o livro é apresentado não apenas como análise, mas como profecia. A Rússia, nessa lógica, não age apenas por interesse nacional, mas por destino civilizacional. Esse componente metafísico, de inspiração tradicionalista, pretende fazer dos Fundamentos o “livro didático” de um reerguimento russo pós-colapso soviético. 

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No plano do conteúdo, o livro é um extenso roteiro para a reorganização do mundo em linhas de afinidade, em alianças para a construção do “novo império”. Sugere a fragmentação da Ucrânia, a divisão da Europa em zonas de influência, a desestabilização dos EUA por meio de fissuras internas e a formação de um grande eixo eurasiático sob tutela russa. Em meio a um messianismo russo sem refinamento algum, uma escolha salta aos olhos pela dissonância: Dugin defende, com todas as letras, que no tabuleiro asiático a Rússia deve se aliar ao Japão, e não à China. A proposta pode parecer um desvario, dada a memória de episódios como a guerra russo-japonesa (1904–1905), em que o Império Russo foi derrotado e humilhado por um Japão emergente. Mas a escolha não é irracional nem inédita: ela ecoa diretamente as teses de Karl Haushofer, o mais famoso teórico da geopolitik nazista-alemã, que via no Japão um parceiro natural para conter a influência estadunidense no Pacífico e para garantir a retaguarda geográfica da eurásia. 

O que se revela, nesse ponto, é que o chauvinismo grão-russo de Dugin não o impede de abraçar o velho inimigo do leste em nome de um projeto maior. O curioso, no entanto, é que será justamente essa aliança quase sagrada que ele abandonará mais adiante – sem aviso nem justificativa. 

Um perigo para a Rússia 

No coração de Fundamentos da Geopolítica, que consolidou a reputação do filósofo como arquiteto do eurasianismo contemporâneo, está um diagnóstico alarmante: a China representa, para a Rússia, o maior perigo, “o vizinho geopolítico mais perigoso ao sul” (2024, p. 374). Essa percepção atravessa o livro como um eixo de tensão, oferecendo uma base importante para desfazer o mito – tão útil a comentaristas apressados – de que Dugin seria um “guru de Putin”. A divergência entre ambos na questão chinesa é fundamental e definitiva. 

Dugin desenvolve e é herdeiro de um antigo assombro segundo o qual o crescimento populacional chinês inevitavelmente colocará em marcha uma política expansionista. E os alvos mais vulneráveis dessa expansão seriam justamente o Cazaquistão e a Sibéria – terras de baixa densidade populacional e recursos abundantes. Nesse contexto, a China aparece como uma ameaça “posicional” com localização crítica: sua simples existência representa um risco geopolítico direto ao coração do Heartland russo. 

Mas a resposta duginiana a esse problema não é o reforço de fronteiras ou acordos bilaterais de contenção. Sua proposta é de outra ordem – uma reengenharia política e étnica radical da Ásia interior. Para Dugin, a China deve ser desmembrada, literalmente: “estamos falando de pressão geopolítica posicional forçada, provocação de desintegração territorial, fragmentação, redivisão política e administrativa do Estado.” (p. 376) 

É nesse ponto que a proposta geopolítica de Dugin se aproxima de uma reencenação do “século das humilhações” – o período entre as Guerras do Ópio e a vitória comunista de 1949, em que potências ocidentais, Japão e Rússia intervieram militarmente, impuseram tratados desiguais e arrancaram concessões territoriais do império chinês. A ironia, é claro, está no fato de que Dugin resgata essa lógica não mais a partir de uma disputa imperial entre Rússia e Japão, como ocorreu nos séculos XIX e XX, mas de uma nova proposta de aliança entre Moscou e Tóquio, com vistas a repartir o mesmo butim que antes disputaram. 

O que Dugin propõe é a criação de um grande cordão sanitário entre a Rússia e a China, chamando-o de cinturão de segurança: “O Tibete, Xinjiang, a Mongólia e a Manchúria constituem o cinturão de segurança da Rússia” (p. 378). Esse cordão inclui a criação ou o apoio a entidades políticas separadas dentro do atual território chinês: sejam elas uma federação mongol-tibetana, uma Manchúria independente, uma possível anexação de Xinjiang (como já se desejava nos tempos imperiais russos) ou o incentivo à insurreição em regiões de maioria étnica não han (ou tudo isso combinado). O fator religioso é instrumentalizado: o budismo tibetano e mongol, bem como o islamismo em Xinjiang, são apresentados como potenciais catalisadores de uma resistência pró-russa e antichinesa. 

A ideia de reconstruir a Manchúria como Estado autônomo, por exemplo, ecoa diretamente a política japonesa no período da invasão da China, quando foi criado o fantoche de Manchukuo com capital em Harbin. Segundo Dugin, reviver esse modelo, agora com o apoio russo, permitiria romper a coesão territorial chinesa e ampliar o campo de influência eurasiática (p. 377-378). 

Essa aliança – aparentemente contraintuitiva – entre Rússia e Japão no Extremo-Oriente se sustenta em razões que remontam ao pensamento de Karl Haushofer, figura central no desenvolvimento da geopolítica alemã do entreguerras. Haushofer também via no Japão um parceiro estratégico natural do poder continental eurasiático – o que Dugin retoma com entusiasmo: 

“A federação do espaço do Pacífico em torno do Japão foi a principal ideia do chamado ‘Projeto Pan-Asiático’, que começou a ser implementado nas décadas de 1930 e 1940 e foi interrompido apenas pela derrota dos países do Eixo na guerra

[…] O projeto pan-asiático está no centro da vocação oriental do Novo Império. Uma aliança com o Japão é vital. O eixo Moscou-Tóquio, em oposição ao eixo Moscou-Pequim, é prioritário e promissor, abrindo horizontes para a construção de um império continental que acabará por completar a Eurásia geopoliticamente […].” (destaques meus, p. 244-246) 

A geopolítica de Dugin, nesse cenário, nunca foi uma mera “resistência ao Ocidente”, mas sim um projeto restauracionista agressivo, que visa restaurar zonas de influência perdidas, como o Tibete e a Mongólia, ao mesmo tempo que reativa alianças de inspiração fascista. Mais do que ressentimento civilizacional, há aqui uma engenharia deliberada de rearranjo territorial, que transforma povos e religiões em peças num xadrez continental – tudo sob o pretexto de proteger a Rússia de uma ameaça que, no fundo, é mais temida por seu potencial de rivalidade do que por qualquer agressão concreta. 

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A mesma política de contenção à China, tão cara aos EUA e seus aliados no Indo-Pacífico, é também o eixo estratégico da Rússia eurasianista de Dugin. O que ele prevê não é uma aliança sino-russa contra o Ocidente, mas sim a partilha da China por uma nova coalizão continental. E mais: essa coalizão deve ser liderada por uma Rússia auxiliada pelo mesmo Japão que, no passado, derrotou o Império Russo no Pacífico. Aos olhos do autor, é precisamente nessa manobra de retorno a alianças interrompidas que a geopolítica russa encontrará sua vocação profética. O eixo Moscou-Tóquio não é apenas uma escolha pragmática: é a expressão de um destino histórico que, para ele, já estava inscrito na “geografia sagrada” do continente – destino histórico esse já rascunhado antes, pelo já mancionado general nazista Karl Haushofer, de quem Dugin é herdeiro teórico convicto e confesso. Se a escolha parece absurda, é porque, como toda proposta de poder que se quer visionária, ela ainda exige que o mundo real se curve às exigências da teoria. 

Já não é mais preciso escolher 

Quinze anos separam Fundamentos da Geopolítica (1997) da formulação madura de Teoria do Mundo Multipolar (2012). Neste intervalo, não foi apenas o cenário internacional que se transformou. O próprio Alexander Dugin – que outrora via na China uma ameaça posicional crítica, a ser contida e, idealmente, desmontada – parece recuar. Mas apenas até certo ponto. 

Presumivelmente em deferência à orientação oficial do Kremlin, que desde os anos 2000 investia no aprofundamento da parceria com Pequim, a posição de Dugin sobre o assunto começou a suavizar nessa mesma década. Mesmo ao reconhecer a China como parceira importante, Dugin continuava a insistir que as relações da Rússia com o Japão, o Irã e a Índia eram mais vitais e significativas. Esse equilíbrio instável entre a realpolitik e a profecia é o fio condutor do seu pensamento “maduro”. A ameaça chinesa não desaparece – ela apenas se desloca do centro do palco. 

No seu Teoria do Mundo Multipolar, Dugin reformula o vocabulário e atualiza os eixos geopolíticos da Eurásia. A retórica beligerante cede lugar a um léxico de “polos”, “esferas de influência” e “reivindicações legítimas”. A China, agora, deixa de ser inimiga imediata e passa a ocupar um lugar no tabuleiro multipolar – mas não sem ressalvas. 

O Eixo Moscou-Tóquio, tão caro ao Dugin de 1997, dá lugar a um mais genérico “Eixo Leste: Pequim-Moscou”. É um gesto estratégico. O Japão ainda é o parceiro ideal, mas a China é o parceiro possível. Na lógica do seu multipolarismo, que seus fãs querem fazer passar como o único “modelo” existente, já não é preciso escolher: “A quarta zona é o Pacífico, onde duas potências, China e Japão, constituem um polo reivindicativo. Esta zona pode ser configurada de diferentes maneiras” (p. 401). 

Mas os limites de tais “diferentes maneiras” são rigorosamente traçados. Dugin insiste que o papel da China só é aceitável enquanto ela atuar como polo regional no Pacífico – e não enquanto potência expansionista voltada ao Norte, à Sibéria, ou à Ásia Central (a “ameaça” principal mencionada uma e outra vez nos Fundamentos.) 

Essa é a concessão máxima: a China pode existir como polo, desde que voltada para o Sul e o Leste — jamais para o Norte ou o Oeste. A ameaça demográfica e a disputa por recursos continuam a ser motivo de preocupação explícita: 

“Há uma série de temas nas relações entre a Rússia e a China que poderiam dificultar a consolidação dos esforços para construir uma estrutura multipolar. Temos a expansão demográfica dos chineses nos territórios escassamente povoados da Sibéria, que ameaça mudar radicalmente a própria estrutura social da sociedade russa e representa uma ameaça direta à sua segurança. […] A segunda questão é a influência da China na Ásia Central, uma área estratégica próxima à Rússia, rica em recursos naturais e vastos territórios, mas muito escassamente povoados.” (p. 438-439) 

A lógica é clara: o avanço da China para o norte ou o oeste – isto é, em direção à Rússia ou às ex-repúblicas soviéticas – constitui violação dos princípios da sua multipolaridade. Em outras palavras, a multipolaridade de Dugin é uma multipolaridade russocêntrica: ela exige que cada polo conheça seus limites impostos a partir do centro de gravidade: Moscou. A China só é aceitável como parceira se não competir pelas zonas que a Rússia (de Dugin) reivindica como suas esferas de influência exclusivas.

Nesse cenário, o Japão reaparece. E não apenas como opção alternativa: ele permanece, para Dugin, a escolha preferencial. O Japão é ideal porque não ameaça demograficamente a Rússia, oferece tecnologias valiosas e permitiria equipar a Sibéria com velocidade e eficiência. Mas há uma condição inegociável; o Japão precisa se libertar da influência dos Estados Unidos: 

“O Japão seria o parceiro ideal da Rússia no Extremo Oriente, porque demograficamente, ao contrário da China, ele não é um problema; possui recursos naturais vitais (o que permitiria à Rússia, contando com o Japão, equipar a Sibéria tecnológica e socialmente num ritmo acelerado) e tem um enorme poder econômico, especialmente no campo da alta tecnologia, que é estrategicamente importante para a economia russa. Mas para que tal parceria seja possível, o Japão deve dar o passo decisivo de se libertar da influência estadunidense.” (p. 440) 

Dugin chega mesmo a imaginar um cenário de liderança compartilhada entre China e Japão no Pacífico – desde que ambos operem em moldes distintos da atual ordem liberal: 

“Atualmente, dado o status quo, o lugar do ‘polo’ da zona do Pacífico pode ser reservado para duas potências: China e Japão. Ambos têm legitimidade razoável para liderar, sozinhos ou não, em um nível superior em comparação com todos os outros países da região do Extremo Oriente.” (p. 441) 

Assim, o Dugin de Teoria do Mundo Multipolar já não propõe dividir a China – ele propõe moldá-la. E ao fazer isso, se afasta da retórica beligerante dos anos noventa e adota uma posição mais cínica: se a China puder ser contida dentro de um eixo vertical Sul-Norte limitado ao Pacífico, e se o Japão puder, um dia, ser libertado do domínio americano, então será possível à Rússia colher os frutos da ordem multipolar sem renunciar à centralidade de Moscou. 

É um tipo de revisionismo, mas não no sentido em que o termo costuma ser aplicado. Dugin não reescreve sua visão: ele apenas a recalibra, conservando sua estrutura e ajustando sua retórica. O velho temor à China permanece; o desejo de uma aliança com o Japão resiste; e o objetivo final – a supremacia do Heartland russo sobre a Eurásia – continua intacto. O que muda é o vocabulário. Em resumo: na fantasia multipolar de Dugin já não é mais preciso escolher entre China e Japão, mas ainda é preciso sonhar que um dia o Japão escolha a Rússia. 

Rivalidade só depois da multipolaridade 

O Dugin que hoje visita universidades chinesas, concede entrevistas à imprensa de Pequim e defende a inclusão da Rússia na Iniciativa Cinturão e Rota parece, à primeira vista, ter feito uma guinada radical em relação ao estrategista que, nos anos 1990, via na China uma ameaça existencial. Mas a palavra-chave aqui não necessariamente é “guinada”. Pode ser simplesmente “oportunismo”. 

A partir de 2019, quando ministrou uma série de aulas na Universidade de Fudan, em Xangai, Dugin passou a ensaiar uma nova postura: reverente, colaborativa, quase subalterna. O tom é o de um geopolítico em dívida com a realidade. A China de Xi Jinping já não pode ser tratada como uma variável incômoda do sistema internacional. Dugin agora reconhece aquilo que passou duas décadas tentando negar: “Está totalmente fora de questão e impossível na situação atual que a Rússia possa fingir controlar a China, e não há desejo, vontade, recursos, possibilidade, capacidade ou habilidade para fazê-lo.” (2019, n.p.) 

É uma declaração que surpreende menos por sua franqueza do que por sua função. O grande estrategista russo, que antes projetava sobre a China os piores temores demográficos e expansionistas, agora elogia sua grandeza. Chega mesmo a reformular a velha teoria do Rimland, de Spykman, para adaptar-se à nova hierarquia global: 

“A China é seu próprio mundo que poderia aplicar princípios geopolíticos à própria China. É grande demais para ser apenas uma parte de Rimland. […] Agora existe uma fórmula para o século 21, quando a China é a maior potência da Rimland: ‘Quem controla a China, controla a Rimland; quem controla Rimland, controla Heartland; e quem controla Heartland, governa o mundo.’” (2019, n.p.) 

Ironicamente, o reconhecimento da impotência russa em face da ascensão chinesa é celebrado como uma virtude. A fraqueza de Moscou, diz Dugin, é “uma coisa muito boa para a multipolaridade”. Como se abdicar da própria doutrina fosse uma demonstração de coerência doutrinária. O homem que escreveu que “a China deve ser desmontada”, agora se apresenta como colaborador acadêmico da potência que antes considerava inimiga. 

Na entrevista à revista turca Belt & Road Initiative Quarterly em 2020, o tom conciliador se repete – mas desta vez com um enredo mais complexo. Dugin afirma que a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), nos seus primeiros passos, era um instrumento clássico do globalismo atlantista, concebido para marginalizar a Rússia: “A Iniciativa Cinturão e Rota começou como uma espécie de projeto atlantista, concebido pela elite chinesa com a ajuda de globalistas americanos. […] Inicialmente, a ideia era evitar a Rússia, cercá-la e cortar seu acesso aos mares quentes.” (2020, p. 10)

E, no entanto, segue-se uma pirueta retórica: a China, segundo ele, “chegou à conclusão” (p. 11) de que incluir a Rússia era necessário – como se Moscou tivesse sido admitida no salão onde antes batia à porta. 

O resultado é um Eurasianismo de segunda mão, onde a Rússia já não dita as regras do tabuleiro, mas busca garantias de não ser deixada de fora. As eventuais rivalidades com a China (ou com o Irã, Turquia, Índia) não desaparecem – mas são adiadas, em nome de uma prioridade superior: “Talvez a Turquia, Rússia, Irã e China sejam rivais geopolíticos, mas isso é de importância secundária. Precisamos deixar essa rivalidade de lado.” (p. 12) 

A “antiga” rivalidade dos Fundamentos, é claro, fica pra depois de atingida a multipolaridade: “Só após criar e garantir uma ordem mundial multipolar poderíamos falar sobre rivalidade geopolítica entre esses países e grandes civilizações – não antes.” (p. 13) 

A culminância desse teatro ocorre em 2024, quando Dugin concede uma longa entrevista ao jornal estatal chinës Global Times. O repórter chinês relembra as posições hostis de Dugin nos anos 1990, pergunta se ele “mudou de opinião” e insinua que o próprio Dugin foi surpreendido pelo rumo que a China tomou. A resposta é uma rendição completa – cuidadosamente embalada como amadurecimento intelectual: “Minhas opiniões mudaram porque a China mudou, o mundo mudou, a Rússia mudou, a geopolítica mudou. […] Quanto mais eu sei sobre a China, mais eu a admiro.” (DUGIN, 2024) 

A frase final tem a sonoridade de um veredicto. O antigo acusador agora é discípulo. Ele finge que mudou, e os chineses fingem que acreditam. 

O crepúsculo de uma Eurásia russocêntrica

A geopolítica duginiana, como todas as outras, faz de seu país o umbigo do mundo. Toda sua construção teórica gira em torno da centralidade do Heartland, e de sua missão civilizatória e geoestratégica contra o “mundo exterior” – o mar, o comércio, o liberalismo, o Ocidente. Ainda que reestruturada para o século XXI sob o nome de Teoria do Mundo Multipolar, a sua doutrina permanece russa em essência: a multipolaridade de Dugin é o mundo dividido em zonas de influência – e a da Rússia, por óbvio, deveria irradiar de Moscou para toda a Eurásia. Mas não é bem para essa multipolaridade que o século XXI parece caminhar. 

Desde Zbigniew Brzezinski, não faltam advertências sobre a vulnerabilidade da Rússia em sua porção centro-asiática, o “ventre mole” do império. E, de fato, é por ali que o eixo do poder geopolítico parece começar a se mover. Ainda nos anos 1990, Dugin e os estrategistas norte-americanos compartilhavam um erro de cálculo simétrico: ambos mantiveram os olhos voltados para Moscou, enquanto a China emergia em silêncio como a potência que mais soube converter crescimento econômico em influência diplomática, militar e regional. O próprio Dugin, como vimos, só aceitou tardiamente o protagonismo chinês – ainda que com os dedos cruzados por trás das costas. 

A ascensão da China não pegou só Dugin de surpresa. Também analistas ocidentais, apegados a uma postura antirrussa de princípio, ficaram presos ao velho paradigma do Heartland como “coração russo” do continente. E, no entanto, é a China que hoje assume a iniciativa de novas rotas comerciais, corredores energéticos, sistemas tecnológicos e alianças políticas sobre esse mesmo espaço, redesenhando a cartografia da Eurásia. 

A ilusão de uma Rússia como centro irradiador da civilização eurasiática contrasta com o desconforto de setores mais chauvinistas russos com o protagonismo de Pequim. Para esses setores, há um receio interno de que a Rússia esteja se transformando num mero fornecedor de recursos naturais para uma China grandiosa – algo que, ironicamente, se acontecesse diante do “Ocidente” os setores liberais russos chamariam de “integração ao mercado mundial”, ao passo que os eurasianistas rotulariam de uma mera submissão.

Os sinais de Moscou, no entanto, vão na direção oposta ao que Dugin “previu” (e propôs): em vez de se impor como polo eurasiano absoluto e inquestionável, Putin tem reforçado a aliança estratégica com Pequim, intensificando cooperação em energia, defesa e infraestrutura. Se nos Fundamentos a China era uma rival a ser contida, no mundo real, ela é cada vez mais a parceira a ser cortejada. No cenário de hoje, a pergunta que permanece não é se a China pode se espraiar para a Ásia Central – ela já o faz, pelo menos economicamente. A grande pergunta é como se portará a Rússia diante desse novo arranjo como parte de uma multipolaridade funcional, ou se quererá insistir no papel central em um tabuleiro que com o vento se desloca para o leste. 

No fim, se fosse “guru de Putin”, Dugin teria errado o caminho do discípulo. A Rússia que emerge na terceira década do século XXI parece se resignar, por pragmatismo ou necessidade, a um papel secundário na massa continental que cada vez mais gira em torno de Pequim. E se a doutrina de Mackinder investigava o controlador do Heartland para saber quem controlaria o mundo, talvez a pergunta agora precise ser invertida: o que acontece quando o destino do mundo passa cada vez menos por aqueles que antes davam as cartas?

Ainda que nunca feita, a grande pergunta se mantém: afinal de contas, Dugin abandonou Haushofer? Uma vez que o grande ideológo da geopolitik nazista e sua teoria do bloco continental – a aliança estratégica entre Alemanha, Rússia e Japão – foi a principal referência para que Dugin, em seu Fundamentos da Geopolitica, propusesse repartir e colonizar a China em aliança com o Japão, nada mais óbvio que esperar que, ao mudar de posição, Dugin também rompa com quem o levou àquelas conclusões. Seria esse o caminho lógico de alguém cujas mudanças se pretendam sinceras. Do contrário, ainda que dissimulada, a teoria de Dugin guarda a semente do que hoje ele não pode mais falar em voz alta.

(*) Euclides Vasconcelos é professor de história e geografia. Estuda e escreve sobre os temas da guerra e da política. Organizou e prefaciou a publicação dos escritos militares de Friedrich Engels (Editora Baioneta) e atualmente trabalha nos escritos de Stálin, Trótski e Blanqui. Nascido e criado em Recife, é um apaixonado pelo Brasil.

Referências:
DUGIN, Alexander. Teoria do mundo multipolar. Caxias do Sul: Editora Ars Regia, 2022.
DUGIN, Alexander. Fundamentos da geopolítica. Caxias do Sul: Editora Ars Regia, 2024. 
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