Pesquisar
, ,

Frei Betto: Ali Babá e sua corja de ladrões no Congresso

A paciência da sociedade não é infinita. O Congresso pode até protelar, mas não consegue ignorar a pressão quando ela se materializa em milhares de pessoas

Frei Betto
São Paulo (SP), 21/09/2025 Manifestantes participam de ato contra a PEC da Anistia e da Blindagem, no MASP. (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)
São Paulo (SP), 21/09/2025 Manifestantes participam de ato contra a PEC da Anistia e da Blindagem, no MASP. (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

Como num antro de facínoras, 353 deputados federais tentaram estuprar a Constituição. Armaram um grande assalto à democracia. Vestidos com colete à prova de críticas, denúncias e investigações incômodas, os artífices da PEC da Blindagem tiveram o descaramento de aprovar, em regime de urgência, às 23h30 do dia 16/9, o projeto que garantia imunidade e impunidade aos que já desfrutam de salários exorbitantes, penduricalhos variados e uma régia cornucópia chamada emenda parlamentar. 

O problema é que, no Congresso, há parlamentares que primam pela ética e fizeram soar o alarme que denunciou a bandidagem. O texto, que deveria consolidar um cinturão de imunidade e impunidade, transformou-se em alvo de críticas afiadas.

Enquanto dentro do Congresso os discursos tentavam justificar o injustificável, do lado de fora a história corria em outra direção. O domingo (21 de setembro) ficou marcado por manifestações em 27 capitais e várias cidades do país. Milhares foram às ruas para dizer o óbvio que alguns parlamentares fingem não ouvir: o Brasil não suporta mais blindagens, quer transparência. Não exige silêncio, exige voz.

O mais irônico é que a PEC pretendia distanciar ainda mais a classe política do controle popular. No fim, teve o efeito contrário ao se transformar em holofote sobre o Congresso. As discussões transmitidas ao vivo, a mobilização nas redes, os protestos nas praças – tudo isso reforçou que blindagem, em democracia, soa como confissão de culpa. O escudo virou vitrine, expondo contradições e fragilidades.

Domingo, os cartazes falavam por si. Havia quem ironizasse: “Blindagem? Nem os bancos resistem aos assaltos dos hackers”. Outros preferiram o tom sério: “Imunidade é da Constituição, não dos políticos”. 

A paciência da sociedade não é infinita. O Congresso pode até protelar, mas não consegue ignorar a pressão quando ela se materializa em milhares de pessoas caminhando, gritando, exigindo. E isso às vésperas de um ano eleitoral. Ainda bem que o Senado, pressionado pelas ruas, jogou o projeto na lata de lixo. E Hugo Motta ficou a ver navios…

A PEC era uma clara demonstração de busca de autoproteção dos deputados federais, quase um instinto de sobrevivência em Brasília. Mas há limites para a criatividade institucional quando serve apenas a quem legisla. O labirinto de articulações, negociações e trocas foi ferido de morte pela mobilização popular.

 Leia também – A segunda prisão de Jair Bolsonaro 

O episódio deixa a lição de que a melhor blindagem que um parlamentar pode ter é a coerência entre discurso ético e prática política. Não precisa de PEC, nem de engenharia jurídica, basta votar de acordo com o interesse público e respeitar quem os elegeu. Parece simples, mas, pelo andar da carruagem, ainda soa como utopia.

O domingo, 21 de setembro de 2025, entrou para a cronologia das datas em que a rua falou mais alto que o Congresso. A aprovação da PEC na Câmara dos Deputados revela ao país quem são aqueles que ainda acreditam que democracia é sinônimo de privilégios e maracutaias. E mostra também que, felizmente, há quem não admita que a casa legislativa se transforme em caverna de Ali Babá e sua corja de ladrões.

(*) Frei Betto é escritor, autor do romance histórico “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

Revista Opera A Revista Opera é um veículo popular, contra-hegemônico e independente fundado em abril de 2012.

Continue lendo

Olhar para trás, para a longa história de resoluções da ONU sobre a Palestina – aprovadas, mas nunca respeitadas – parece quase inútil. Desde a primeira Nakba até os dias atuais, os palestinos estão presos em um limbo, forçados a viver em vastos campos de concentração e agora sujeitos a um extermínio aberto em condições brutais. E isso prossegue, sem parar. (Foto: Pok Rie / Pexels)
Palestina: reconhecimento de quê? E por quê?
O padrão-ouro, que garantia que cada dólar pudesse ser trocado por uma quantidade fixa de metal precioso, foi deixado para trás. Desde então, o dólar tem sido sustentado exclusivamente pela “confiança” na economia dos Estados Unidos e pelo poder político e militar que a respalda. (Foto: Ervins Strauhmanis / Flickr)
O mundo financia o déficit dos EUA
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. (Foto: Alan Santos/PR)
Projeto de lei pró-Trump sobre terrorismo usa PCC e CV para facilitar intervenção dos EUA

Leia também

São Paulo (SP), 11/09/2024 - 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo no Anhembi. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Ser pobre e leitor no Brasil: um manual prático para o livro barato
Brasília (DF), 12/02/2025 - O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, durante cerimônia que celebra um ano do programa Nova Indústria Brasil e do lançamento da Missão 6: Tecnologias de Interesse para a Soberania e Defesa Nacionais, no Palácio do Planalto. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
O bestiário de José Múcio
O CEO da SpaceX, Elon Musk, durante reunião sobre exploração especial com oficiais da Força Aérea do Canadá, em 2019. (Foto: Defense Visual Information Distribution Service)
Fascista, futurista ou vigarista? As origens de Elon Musk
Três crianças empregadas como coolies em regime de escravidão moderna em Hong Kong, no final dos anos 1880. (Foto: Lai Afong / Wikimedia Commons)
Ratzel e o embrião da geopolítica: a “verdadeira China” e o futuro do mundo
Robert F. Williams recebe uma cópia do Livro Vermelho autografada por Mao Zedong, em 1 de outubro de 1966. (Foto: Meng Zhaorui / People's Literature Publishing House)
Ao centenário de Robert F. Williams, o negro armado
trump
O Brasil no labirinto de Trump
O presidente dos EUA, Donald Trump, com o ex-Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado Henry Kissinger, em maio de 2017. (Foto: White House / Shealah Craighead)
Donald Trump e a inversão da estratégia de Kissinger
pera-5
O fantástico mundo de Jessé Souza: notas sobre uma caricatura do marxismo
Uma mulher rema no lago Erhai, na cidade de Dali, província de Yunnan, China, em novembro de 2004. (Foto: Greg / Flickr)
O lago Erhai: uma história da transformação ecológica da China
palestina_al_aqsa
Guerra e religião: a influência das profecias judaicas e islâmicas no conflito Israel-Palestina