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O mundo financia o déficit dos EUA

A hegemonia do dólar não é apenas uma questão econômica: é um dispositivo de poder dos EUA. Guerra e finanças estão entrelaçadas no mesmo campo de batalha

Jaime Bravo e Jorge Coulon
O padrão-ouro, que garantia que cada dólar pudesse ser trocado por uma quantidade fixa de metal precioso, foi deixado para trás. Desde então, o dólar tem sido sustentado exclusivamente pela “confiança” na economia dos Estados Unidos e pelo poder político e militar que a respalda. (Foto: Ervins Strauhmanis / Flickr)
O padrão-ouro, que garantia que cada dólar pudesse ser trocado por uma quantidade fixa de metal precioso, foi deixado para trás. Desde então, o dólar tem sido sustentado exclusivamente pela “confiança” na economia dos Estados Unidos e pelo poder político e militar que a respalda. (Foto: Ervins Strauhmanis / Flickr)

Em agosto de 1971, Richard Nixon anunciou a suspensão da conversão do dólar em ouro. Isso encerrou um ciclo que havia começado com os acordos de Bretton Woods, que deram aos Estados Unidos – a única potência industrial e financeira a emergir com suas capacidades intactas e como credora do resto do mundo – a possibilidade de tornar sua moeda a reserva global de valor.

Mas, mesmo com esse poder americano, foi necessário fazer concessões em relação ao lastro em ouro e, portanto, concentrar as reservas dos países ocidentais. Ninguém estava disposto a entregar a impressão da moeda de reserva a um único país.

Com o gesto de romper a conversão – o chamado Choque Nixon –, o sistema de Bretton Woods, que proporcionava estabilidade ao comércio internacional desde o fim da Segunda Guerra Mundial, entrou em colapso. O padrão-ouro, que garantia que cada dólar pudesse ser trocado por uma quantidade fixa de metal precioso, foi deixado para trás. Desde então, o dólar tem sido sustentado exclusivamente pela “confiança” na economia dos Estados Unidos e pelo poder político e militar que a respalda.

Mas isso não é tudo. A coerção para forçar seu uso levou ao nascimento dos petrodólares. O próprio Nixon assinou um acordo com a Arábia Saudita, pelo qual esse país – o maior exportador de petróleo da época – só aceitaria pagamentos em dólares americanos. Em troca, os Estados Unidos garantiriam a segurança da Arábia Saudita. A alta dependência das economias mundiais do petróleo garantiu a permanência dessa moeda como reserva e também como o meio mais universal de pagamento internacional.

O privilégio exorbitante

Essa mudança para uma moeda baseada na “confiança” deu início a uma ordem financeira peculiar: a moeda de um único país tornou-se a referência global. Com isso, Washington adquiriu um privilégio sem paralelo: pode imprimir dólares à vontade, sem que o mundo os rejeite. Na verdade, o mundo os demanda. Bancos centrais, governos e empresas precisam de dólares para negociar, economizar e tomar empréstimos. O que para qualquer outra nação seria uma receita certa para a inflação, para os Estados Unidos se torna um mecanismo de financiamento global.

O então ministro das Finanças – e mais tarde presidente da França – Valéry Giscard d’Estaing apelidou essa situação de “privilégio exorbitante”. E ele estava certo: graças à hegemonia do dólar, os Estados Unidos podem viver acima de suas possibilidades, financiando seus déficits fiscais e comerciais com papel – ou registros digitais – que outros valorizam como se fossem ouro.

Como funciona a máquina

A máquina opera de maneira simples e brutal. Como vimos, o petróleo e a maioria das outras commodities são negociados em dólares. A dívida internacional é emitida em dólares. As reservas dos bancos centrais são mantidas em dólares. Assim, todos os países do mundo pagam uma espécie de “tributo” ao centro do sistema.

Quando o Federal Reserve, o banco central americano, expande a oferta de dinheiro – como fez após a crise de 2008 ou durante a pandemia de 2020 –, ele injeta liquidez que viaja para além de suas fronteiras. Parte desses dólares circula na economia global, pressionando os preços e desvalorizando as moedas locais. Outros retornam aos Estados Unidos na forma de compras de títulos do Tesouro norte-americano, considerados os ativos mais seguros do planeta. Em ambos os casos, Washington sai ganhando: financia sua dívida a baixo custo e exporta parte de sua inflação.

Nem toda a culpa é do dólar

Vale a pena qualificar este ponto. A inflação global não pode ser explicada apenas pela emissão dos EUA. Outros fatores estão em jogo: guerras que perturbam as cadeias de abastecimento, aumentos do preço do petróleo, pandemias que perturbam a produção, especulação financeira e as políticas internas de cada país. Mas o dólar atua como um amplificador: seu status como moeda de reserva global significa que os custos das decisões dos EUA são socializados em escala global.

Quando o Federal Reserve aumenta as taxas de juros, por exemplo, o capital foge dos países emergentes para os títulos do Tesouro americano, fortalecendo o dólar e enfraquecendo as moedas nacionais. Isso encarece as importações, aumenta o custo da dívida externa e atinge diretamente as economias periféricas. É um lembrete de que a soberania monetária do Sul Global está ligada às decisões de um banco central que responde exclusivamente aos interesses dos Estados Unidos, com executivos do mundo financeiro privado e um presidente nomeado pelo poder executivo.

Financiamento invisível

O resultado é paradoxal: o mundo inteiro financia o déficit dos EUA. O país mais endividado do planeta continua, ao mesmo tempo, sendo o mais solvente aos olhos dos mercados. Não porque suas contas estejam em ordem, mas porque ele sempre pode pagar na moeda que só ele emite. É como se todos os outros aceitassem voluntariamente ser credores eternos de uma potência que nunca pretende reembolsá-los em ouro, mas apenas em sua própria promessa impressa.

Quanto tempo isso vai durar?

A grande questão é por quanto tempo esse esquema pode ser sustentado. Já estão sendo feitas tentativas de construir alternativas: o yuan chinês ou RMB, as iniciativas dos BRICS para negociar em moedas locais ou mesmo moedas digitais dos bancos centrais. O euro, embora importante, não conseguiu desbancar o dólar de seu trono.

A hegemonia do dólar não é apenas uma questão econômica: é um dispositivo de poder. Os Estados Unidos não apenas imprimem a moeda que todos usam, mas também podem bloquear transações, aplicar sanções financeiras e excluir países inteiros do sistema de pagamentos. Guerra e finanças estão entrelaçadas no mesmo campo de batalha.

Enquanto isso, o resto do mundo arca com os custos: inflação importada, dívidas mais caras, crises cambiais recorrentes. A conclusão é incômoda, mas clara: vivemos em uma ordem em que o emissor da moeda mundial gasta o que não tem, e o resto do planeta paga a conta – cada vez mais com o que também não tem: dívida crescente e soberanias hipotecadas.

Talvez o século XXI veja o surgimento de um novo equilíbrio monetário. Mas enquanto o dólar continuar reinando, o paradoxo persistirá: os Estados Unidos produzem déficits e o mundo inteiro os financia.

Globetrotter O Globetrotter é um serviço independente de notícias e análises internacionais voltado aos povos do Sul Global.

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