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Palestina: reconhecimento de quê? E por quê?

A última onda de reconhecimentos de países europeus da Palestina não é uma iniciativa de paz genuína, mas uma tentativa de encobrir o genocídio

Biljana Vankovska
Olhar para trás, para a longa história de resoluções da ONU sobre a Palestina – aprovadas, mas nunca respeitadas – parece quase inútil. Desde a primeira Nakba até os dias atuais, os palestinos estão presos em um limbo, forçados a viver em vastos campos de concentração e agora sujeitos a um extermínio aberto em condições brutais. E isso prossegue, sem parar. (Foto: Pok Rie / Pexels)
Olhar para trás, para a longa história de resoluções da ONU sobre a Palestina – aprovadas, mas nunca respeitadas – parece quase inútil. Desde a primeira Nakba até os dias atuais, os palestinos estão presos em um limbo, forçados a viver em vastos campos de concentração e agora sujeitos a um extermínio aberto em condições brutais. E isso prossegue, sem parar. (Foto: Pok Rie / Pexels)

A questão palestina é anterior à Organização das Nações Unidas, que agora comemora seu 80º aniversário. As raízes do conflito palestino estão nas profundas feridas e cicatrizes infligidas em todo o Oriente Médio pelas potências ocidentais, e a maior vítima, é claro, tem sido o povo palestino. Olhar para trás, para a longa história de resoluções da ONU sobre o tema – aprovadas, mas nunca respeitadas – parece quase inútil. Desde a primeira Nakba até os dias atuais, os palestinos estão presos em um limbo, forçados a viver em vastos campos de concentração e agora sujeitos a um extermínio aberto em condições brutais. E isso prossegue, sem parar.

Os tribunais internacionais ainda estão “estudando” o que todos nós vemos se desenrolar diante de nossos olhos. Mas a justiça, como diz o velho ditado, é lenta – embora supostamente inevitável. Enquanto isso, Israel trava guerras de agressão contra vários Estados, enquanto os Estados Unidos mantêm a ONU refém. Neste contexto, testemunhamos repentinamente uma onda de reconhecimento do Estado palestino por vários governos ocidentais. Desde 7 de outubro de 2023, vários Estados menores já deram esse passo, com o objetivo de exercer pressão simbólica sobre a chamada comunidade internacional. Mas agora, até mesmo o Reino Unido, a França, a Bélgica, Portugal, o Canadá e a Austrália se juntaram à lista.

O que isso realmente significa para os palestinos? Um Estado sem fronteiras. Um Estado sem soberania. Um Estado onde as instituições – até mesmo as mais básicas, de saúde e educação – foram destruídas, especialmente em Gaza. Um Estado em situação de fome, conforme declarado pela ONU. As estimativas de vidas perdidas variam de 65 mil a mais de meio milhão. No entanto, poucos se atrevem a fazer a verdadeira pergunta: após essa orgia de violência genocida, como uma nação se levantará novamente? Que traumas e consequências para toda a vida as gerações de palestinos enfrentarão?

Mas vamos parar por um momento para refletir sobre esta última onda de “reconhecimentos”. Coloco reconhecimento entre aspas intencionalmente, porque não passam de gestos cínicos de Estados que continuam — de uma forma ou de outra — a apoiar Israel, enquanto fecham os olhos aos seus crimes. Esses governos provavelmente querem causar uma boa impressão aos seus próprios públicos internos, que estão cada vez mais cansados de ver imagens diárias de morte e protestam cada vez mais.

As cartas de reconhecimento em si valem menos do que o papel em que estão impressas. Por exemplo, o primeiro-ministro do Reino Unido fala de um desejo de “relações estreitas e construtivas” com a Palestina. Enquanto esses mesmos Estados que “reconhecem” a Palestina — mesmo que apenas como uma entidade abstrata — não impuserem sanções a Israel ou obrigarem o país a cumprir o direito internacional, incluindo a chamada “responsabilidade de proteger”, todo o ato continuará sendo uma farsa. Os mortos descansarão em um “Estado”. Um Estado com mais mortos do que vivos, onde todos os sistemas essenciais — água, saúde, alimentação — foram deliberadamente arrancados e destruídos.

 Leia também – Gaza: se não é genocídio, é guerra total 

Após uma cúpula de um dia organizada pela França e pela Arábia Saudita, que se concentrou em planos para uma solução de dois Estados para o conflito, as reações — embora recebidas com aplausos pelos participantes — provocam, no entanto, uma sensação de repulsa. Por exemplo, um dos copresidentes da cúpula o próprio presidente da França, declarou que “chegou a hora da paz” e que “nada justifica a guerra em curso em Gaza”. Qualquer observador razoável está ciente de que isso nada mais é do que uma farsa, um ritual em que as potências ocidentais tentam lavar as mãos de sangue, acreditando que tais gestos as absolverão da responsabilidade moral e política pelo que aconteceu não apenas nos últimos dois anos, mas nos últimos oitenta anos. Para ser claro, não há necessidade de “esperar” pelo tempo da paz, porque o que o Israel está cometendo é uma violação direta da Convenção sobre Genocídio – muito antes disso, décadas das piores formas de apartheid, discriminação, degradação e negação da liberdade já haviam se desenrolado — com o Ocidente servindo, e continuando a servir, como um firme apoiador da política israelense. Além disso, Macron não pode, de boa-fé, falar de uma “guerra” quando o que está em jogo é o uso brutal de força militar esmagadora posicionada contra uma população civil (com o Hamas servindo apenas como pretexto), onde até mesmo alimentos e água foram transformados em armas. Aqueles que agora se apressam em reconhecer um Estado palestino são, na verdade, cúmplices no apoio a uma política genocida, ao mesmo tempo em que mantêm a retórica sobre “relações amigáveis” com Israel.

Algumas associações esportivas estão considerando expulsar Israel e bani-lo de grandes torneios e eliminatórias. Algo semelhante ocorre no meio acadêmico. Para a Rússia, tais medidas foram rápidas e abrangentes — e ainda são. Para Israel… Bem, veremos. O ritmo parece mais lento, mais hesitante.

A experiência nos ensina a sermos cautelosos com o Ocidente — mesmo quando ele traz “presentes”. A última onda de reconhecimentos da Palestina não é uma iniciativa de paz genuína, mas sim uma tentativa de encobrir o genocídio. Não se trata da autodeterminação palestina. Trata-se de aprofundar ainda mais sua condição colonial e deslegitimar sua justa luta pela dignidade humana e pelo direito de decidir seu próprio destino.

Alguns Estados são tão ousados em seu “reconhecimento” que impõem condições ao lado palestino, ditando que tipo de governo ele deve ter. Tragicamente, mesmo alguns intelectuais respeitados, em meio ao genocídio, argumentam que um Estado palestino deve existir — mas apenas com a condição de que seja democrático, que garanta os direitos das mulheres e assim por diante. Em outras palavras, mais uma expressão da arrogância ocidental: vocês podem ter um Estado, mas somente se nós aprovarmos — e somente sob nossa supervisão, à nossa imagem. Os palestinos são informados de que devem se desarmar (de quê, exatamente?), enquanto Israel permanece armado até os dentes com total supremacia militar.

Esses reconhecimentos não nascem de um despertar moral; eles são o produto de protestos populares crescentes e da resistência heróica do povo palestino. No entanto, em essência, eles servem como uma distração, um esforço para transferir o horror do genocídio para o terreno mais seguro do “processo político e diplomático” — um processo amplamente impossível nas condições atuais. É uma forma de controlar a narrativa, de evitar confrontar as profundas estruturas coloniais que mantêm os palestinos, e toda a região, em cativeiro. É uma tentativa de “pacificar” as vítimas do genocídio, enquanto Israel fica impune por seus atos contínuos de genocídio e agressão contra seus vizinhos.

Aqueles de nós que estavam preocupados desde o primeiro dia já sabem: o tempo dos gestos simbólicos e das condenações já passou.

O que é necessário agora é ação. Intervenção humanitária para proteger o povo palestino. Sanções contra Israel e seus líderes — econômicas, diplomáticas, culturais, acadêmicas e outras. Hoje, Israel (ao lado dos Estados Unidos) se destaca como o pior Estado pária. Na verdade, ele nem deveria fazer parte das Nações Unidas, assim como os Estados Unidos não merecem o privilégio de sediar essa organização global.

Os palestinos estão lutando pela própria vida. Há décadas, contra todas as adversidades. E, por essa luta, todos nós devemos apoiá-los. A história não perdoará esse silêncio. Reconhecimento sem ação e justiça é traição. Para que a Palestina sobreviva, o mundo deve finalmente traçar uma linha — não com tinta diplomática, mas com ações.

Globetrotter O Globetrotter é um serviço independente de notícias e análises internacionais voltado aos povos do Sul Global.

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