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“Os eliminaremos do mapa”: o espetáculo caribenho de Trump

O que Trump está avançando contra a Venezuela não é uma operação contra o narcotráfico, mas sim uma operação de mudança de regime.

Carlos Ron
Nas semanas que antecederam o discurso na ONU, Trump afirmou que pelo menos mais dois ataques mortais contra embarcações haviam sido realizados e publicou vídeos que mostravam apenas pessoas mortas por bombardeios aéreos, sem verificação independente das acusações de tráfico de drogas ou da nacionalidade das vítimas. (Foto: Eneas de Troya / Flickr)
Nas semanas que antecederam o discurso na ONU, Trump afirmou que pelo menos mais dois ataques mortais contra embarcações haviam sido realizados e publicou vídeos que mostravam apenas pessoas mortas por bombardeios aéreos, sem verificação independente das acusações de tráfico de drogas ou da nacionalidade das vítimas. (Foto: Eneas de Troya / Flickr)

Em 23 de setembro de 2025, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, proferiu um dramático discurso no qual ameaçou explicitamente os supostos envolvidos no tráfico de drogas para os Estados Unidos com a possibilidade de serem “eliminados”. Essa declaração, encarada como um flagrante desrespeito ao direito internacional e ao devido processo legal, referia-se à última escalada da guerra contra as drogas que os Estados Unidos travam há décadas, uma campanha que historicamente tem sido utilizada para justificar a intervenção estrangeira dos Estados Unidos na América Latina, e que agora se dirige principalmente contra a Venezuela.

Nos últimos 26 anos, a Venezuela passou por uma profunda transformação política, afirmando com sucesso sua soberania sobre as maiores reservas comprovadas de petróleo do mundo, utilizando as receitas principalmente para combater décadas de pobreza e exclusão social por meio de programas sociais. O país também se empenhou em pôr fim à influência política histórica de Washington.

A Venezuela elaborou uma política externa independente destinada a construir um mundo multipolar, forjando laços mais estreitos com países como o Irã, a Rússia (com quem acaba de aprovar uma parceria estratégica) e a China, com uma “parceria para todos os tipos de situações” assinada em 2023. Também promoveu alianças regionais livres do domínio dos Estados Unidos, como a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA); fomentou a cooperação Sul-Sul com uma participação renovada na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e no Movimento dos Países Não Alinhados; e liderou a formação do Grupo de Amigos da Carta das Nações Unidas.

Essas mudanças levaram os Estados Unidos a declarar a Venezuela uma “ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional e à política externa dos Estados Unidos” em 2015. Isso abriu as portas para uma campanha abrangente de sanções unilaterais — ou melhor, medidas coercitivas — que prosseguiu ao longo dos governos Obama, Biden e os dois governos Trump. Essa campanha prejudicou a economia venezuelana, contribuiu para a perda de vidas humanas e alimentou a migração para os Estados Unidos e países vizinhos.

Enquanto os Estados Unidos buscam reafirmar sua influência na região em sua competição global com adversários como a China, essa política em relação à Venezuela representa não apenas uma ferramenta para modificar o comportamento, mas também um instrumento de uma operação mais ampla e sustentada de mudança de regime, um propósito que não teve sucesso.

Esse objetivo é reforçado por pressões internas, em particular de facções de extrema direita latino-americanas com laços estreitos com a comunidade venezuelano-americana. De acordo com o Pew Research Center, há aproximadamente 120 mil eleitores registrados nos Estados Unidos de ascendência venezuelana, com a maior concentração — cerca de 57 mil — na Flórida, onde em 2018 menos de 32 mil votos decidiram a corrida para o governo dos EUA. Em um estado onde a corrida para o governo em 2018 foi decidida por tão poucos votos, o peso político dessa comunidade é considerado significativo.

A atual postura militar dos Estados Unidos é uma continuação da anterior campanha de “pressão máxima” de Trump. Nas últimas semanas, houve um importante destacamento de recursos navais americanos no mar do Caribe, incluindo um submarino nuclear, uma esquadra de aviões F-35, sete navios de guerra e pelo menos 4,5 mil fuzileiros navais. A verdadeira intenção desse envio não é conter o tráfico de drogas, mas desestabilizar o governo venezuelano.

 Leia também – Trump e as apostas do império 

Para justificar a presença militar, os Estados Unidos empreenderam operações contra o suposto tráfico de drogas. No entanto, os dados disponíveis, incluindo os de fontes como as Nações Unidas e até mesmo a Agência Antidrogas (DEA), indicam que aproximadamente 87% das drogas que chegam aos Estados Unidos passam pelo Oceano Pacífico, enquanto apenas cerca de 5% tentam passar pelo Mar do Caribe, onde se encontra toda a costa venezuelana.

Em 2 de setembro, o presidente Trump anunciou publicamente um ataque letal contra um navio que supostamente transportava drogas e estava ligado ao Tren de Aragua, uma gangue criminosa venezuelana extinta que, segundo o governo dos Estados Unidos, continua ativa e operando em território americano. Segundo relatos, a comunidade de inteligência americana negou a existência de ligações entre o presidente Nicolás Maduro e essas acusações. No entanto, essas acusações foram utilizadas para justificar a invocação da Lei dos Inimigos Estrangeiros de 1798 pela terceira vez na história — a primeira durante a Guerra de 1812 e a segunda durante a Segunda Guerra Mundial —, agora dirigida contra os venezuelanos que vivem nos Estados Unidos em tempos de paz. Isso levou à deportação de 252 venezuelanos, sem o devido processo legal, e à sua prisão e tortura em um campo de concentração em El Salvador. Alguns foram até mesmo separados de seus filhos.

A retórica de Trump também associa os imigrantes venezuelanos à criminalidade e às doenças mentais, alinhando-se à agenda nativista de sua própria base. Em razão de sua política de expulsão de imigrantes, a população migrante dos Estados Unidos diminuiu em 1,4 milhão entre janeiro e junho de 2025, de acordo com o Pew Research Center, o que fez com que a proporção de imigrantes na população diminuísse de 15,8% para 15,4%. Após romper as relações diplomáticas e consulares com a Venezuela em 2019 pelo reconhecimento de um presidente autoproclamado, as deportações diretas foram suspensas até fevereiro de 2025, quando os Estados Unidos permitiram que aviões venezuelanos repatriassem os migrantes. A Venezuela já havia implementado seu programa Vuelta a la Patria desde o início da pandemia, mas sua companhia aérea foi proibida nos Estados Unidos devido às sanções. O governo Trump também aumentou sua perseguição interna aos venezuelanos ao pôr fim às medidas migratórias temporárias estabelecidas pelo governo Biden.

Nas semanas que antecederam o discurso na ONU, Trump afirmou que pelo menos mais dois ataques mortais contra embarcações haviam sido realizados e publicou vídeos que mostravam apenas pessoas mortas por bombardeios aéreos, sem verificação independente das acusações de tráfico de drogas ou da nacionalidade das vítimas. O governo venezuelano também denunciou o assédio a pescadores venezuelanos por parte de oficiais militares americanos. Durante seu discurso na ONU, Trump se gabou de que “não há muitos barcos navegando pelos mares da Venezuela”, sugerindo que todas as embarcações marítimas estão agora ameaçadas. Além disso, ele também afirmou abertamente que o presidente Maduro liderava “redes terroristas e de tráfico”, sem apresentar nenhuma prova disso. Em agosto, a recompensa pela captura de Maduro subiu para 50 milhões de dólares, apesar de, segundo relatos, os relatórios anteriores da comunidade de inteligência terem descartado essa alegação.

 Leia também – Notas sobre a Venezuela: as coisas da guerra estão sujeitas à contínua mudança 

A Venezuela, seu governo e seus cidadãos estão atualmente sob a ameaça da potência militar mais poderosa do mundo. No entanto, a Venezuela continuou buscando uma solução pacífica. O presidente Maduro enviou uma carta a Trump na primeira semana de setembro por meio de um intermediário, na qual pedia diálogo e refutava as acusações de tráfico de drogas. O precedente histórico da Operação Brother Sam em 1964, na qual o governo dos EUA envio de navios de guerra para perto do Brasil, catalisando a derrubada militar do presidente democraticamente eleito João Goulart, é um paralelo que aponta para uma operação de mudança de regime. A diferença é que, desta vez, não houve deserções antigovernamentais.

O estudo do Instituto Tricontinental Addicted to Imperialism (Viciados no Imperialismo) sustenta que, por mais de 50 anos, a guerra contra as drogas tem sido um mecanismo para promover a expansão militar dos Estados Unidos, o deslocamento forçado de comunidades rurais, a criminalização de organizações populares e um maior intervencionismo político. Por outro lado, apesar dos enormes gastos militares, o consumo de drogas nos Estados Unidos não diminuiu; pelo contrário, os Estados Unidos continuam sendo tanto o principal consumidor de drogas quanto o principal fornecedor de armas para os cartéis de drogas.

O ministro Diosdado Cabello denunciou uma operação de bandeira falsa coordenada pela DEA que buscava provocar as Forças Armadas Bolivarianas da Venezuela a entrar em confronto direto com o exército americano. No entanto, o governo venezuelano estabeleceu um Conselho Nacional para a Soberania e a Paz, no qual se uniu uma combinação incomum de forças pró-governo e opositoras para rejeitar a intervenção estrangeira. Muitos venezuelanos até se alistaram nas milícias nacionais e estão dispostos a agir em defesa da nação no caso de uma invasão americana ou de um ataque seletivo como os realizados meses antes contra o Irã.

O que está sendo feito contra a Venezuela não é uma operação contra o narcotráfico, mas sim uma operação de mudança de regime. No entanto, o moral venezuelano está alto. As pessoas continuam com sua vida cotidiana com cautela e defendem com entusiasmo seu projeto nacional, lembrando a todos que Venezuela se escreve com V, como Vietnã, e que o libertador nacional, Simón Bolívar, escreveu certa vez a um diplomata americano: “Felizmente, muitas vezes vimos como um punhado de homens livres derrotou impérios poderosos!”.

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