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Haidar Eid: “a solução de dois Estados é racista”

Professor de literatura pós-colonial na Universidade Al Aqsa, Haidar Eid conseguiu fugir do genocídio em Gaza e se refugiar na África do Sul, e diz que a solução de dois Estados significaria uma “rendição”

Alona Malakhaeva e Jose Ángel Sánchez Rocamora
Garoto palestino em meio a escombros na Cidade de Gaza em 24 de agosto de 2014. (Foto: United Nations Photo / Flickr)
Garoto palestino em meio a escombros na Cidade de Gaza em 24 de agosto de 2014. (Foto: United Nations Photo / Flickr)

Haidar Eid é professor adjunto de literatura pós-colonial na Universidade Al Aqsa, em Gaza. Ele conseguiu fugir do genocídio e se refugiar na África do Sul. Acaba de publicar Banging on the Walls of the Tank (“Batendo nas paredes do tanque”), uma compilação de artigos de análise política escritos desde 2007 sobre o bloqueio de Gaza, os ataques israelenses, a grande marcha do retorno e o genocídio em curso. Na Espanha, a editora Verso publicou em 2023 seu livro “Descolonizando a mente palestina”.

Em sua biografia, você menciona que sua principal influência vem de Edward Said e sua crítica aos Acordos de Oslo. Em que consiste exatamente?

Edward Said me influenciou tanto academicamente quanto politicamente. Minha formação em literatura e teoria pós-colonial já estava marcada por seu livro “Orientalismo”, que abriu o campo dos estudos pós-coloniais. Mas, além da teoria, o que me impressionou foi sua postura política: ele defendeu a solução de um único Estado democrático e secular entre o rio Jordão e o Mediterrâneo, para todos os seus cidadãos, sem distinção. Sua crítica aos Acordos de Oslo também me inspirou: em 1993, quando foram assinados em Washington, na Casa Branca, todos aplaudiram. Todos estavam felizes: Yasser Arafat, Yitzhak Rabin, etc. Mas Edward Said, no dia seguinte, escreveu um artigo intitulado The Morning After (“A manhã seguinte”), onde classificou os Acordos de Oslo como uma “rendição”. Concordo plenamente com Said nisso. A liderança palestina reconheceu Israel como Estado, mas Israel nunca reconheceu o direito dos palestinos à autodeterminação. Os acordos ignoraram direitos fundamentais: o fim da ocupação ilegal de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental; o direito ao retorno de sete milhões de refugiados, consagrado na resolução 194 da ONU; e a situação dos 1,4 milhão de palestinos que são cidadãos de terceira classe em Israel. Tudo isso ficou de fora. O que foi oferecido foi um bantustão [na política segregacionista da República da África do Sul, uma reserva para habitantes não brancos, como principal ferramenta do apartheid], não um Estado soberano. Por isso, defendo que os Acordos de Oslo representaram a negação de nossa autodeterminação. Nos meus livros, retomo essa linha, juntamente com as influências de Frantz Fanon, Steve Biko, Amílcar Cabral, Rosa Luxemburgo ou Nawal Saadawi, todos referências na descolonização da mente.

Em relação a Oslo, por que os líderes palestinos aceitaram um acordo que negava a autodeterminação de seu povo?

Assim como na África do Sul houve líderes dos bantustões que aceitaram a separação, a burguesia palestina aceitou a solução de dois Estados porque servia aos seus interesses de classe: ter um pedaço de terra, bandeira e hino em troca de renunciar a direitos fundamentais. Eles acreditavam, de uma perspectiva de classe, que a única forma de avançar era uma solução racista. Isso abriu as portas para o atual genocídio em Gaza. Em 2006, quando foram realizadas eleições em Gaza e na Cisjordânia, a população votou contra os Acordos de Oslo, contra o Fatah e contra a Autoridade Palestina, votou a favor da resistência. E por isso eles, Israel e os Estados Unidos, com o apoio da coalizão, decidiram nos punir por termos desobedecido.

Se a descartarmos, qual seria a alternativa à solução de dois Estados?

Minha resposta à pergunta seria fazer outra pergunta: qual era a alternativa ao apartheid na África do Sul? A solução para o regime do apartheid era a solução dos cinco Estados na África do Sul. Certo? Estabelecer o que eles chamavam de estados independentes para os sul-africanos nativos. Mas a criação de “estados independentes” para os nativos nunca foi aceita. Nelson Mandela se recusou a aceitá-la porque acreditava que a África do Sul pertence a todos que vivem nela. Não apenas aos brancos, não apenas aos negros, não apenas aos indianos, não apenas aos “coloureds”. Pertence a seus cidadãos. Portanto, a julgar pelo que aconteceu na África do Sul, acredito que o primeiro passo, e isso é muito importante, é desmantelar o sistema de apartheid e colonialismo. Primeiro, nos livramos disso. E então iniciamos as negociações com base na igualdade. Atualmente, existe apenas um Estado na Palestina entre o rio Jordão e o Mediterrâneo, e há dois povos: uma comunidade de colonos, ashkenazis, e outra de palestinos nativos. A solução seria desmantelar a opressão, desmantelar o colonialismo, desmantelar o apartheid. Temos uma constituição que contém leis básicas e define o Estado-nação de Israel como o Estado dos judeus, mas aqui também vivem cristãos, drusos, muçulmanos, etc. Portanto, o próximo passo seria estabelecer um único Estado com direitos iguais para todos os seus cidadãos, um Estado democrático secular.

Em relação ao seu último livro, Banging on the Walls of the Tank (“Batendo nas paredes do tanque”), de que maneira ele reflete sua experiência durante o genocídio de Gaza?

É uma compilação de artigos escritos desde 2007, quando Israel impôs o bloqueio a Gaza. Eu narro o que vivi durante as ofensivas de 2008-2009, 2012, 2014 e depois. Perdi 38 colegas da Universidade Al Aqsa de Gaza, 288 estudantes e mais de 60 familiares. Gaza se tornou um campo de extermínio. Ainda há pessoas que vêm e dizem: “Não chame de genocídio, procure outra palavra”. Bem, aqui tenho outro nome: o mal absoluto. Agora entendo o que aconteceu durante o Holocausto. Entendo o sofrimento dos judeus sob Hitler e o nazismo. Entendo perfeitamente e me identifico com eles. Mas esta é a primeira vez que um genocídio é transmitido ao vivo. Peguei o título de Ghassan Kanafani, que em seu romance Homens ao Sol mostra personagens que morrem asfixiados dentro de um tanque por não baterem nas paredes. Para mim, os habitantes de Gaza estão batendo nessas paredes com força, mas o mundo está surdo. A Espanha está surda. Os Estados Unidos estão surdos. O mundo árabe está surdo. O mundo muçulmano está surdo. E é por isso que escrevi o livro. E acredito que é o mínimo que podemos fazer.

Como membro do movimento BDS, quais você acha que foram suas principais conquistas?

Sou membro do BDS desde sua fundação. Fiz parte do comitê diretor da PACBI, a Campanha Palestina para o Boicote Acadêmico e Cultural a Israel. Em 2004, quando criamos a PACBI, emitimos um comunicado pedindo às instituições acadêmicas e culturais internacionais e às figuras culturais que boicotassem o mundo acadêmico israelense e suas instituições culturais, devido à sua cumplicidade nos crimes cometidos pelo regime israelense, a ocupação, o apartheid e o colonialismo. Em 2005, lançamos o apelo global ao boicote, desinvestimento e sanções contra Israel. Hoje, chegamos a um momento comparável ao da África do Sul: há fundos de pensão que estão desinvestindo; por exemplo, recentemente, o maior fundo de pensão da Noruega, o KLP, desinvestiu em duas empresas relacionadas à venda de armas para Israel. Mais de 30 países liderados pela Colômbia e África do Sul, é claro, incluindo Malásia, Cuba e Venezuela, romperam suas relações diplomáticas com o apartheid israelense. Pela primeira vez na história, Israel foi levado ao CIJ, o Tribunal Internacional de Justiça, como resultado de nossa mobilização como movimento BDS global. A maior conquista: Israel reconhece o BDS como uma ameaça existencial.

Atualmente, a luta palestina está sendo apoiada por movimentos sociais antifascistas e anti-imperialistas em todo o mundo. Qual papel ela está desempenhando globalmente?

Israel passou de um Estado de apartheid para um Estado fascista, aliado a outras extrema-direitas, como a dos Estados Unidos, alguns governos europeus, etc. O que quero dizer é que não estamos falando apenas de um Estado fascista: estamos falando de uma comunidade de extrema direita em nível global e de uma sociedade fascista em nível de Israel. Diante disso, nossa resistência faz parte da luta global contra o fascismo e o imperialismo. Nossos aliados são os movimentos sociais e ativistas em todo o mundo.

O que desencadeou a ação armada da resistência palestina em 7 de outubro?

Eu estava em Gaza naquele dia e durante os dois meses seguintes. Nenhum palestino pode falar sobre 7 de outubro sem associá-lo a décadas de ocupação, bloqueio e genocídio gradual. Antes dessa data, já tínhamos tentado todas as formas de resistência: marchas pacíficas, artigos, entrevistas, livros, manifestações, BDS… Nada funcionou. Jovens que nasceram e cresceram em um campo de concentração chamado Gaza decidiram agir. Gaza era um campo de concentração ou tinha sido, e agora se tornou um campo de extermínio. Então, antes de 7 de outubro, Ilan Pappé, o historiador israelense, escreveu um artigo em 2008, no qual falava do bloqueio em Gaza e o chamou de “genocídio progressivo”. Lembro-me de um artigo de Richard Falk, o Relator Especial das Nações Unidas sobre “a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados desde 1967”; ele chamou-o de “prólogo do genocídio”, como uma introdução. Em outras palavras, Israel já vinha cometendo crimes de guerra e crimes contra a humanidade antes de 7 de outubro. Não se trata de apoiar ou não o que aconteceu em 7 de outubro, mas de entender as causas. Desde então, Gaza vive milhares de “7 de outubro” com massacres diários. Resistir à ocupação é um direito, e essa é a raiz da questão.

Que mensagem você enviaria aos governos que reconhecem o Estado Palestino, mas ainda não cortaram laços com Israel?

Pessoalmente, não acredito que precisemos do reconhecimento do Estado Palestino, o que precisamos é que eles cortem seus laços com o genocida Israel, que imponham sanções contra Israel, isso é mais importante para nós do que reconhecer um bantustão dos Acordos de Oslo. Reconhecer a Palestina em 22% do território não significa nada se, ao mesmo tempo, continuarem fornecendo armas ao Estado genocida. O que precisamos não é de reconhecimento simbólico, mas sim de boicote, desinvestimento e sanções. A solução de dois Estados é uma solução racista. Se levam a sério a igualdade, não têm outra escolha senão apoiar o fim do apartheid. Vocês deveriam começar a pensar em apoiar uma solução democrática laica, isso é o que tenho a dizer a governos como o da Espanha, dos Estados Unidos e dos países ocidentais coloniais. Sem o seu apoio, o apartheid israelense não teria conseguido cometer seus crimes contra a humanidade, seus crimes de guerra contra o povo palestino.

(*) Tradução de Raul Chiliani

El Salto El Salto é um meio de comunicação social autogerido, horizontal e associativo espanhol.

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