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Em sua primeira exortação, Papa Leão XIV consagra a Teologia da Libertação

Em “Dilexi Te”, Papa Leão XIV rompe com discurso meritocrático, enaltece movimentos sociais e reafirma: “a pobreza não é uma escolha”

Frei Betto
Papa Leão 14 durante missa na Basílica de São Pedro, em 27 de junho de 2025. (Foto: Catholic Church England and Wales /Mazur/ cbcew.org.uk)
Papa Leão 14 durante missa na Basílica de São Pedro, em 27 de junho de 2025. (Foto: Catholic Church England and Wales /Mazur/ cbcew.org.uk)

A Exortação Apostólica Dilexi Te (“Eu te amei”), do Papa Leão XIV, ressoa como sopro de esperança e significativa reafirmação do Evangelho vivido a partir dos pobres. No Brasil, onde a desigualdade social tem rosto, cor e território – o rosto das mulheres negras periféricas, o corpo exaurido dos trabalhadores informais, os povos indígenas ameaçados, os jovens de favelas mortos pela violência –, o conteúdo do documento não chega como novidade, e sim como confirmação e estímulo da caminhada histórica da Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Nesta “Exortação Apostólica”, Leão XIV desmascara todo o discurso que considera a existência dos pobres uma fatalidade e que enfatiza a meritocracia como via de saída da pobreza. Escreve o papa: “Os pobres não existem por acaso ou por um cego e amargo destino. Muito menos a pobreza é uma escolha para a maioria deles. No entanto, ainda há quem ouse afirmá-lo e, assim, demonstra cegueira e crueldade. Entre os pobres há também, obviamente, aqueles que não querem trabalhar, talvez porque os seus antepassados, que trabalharam toda a vida, morreram pobres. Mas há muitos homens e mulheres que trabalham de manhã à noite, recolhendo papelão, por exemplo, ou realizando outras atividades semelhantes, embora saibam que este esforço servirá apenas para sobreviver e nunca para melhorar verdadeiramente suas vidas. Não podemos dizer que a maioria dos pobres está nessa situação porque não obteve ‘méritos’, de acordo com a falsa visão da meritocracia, segundo a qual parece que só têm mérito aqueles que tiveram sucesso na vida.” (14).

A partir do clamor dos pobres, Dilexi Te reafirma que a fé cristã não pode ser separada do amor concreto, da justiça social e da transformação das estruturas que geram miséria e exclusão. Essa mensagem encontra eco profundo na realidade brasileira, onde as contradições do capitalismo periférico, o racismo estrutural, o patriarcado e a devastação ambiental ferem diariamente parcela significativa de nosso povo e nossa Casa Comum.

Logo nos primeiros parágrafos, o documento recorda: “Deus é amor misericordioso, que se preocupa com a condição humana e, portanto, com a pobreza.” (16). Essa opção divina tem expressão concreta na conjuntura brasileira. Aqui a pobreza não é abstrata, manifesta-se na fome que ainda castiga milhões de pessoas, na informalidade que consome as forças de quem trabalha sem direitos, no abandono da juventude nas periferias, no desmatamento que expulsa povos originários e ribeirinhos.

Quando a Exortação afirma que “Deus guarda em Seu coração aqueles que são particularmente discriminados e oprimidos”, fala ao coração de uma Igreja que já ouviu esse mesmo apelo em Medellín (1968) e Puebla (1979), onde os bispos latino-americanos afirmaram a opção preferencial pelos pobres como exigência da fé.

Neste documento, o papa Leão XIV denuncia a “ditadura de uma economia que mata”. Essa frase, tão direta, dialoga com a experiência brasileira de um sistema que concentra renda, privatiza bens comuns e precariza vidas. O país mais católico do mundo é também um dos mais desiguais: 1% da população concentra quase 30% da riqueza nacional, enquanto multidões sobrevivem sem acesso à moradia, ao saneamento e à segurança alimentar.

Leão XIV lembra que Santo Agostinho, que teve como seu mestre espiritual Santo Ambrósio, insistia na exigência ética de partilhar os bens: “Não é de tua propriedade aquilo que dás ao pobre; é dele. Porque tu te apropriaste do que foi dado para uso comum”. (43)

No Brasil, sabemos que a pobreza tem causas históricas: a escravidão, o racismo estrutural, a desigualdade de gênero, o latifúndio e a lógica de exploração que moldou nossa formação econômica. A Exortação desmente as ideologias que justificam a miséria como falha pessoal ou “preguiça”: “A pobreza não é uma escolha para a maioria deles.”

Essa é a linguagem da Teologia da Libertação: reconhecer o pecado não apenas em indivíduos, mas nas estruturas sociais de opressão. Quando o papa fala de “estruturas de injustiça que criam pobreza e desigualdade extrema”, ele legitima décadas de reflexão teológica latino-americana que sempre viu a libertação como transformação das causas e não apenas alívio das consequências.

Para nós, no Brasil, isso significa denunciar o agronegócio predatório que destrói o Cerrado e a Amazônia, expulsando povos tradicionais; o racismo institucional que criminaliza a pobreza e transforma as periferias em zonas de extermínio; a política econômica excludente que sacrifica os mais vulneráveis para amealhar sempre mais lucros; a mercantilização da fé, que transforma o Evangelho em produto de consumo e promete prosperidade individual enquanto ignora a injustiça coletiva.

 Leia também – Teologia vermelha: sobre a tradição cristã comunista 

“Não se trata de levar Deus aos pobres, mas de encontrá-Lo ali.” (79) Essa afirmação de Dilexi Te poderia ter sido escrita por Dom Hélder Câmara, Pedro Casaldáliga ou irmã Dorothy Stang. Expressa o coração da espiritualidade libertadora, para qual o povo não é objeto de pastoral, mas sujeito histórico da libertação.

O documento valoriza os movimentos populares – camponeses, urbanos, ecológicos, indígenas, de mulheres – como expressões concretas da busca por justiça. No Brasil, isso significa reconhecer no MST, no MTST, nas centrais sindicais, nas pastorais sociais, nas CEBs, nas juventudes populares e nas organizações negras e feministas o rosto do Evangelho vivo.

Escreve Leão XIV: “Estes líderes populares sabem que a solidariedade consiste também em lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, de terra e de casa, a negação dos direitos sociais e laborais. É fazer face aos efeitos destruidores do império do dinheiro […]. A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma forma de fazer história e é isto que os movimentos populares fazem”. (72) 

De fato, os movimentos populares convidam a superar “aquela ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres e muito menos inserida num projeto que reúna os povos”. Se os políticos e os profissionais não os ouvirem, “a democracia atrofia-se, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade, vai se desencantando porque deixa de fora o povo na sua luta diária pela dignidade, na construção do seu destino”. (81) 

“Eu Te Amei” afirma: “A Igreja deve colocar-se ao lado dos pobres e empenhar-se ativamente pela sua promoção integral.” Essa “promoção integral” inclui não só pão e casa, mas o direito à cultura, à fé, à palavra, à participação política.

É nesse sentido que o documento encontra eco nas experiências das CEBs, nas Romarias da Terra e das Águas, na Pastoral da Juventude, nas Pastorais da Terra, Carcerária e dos Migrantes – espaços onde a Bíblia é lida à luz da vida e onde o povo descobre que “Deus está do lado dos pobres”.

No Brasil, muitas vezes tenta-se defender que a fé nada tem a ver com a política (exceto quando de direita…). Dilexi Te rompe com essa falsa dicotomia ao assinalar que “Não se pode separar a fé do amor pelos pobres.” A fé autêntica não se mede por doutrinas, mas pela prática da justiça.

O papa vai mais além ao afirmar que “o cristão não pode considerar os pobres apenas como um problema social: eles são uma ‘questão familiar’. Pertencem ‘aos nossos’. A relação com eles não pode ser reduzida a uma atividade ou setor da Igreja. Como ensina a Conferência de Aparecida, ‘solicita-se dedicarmos tempo aos pobres, prestar a eles amável atenção, escutá-los com interesse, acompanhá-los nos momentos difíceis, escolhê-los para compartilhar horas, semanas ou anos de nossa vida, e procurando, a partir deles, a transformação de sua situação.’ Não podemos esquecer que o próprio Jesus propôs isso com seu modo de agir e com suas palavras.” (104)

A Teologia da Libertação sempre enfatizou que o Reino de Deus é uma utopia que se concretiza na história e desemboca no outro lado da vida, e que a salvação começa aqui e agora, e a evangelização exige transformação social. O documento papal confirma que o amor cristão deve se traduzir em compromisso social, em ações que enfrentem as estruturas da exclusão.

No Brasil, isso implica uma pastoral que vá além do assistencialismo e denuncie as causas da fome, participe da construção de políticas públicas, defenda a democracia e os direitos humanos. A fé não é fuga da realidade, mas luz e força para transformá-la.

Algumas expressões da Exortação soam como eco direto das dores e esperanças do povo brasileiro: “A opção preferencial pelos pobres gera uma renovação extraordinária na Igreja e na sociedade quando somos capazes de ouvir o seu clamor.” (7) “A opção preferencial pelos pobres, ou seja, o amor que a Igreja tem por eles, como ensinava São João Paulo II, é decisivo e pertence à sua constante tradição, impele-a a dirigir-se ao mundo no qual, apesar do progresso técnico-econômico, a pobreza ameaça assumir formas gigantescas. A realidade é que para os cristãos os pobres não são uma categoria sociológica, mas a própria carne de Cristo.” (110)

Esses trechos, quando proclamados em nossas comunidades, podem reacender o ardor missionário e pastoral que marcou a caminhada da Igreja no Brasil – aquela que Dom Paulo Evaristo Arns chamava de “Igreja dos pobres e com os pobres”.

A Dilexi Te não é apenas um texto de reflexão, mas um chamado à ação pastoral. No Brasil, essa ação pode se traduzir em passos concretos, como a formação bíblico-popular: retomar a leitura orante da Bíblia à luz da realidade, fortalecendo Círculos Bíblicos, comunidades de base e pastorais sociais que atuam junto aos pobres e marginalizados. E também estimular a economia solidária e ecológica, e promover iniciativas que articulem fé, trabalho digno e cuidado da Criação. Multiplicar a educação popular para a formação da cidadania, de modo a despertar no povo a consciência de seus direitos. Defender os povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, reconhecendo neles a voz profética que clama pela Terra e pela vida. E intensificar a presença da Igreja nas periferias, onde as paróquias devem ser centros de solidariedade, de partilha e de escuta.

Dilexi Te convida a uma Igreja “em saída”, que abandone o conforto das sacristias e caminhe com o povo. No Brasil, onde a pobreza é estrutural e a fé é popular, o documento pontifício chega como reforço e confirmação da Teologia da Libertação, que nos lembra que o amor de Deus é revolucionário, rompe as cadeias da indiferença e denuncia as causas da injustiça.

Ser cristão, à luz dessa Exortação, é estar do lado dos pobres, não por ideologia, mas por fidelidade a Jesus, o Pobre de Nazaré. É deixar-se evangelizar pelos simples, lutar por justiça, defender a vida, cuidar da Casa Comum e anunciar que outro mundo é possível e necessário.

Dilexi Te legitima essa “subversão do amor” ao nos recordar que o amor cristão é libertador, porque não aceita a miséria, não se conforma com a exclusão e não se cala diante da opressão.

Tomara que nossas comunidades, inspiradas por este documento papal, sigam construindo um Brasil mais justo e solidário, onde cada pessoa possa ouvir, não como promessa distante, mas como realidade vivida, as palavras do próprio Deus: “Eu Te amei — Dilexi Te — e continuo Te amando no rosto dos pobres” (Apocalipse 3,9).

(*) Frei Betto é escritor, autor da tetralogia sobre os evangelhos – Jesus Militante (Marcos); Jesus Rebelde (Mateus); Jesus Revolucionário (Lucas); e Jesus Amoroso (João) -, editado pela Vozes, entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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