A destituição de Dina Boluarte não foi uma vitória popular, mas um reajuste interno do poder no Peru. O Congresso não obedeceu ao clamor das ruas, mas à necessidade de preservar um sistema que está desmoronando por dentro. O fusível foi trocado para que a mesma máquina continuasse ligada: o pacto entre plutocracia, corrupção e medo.
Boluarte foi útil enquanto manteve a ordem imposta após a queda de Pedro Castillo. Sua destituição funciona agora como um sacrifício simbólico para acalmar a indignação coletiva. Mas o país não despertou: apenas mudou de carrasco. A estrutura que permitiu a repressão, as mortes impunes e a degradação institucional permanece intacta.
Um dos fatores que desencadeou esta crise – e que, ao mesmo tempo, a transforma em uma oportunidade para as oligarquias – é a degradação dos partidos políticos. Os novos movimentos não nasceram como espaços de deliberação popular, mas como extensões de caciquismos pessoais sem base nem programa. Neste vácuo, o poder econômico e midiático encontrou o terreno perfeito para se reorganizar.
Hoje é mais fácil coordenar uma mobilização do que dirigir uma transição, mais fácil indignar-se do que construir uma alternativa. Essa fragilidade organizacional transforma cada explosão em um parêntese sem continuidade.
O desafio, então, não é apenas resistir, mas instituir: dar forma a expressões permanentes, coletivas, capazes de se legitimar a partir de baixo e exercer uma liderança real. Sem essa perspectiva política e ética, as rebeliões continuarão sendo absorvidas pelos mesmos mecanismos que dizem combater.
Este problema não é exclusivo do Peru: ele se estende por toda a América Latina, onde a desintegração partidária deixou os povos sem canais para processar sua energia social e sem estruturas para sustentar a mudança.
José Jerí, novo presidente por sucessão parlamentar, representa a continuidade desse regime. Sua chegada não abre uma transição democrática: consolida o poder de um Congresso que age como uma casta fechada, sem legitimidade nem horizonte ético. O problema não é quem governa, mas quem continua decidindo nos bastidores.
O povo peruano, que marchou, sangrou e resistiu, fica novamente à mercê das intempéries: sem justiça, sem representação e sem confiança. Mas também mais lúcido.
Compreendeu que não basta mudar nomes; que a verdadeira mudança exige quebrar o molde, desmontar a Constituição herdada do fujimorismo e refundar o pacto social a partir de baixo, com participação real e memória viva.
O golpe suave não encerra a história: a desnuda.
E nessa nudez – entre a ferida e a consciência – pode-se começar a escrever a palavra povo com a tinta de seu próprio destino.



































