Em janeiro de 2021, Isabela Gesser traduziu um artigo do estimado jornalista Alexander Billet, autor de “Abalar a cidade”, que considero uma obra-prima contemporânea sobre a música urbana[1]. O texto, “A trilha sonora de nossa era de decadência” é um questionamento sobre onde estaria a música das revoltas atuais. O texto me fez refletir por dias, pensando num esquema de história de longa duração, sobre se o hip-hop e o punk – gêneros musicais com mais de 50 anos e intimamente ligados à revolta popular – ainda poderiam ser a trilha sonora do colonialismo e dos colonizados, na contramão dos pensadores pós-coloniais.
Mais do que trazer respostas, o artigo de Billet questiona a função da música na era neoliberal do capitalismo, na qual as plataformas dominaram a circulação da música-mercadoria, enquanto os artistas, iludidos com uma suposta independência, detêm, no máximo, os meios de produção de suas obras, deixando todo o resto – a circulação e o lucro sobre lucro – nas mãos de aplicativos como Spotify, Deezer, Apple Music, Tidal, entre outros. Por inocência ou servidão, a realidade do rap mainstream é essa. E o underground, sempre chamado para salvar o rap, não deixa de se contaminar por essa lógica quase inescapável. Afinal de contas, “todos os homens devem ter condições de viver para poder ‘fazer a história’”.[2] Isso é mais uma constatação do que uma crítica.
Na linha de outro texto de Billet, alinhado com seu clássico livro, é possível localizar algumas revoltas populares ocorridas nos últimos 25 anos e qual a trilha sonora de cada uma delas. A música é apropriada pelo privado, mas a dialética só existe porque a negação se faz presente. Protestos no Líbano, Haiti, Estados Unidos, Brasil e Chile mostram que a juventude, de uma forma ou de outra, tem tomado as rédeas, ainda que momentaneamente, da música, das ruas e dos discursos. Como pequenas Comunas de Paris, aqueles breves momentos de ocupação das ruas podem ser ensaios de resistência ou de derrota. E a música está sempre presente, abalando a cidade.
Ambos os gêneros, rap e punk, cada um à sua maneira, passam por crises estéticas e políticas. Com o respeito devido ao punk, vou me ater ao hip-hop, meu gênero de estudo e vivência, por entender que, nos processos históricos, resquícios do velho se mantêm no novo, e, ainda que a música acompanhe o caminhar da história, este gênero ainda contém os elementos necessários para ser o som da libertação.
Foi a partir de um vídeo, publicado no instagram em 6 de janeiro de 2025, que repensei sobre minhas próprias ideias acerca do hip-hop, das palavras de Billet, e de uma rima do Mano Brown. Eram crianças, aparentando não ter mais do que 15 anos, dançando break sobre os escombros de uma rua destruída pelas Forças de Defesa de Israel (IDF).. Foi como assistir The Black Power Mixtape (1967-1975), ou mesmo os documentários e fotografias sobre o Largo São Bento, em São Paulo, nos anos 80.
Crianças dançando sobre escombros é algo tão antigo quanto um genocídio colonial, e as cidades colonizadas são sempre similares. Todas elas são compartimentadas, limitadas pelo fuzil do ocupante, cheias de prédios em ruínas – mas com vida. A vida dos colonizados.
Minha tarefa aqui não é responder ao texto de Billet, mas refletir sobre como o hip-hop ainda pode ser a trilha sonora da revolta, seja em lugares como o Bronx, a zona sul de São Paulo nos anos 1960 e 1970, ou a Palestina.
Do Bronx a Gaza: até no lixão nasce flor
O desenvolvimento do hip-hop nos Estados Unidos é muito bem documentado. Tricia Rose o fez de forma magistral em “Barulho de Preto: Rap e Cultura Negra nos Estados Unidos Contemporâneos”. A tese da autora é que o hip-hop foi uma resposta à decadência dos bairros negros, latinos e pobres, organizada em torno de um processo de desindustrialização em Nova York. Não que a cidade dos sonhos do mundo capitalista regredisse em seu desenvolvimento, mas o tipo de trabalho ofertado para as camadas pobres era, em sua maioria, no setor de serviços. Aliado a isso, problemas com a assistência médica ao proletariado, a especulação imobiliária nos bairros pobres e os consequentes incêndios na cidade formaram um caldo que, em 11 de agosto de 1973, formaria o que conheceríamos como hip-hop.
O Bronx passou, nos anos 1970, por um longo processo de gentrificação, que ocasionaria as já citadas bolhas imobiliárias e incêndios, que chegaram a queimar 80% dos imóveis na região de South Bronx. Esses incêndios, na maioria das vezes, eram criminosos, causados pelos próprios donos dos imóveis: com a fuga da classe média branca e a ocupação desses imóveis por uma maioria de pessoas negras, latinas e pobres, era mais vantajoso para um proprietário queimar um prédio e receber o valor do seguro do que tentar mantê-lo com os valores irrisórios que essas famílias podiam pagar – na maioria das vezes, elas nem podiam arcar com os aluguéis. Cindy Campbell, a mãe fundadora do hip-hop, afirmou que, “na época, Nova York estava quase falida. Não havia realmente nada para os jovens fazerem”.[3] Um fato relevante que demonstra a situação de Nova York, e especialmente do Bronx, foi o famoso apagão de 1977, causado por danos naturais e falhas, com sobrecarga da rede elétrica da cidade. Nesse dia, centenas ou milhares de jovens saquearam a cidade em meio à escuridão. Muitos dos objetos expropriados eram equipamentos de som; e essa expropriação foi determinante para o desenvolvimento do hip-hop, por ter tornado o acesso à produção e discotecagem mais democráticos.
Muito desse clima e dessa paisagem de destruição foi narrado em filmes, documentários e fotografias. O livro Subway, do fotógrafo Bruce Davidson, é um retrato sincero sobre a decadência da cidade, originada pela imensa pobreza. Tendo os metrôs da cidade como objeto, ele retratou cenas de violência cotidiana, o trajeto de pessoas comuns, mas, principalmente – e talvez sem perceber –, o desenvolvimento da pixação, das tags e do grafite na cidade, um dos quatro elementos primordiais do hip-hop.
Anos se passaram, e Nova York mudou. Os bairros que antes tinham uma feição de destruição se rejuvenesceram, num processo intenso de mudança urbana. Claro que isso não diminuiu as desigualdades sociais, raciais e de classe, e isso pode ser observado na farta produção da Era de Ouro do Hip-hop, entre os anos 1980 e 1990. Mas o visual da cidade, a sua aparência, se tornou completamente distinta daqueles tempos.
O mesmo não se pode dizer sobre Gaza. Desde 7 de outubro de 2023, mais de 70 mil palestinos foram assassinados pelo exército de ocupação colonial israelense[4]. 30% dos mortos são crianças e adolescentes, 20% são mulheres, e 4% são idosos. Embora numérica e qualitativamente de forma distinta, se morre em Gaza como se morria no Bronx, em Nova York, ou em São Paulo: as causas são as mesmas; em todos os casos é a face do colonialismo, interno ou externo, que arrancou e arranca a vida de povos nas três pontas do mundo.
Como nos Estados Unidos, do período que vai da Guerra de Secessão ao assassinato de George Floyd, e em São Paulo, com a abolição da escravidão e as recentes chacinas no litoral de São Paulo, em Gaza também não existe uma guerra aberta, mas um genocídio. É claro que existe resistência, como os diversos grupos de negros, latinos, asiáticos e mulheres nos Estados Unidos, as guerrilhas urbanas em São Paulo, e os grupos de libertação nacional palestinos e árabes em geral. Mas não há equivalência de força. As mortes causadas nesses três espaços urbanos são de escala industrial, fundadas numa perspectiva de eliminação racial e étnica. Talvez seja por isso que o hip-hop tenha tomado as ruas abandonadas desses lugares.
Os primórdios do hip-hop em Gaza podem ser localizados no grupo DAM (Da Arab MCs)[5], sigla que pode significar “duradouro” ou “eterno” em árabe. O grupo começou em 1999, pela união dos irmãos Tamer e Suhell Nafar, e seu amigo Mahmoud Jreri, todos oriundos de Lod, uma “cidade mista” em Israel, conhecida por comportar a tumba de São Jorge. Inspirados no grupo de rap argelino Le Micro Brise Le Silence (1988), o trio começou a cantar sobre temas como a situação de “cidadãos de segunda classe” na cidade compartimentada em que viviam, a violência colonial e o tráfico de drogas que acontecia na cidade.
Numa reportagem de 2005, Tamer Nafar, falando sobre a inspiração em Tupac Shakur – um dos maiores rappers de todos os tempos, e nascido no berço do Partido dos Panteras Negras – fez uma reflexão sobre a dupla consciência[6] de ser um árabe palestino, da mesma forma que os afro-americanos a enfrentavam[7]:
“Vejam só: cresci em Israel e isso me torna uma minoria, não apenas em número, mas também em direitos. Me chamam de cidadão, e mesmo assim o símbolo de Israel é apenas para judeus. É como um clube para brancos, e negros só podem entrar pela porta da cozinha.”
A inevitabilidade dos palestinos compararem sua situação com a dos negros nos Estados Unidos demonstra não apenas uma solidariedade entre esses povos no plano individual e também no coletivo – como deixa clara a longa relação entre o Partido dos Panteras Negras com a causa palestina –, mas também no plano cultural, com o hip-hop, surgido nos Estados Unidos e banhado de várias nacionalidades e raças oprimidas, ganhando os corações e mentes de um povo colonizado do outro lado do Atlãntico. Longe de se tornar uma cultura hegemônica entre os palestinos, o hip-hop se tornou mais uma ferramenta de denúncia, protesto, e até mesmo diversão, algo que é raro num local bombardeado diariamente e que sofre com um cerco humanitário onde nem mesmo água, comida e remédios podem passar, como Gaza. E quando passam, as filas de pessoas são assassinadas com um simples apertar de botões.
Com três discos lançados, o DAM foi aclamado pela crítica como uma das vozes artísticas e culturais mais importantes entre os palestinos. Um dos seus maiores sucessos é a faixa Who is the Terrorist? (“Quem é o terrorista?” em tradução literal) . Mas não são apenas eles que usam o hip-hop para fins políticos na região. MC Abdul, nascido em Gaza, lançou em 2020 a faixa “Shouting at the Wall” (“Gritando contra o muro”, em tradução literal), uma defesa das famílias palestinas que ainda estavam em Gaza. Em 2022, o rapper fez seu primeiro show durante a abertura da Copa do Mundo do Catar[8], chamando a atenção do mundo.
Além dos rappers que residem em território palestino, existe toda uma diáspora de rappers, migrados para outros países do Oriente Médio ou para os Estados Unidos e outras nações ocidentais, que representam o movimento hip-hop de seu país – um país que, aos olhos do direito internacional não existe, mas que é a grande causa das letras de rap desses artistas. Shadia Mansour, a “primeira dama do hip-hop árabe”, de origem palestina e nascida em Londres, começou a cantar rap durante protestos de palestinos em Londres, além de interpretar canções árabes de protesto. Defensora não apenas da libertação da Palestina, como da condição das mulheres no território e em outros países árabes, Shadia é uma grande voz contra o patriarcado. Junto da chilena Ana Tijoux, famosa rapper anticapitalista e defensora da causa indigena, lançaram a faixa “Somos Sur” (“Somos o Sul”), colocando no rap a questão do sul global, o antigo Terceiro Mundo. Uma de suas músicas mais famosas surgiu após Mansour ver um lenço palestino nas cores azul e branco, com uma estrela de Davi. Ela escreveu a potente faixa “Al Kufiya Arabiya” (O Kufiya é árabe).
“Você pode pegar meu falafel e homus , mas não toque no meu keffiyeh”.
Outro grupo digno de nota é o Refugees Of Rap. A dupla, formada pelos irmãos Yaser e Mohamed Jamous, é sediada em Paris, e surgiu em 2007, num campo de refugiados em Yarmouk, na Síria. O fato de morarem num campo de refugiados moldou não apenas o nome do grupo, mas também suas letras,e o som que delas surgem. Um diferencial na trajetória do Refugees é que, quando a Guerra Civil estourou na Síria, em 2013, eles novamente tiveram de se refugiar, e por isso foram para a França. Críticos do antigo governo de Bashar al-Assad, também ecoam a voz dos palestinos tidos como apátridas, juntando forças para que essa voz seja cada vez mais ressonante.
Esse breve panorama nos dá uma boa introdução do movimento hip-hop, principalmente o rap, não apenas em Gaza, mas nos diversos exílios que esse povo tem enfrentado, e que vai, aos poucos, constituindo uma imensa diáspora. Se sentir pertencente a um lugar é, de certa forma, um dos primeiros pressupostos para lutar por ele. Mas isso não basta. DJ Khaled, um dos maiores nomes do rap global, tem sido constantemente criticado por seu silêncio sobre o genocídio palestino.[9] Enquanto isso, outras dezenas de rappers mainstream, e centenas ou milhares de artistas underground de outras origens étnico-raciais tem se posicionado sobre o que o estado de Israel vem cometendo há décadas, com uma intensificação desde outubro de 2023.[10]
O importante é demonstrar que, ainda que a morte seja notícia diária sobre Gaza, a vida e a resistência também acontecem. Para além da resistência diplomática e armada, a resistência cultural, com suas transformações pelas condições postas pelo colonialismo – tema caro aos grandes revolucionários e teóricos Amílcar Cabral e Frantz Fanon – vem sendo reconhecida e vista pelo mundo. Esse poder ficou explícito quando o rapper americano Macklemore, em plena solidariedade com o povo palestino, lançou Hind’s Hall. A faixa, cujo nome tem inspiração nos manifestantes da Universidade de Columbia, em Nova York, que protestaram contra o assassinato de Hind Rajab, uma palestina de apenas seis anos, pelas Forças de Defesa de Israel, tomou proporções gigantescas. Em 24 horas, acumulou 25 milhões de plays, e estremeceu o mundo do rap. Lançada enquanto a guerra entre os rappers Drake e Kendrick Lamar estava no auge, Macklemore cuspiu: “Eu quero um cessar-fogo, foda-se a resposta do Drake.” É um alerta sobre a necessidade do rap mudar o foco.
Se o Bronx em chamas criou as condições para o surgimento do hip-hop, Gaza, com uma extensão de 365 km² – pouco mais de um quarto da cidade do Rio de Janeiro –, e com mais de 2 milhões de habitantes – uma das maiores taxas de densidade populacional do mundo –, e fartamente destruída por mais de 85 mil toneladas de explosivos nos últimos dois anos[11], também possui as condições para que o hip-hop se desenvolva de maneira revolucionária.
Cinco elementos sobre escombros: o hip-hop em Gaza como movimento de reapropriação urbana
“Temos medo da guerra quando estamos em casa, mas nossa saúde mental mudou com a dança. Nos divertimos agora”.
Foi assim que Al-Shafe, de apenas 11 anos, se dirigiu a uma reportagem da Reuters sobre o hip-hop em Gaza. Esse alívio demonstra o caráter pedagógico do hip-hop, mas a chamada da matéria não condiz com a situação real das mentes em Gaza. As crianças, com sua inocência, no sentido mais sublime da palavra, precisam alcançar, de certa maneira, um nível de adultização terrível por conta da invasão colonial que as assola. Esse processo, chamado de “alívio do estresse” nada mais é do que, nas palavras de Fanon, “um estado de despersonalização absoluta.”[12]
O hip-hop nasce como diversão, mas essa diversão só foi possível pelas condições desumanas em que negros e latinos viviam nos bairros pobres de Nova York entre as décadas de 1960-1980. O movimento nasceu como uma alternativa à falta de políticas públicas. Provavelmente, em condições dignas, o hip-hop surgisse de outras maneiras, ou talvez nem existisse. É por conta disso que, num paralelo com a situação em Gaza, é possível falar, segundo o termo usado por Nelson Werneck Sodré em Síntese de história da cultura brasileira, em uma cultura transplantada, com a diferença de que a cultura africana se transplantou para o Brasil por meio do tráfico de pessoas escravizadas, enquanto o hip-hop chega a Gaza por meio da resistência cultural de seu povo à ocupação.
Dadas as particularidades dessa categoria, podemos observar as semelhanças entre as realidades do Bronx nos anos 1970 e da atual Gaza. O hip-hop é, essencialmente, um movimento urbano. Isso não significa que ele não possa florescer em outras estruturas econômicas e geográficas, mas seus quatro principais elementos — especialmente o break e o grafite —, têm essas características geográficas indissociáveis.
O recente florescimento do break na cidade vem acompanhado da manifestação do grafite e da pixação. “Há um holocausto em Gaza”, dizia uma pixação feita no Muro das Lamentações, em agosto de 2025, na cidade de Jerusalem. Logo, a polícia anunciou a prisão de um jovem de 27 anos, suspeito de cometer tal ato. Mas existe um outro muro, do lado dos colonizados, que serve como um museu radical aberto para as expressões políticas e visuais dos palestinos e de seus camaradas. A Barreira da Cisjordânia, também conhecida como Muro da Cisjordânia, começou a ser construída em 2002. Com 760 km de extensão – duas vezes o comprimento da Linha do Armistício de 1949 –, ela serve, na prática, não apenas para alienar os trabalhadores das oliveiras de suas terras, como uma barreira concreta que separa os sujeitos dos não-sujeitos. Foi nesse muro que, em 2005, o renomado grafiteiro Banksy – artista de renome internacional – fez o famoso estêncil Flying Balloon Girl, que representava uma garota segurando balões, tentando superar os oito metros do muro; uma cena que traduz o desejo de união entre os dois povos, israelenses e palestinos. A arte ganhou repercussão no mundo, ajudando a colocar mais luz sobre um tema que, de tão presente, ficou esquecido. Era como se a ocupação colonial na Palestina fosse mero detalhe.
Mas nem sempre os artistas conseguem corresponder aos diversos anseios do povo. Após ver a arte no muro, um cidadão palestino declarou: “Não queremos que este muro seja bonito. Nós o odiamos. Vá para casa.”[13]
O exemplo do grafite e da pixação em Gaza, além do breakdance, demonstra a capacidade do hip-hop em se reinventar em ambientes urbanos, que passam ou não por um processo de degradação pelo capital ou pelo colonialismo. É nesse sentido que trago essa reflexão, pois, ainda que possa parecer uma transposição cultural mecânica, são nesses espaços em que a arte do hip-hop tende a florescer com mais intensidade, devido à sua estética, à simplicidade em sua execução – são necessários apenas muros, pedaços de chão e algumas caixas de som para ele acontecer –, e sua forma urbana. Os jovens da cidade tem se reapropriado de suas terras, ainda que de forma momentânea. Não há quase nada em pé em Gaza, como não havia no Bronx, e é nessa reapropriação do que existe como tal que o hip-hop consegue passar pelas entranhas.

Mas o que torna esse desenvolvimento em Gaza especial é um outro fator. Enquanto o hip-hop, especialmente o rap, tem alcançado grandes números e movimentado bilhões de dólares pelo mundo, elementos esses que trouxeram uma nova estética para o gênero e uma outra filosofia – não tão velha, se pensarmos nas bases complexas que o movimento se fundou, tanto pela herança socialista do Partido dos Panteras Negras, como pela via de uma economia afro-centrada de certo Nacionalismo Negro –, Gaza é uma cidade devastada pelo colonialismo, onde mal se pode falar em liberalismo, ostentação e bling-bling[14]. É a composição material daquele local que determinam os discursos, e hoje, diante de tantas frentes de batalha, ideologias distintas em busca da libertação palestina, e um acordo de cessar-fogo vacilante em vigência, Gaza não se pode dar ao luxo de ostentar. Talvez seja em Gaza que o hip-hop possa retomar um discurso anticapitalista de amplo alcance, assim que, do rio do mar, suas terras sejam libertadas.
Enquanto isso, rappers do mundo todo tem se dedicado ao boicote do estado colonial de Israel, como os mais conhecidos no norte global, e, mais recentemente, o brasileiro Don L. Junto das torcidas organizadas e outros movimentos culturais, a voz do rap, com todas as suas contradições, tem sido um elemento importante para mostrar, além dos vídeos de corpos sem vida, a luta e a produção cultural dos palestinos. É importante que o foco não seja restrito ao genocidio mais documentado da história, porque são as pessoas, vivas, que vão criar uma Palestina independente, multi-religiosa e étnica, livre do colonialismo e do capitalismo monopolista. A música acompanha a luta, e a luta cria condições para que a música e a cultura se desenvolvam. Afinal, como declarou o rapper Nafar:
“Quando você cresce, acha que sua arte pode mudar o mundo. Você percebe que, talvez, uma música de US$ 10.000 não concorra com bilhões de dólares em armas americanas. Então agora eu penso diferente. A arte só pode documentar, para o bem ou para o mal; um resultado feliz ou não. Neste momento, estamos em uma segunda Nakba, uma época de massacre. Então é isso que estou documentando.
A música não pode parar uma máquina de guerra, mas tem um pequeno papel. Saber disso é libertador, de certa forma.”
(*) Marco Aurélio, mais conhecido como Marcola, é nascido e criado na zona sul de São Paulo. Estudante de história e fotógrafo documental nas horas vagas, há 7 anos escreve e pesquisa o rap, o samba e outros temas da cultura popular brasileira. Em 2022, participou, como pesquisador, do projeto “A Timelife of Brazilian Hip-Hop” junto ao Spotify Global, e em 2023 participou do projeto “Clube de leitura do Rap”, no Centro Cultural São Paulo.






































