O dia 15 de abril marcou o segundo aniversário da guerra civil no Sudão, que deixou dezenas de milhares de mortos e milhões de deslocados. Publiquei um ensaio no Sidecar, intitulado “Gunshots in Khartoum” (Tiros em Cartum), dois dias após o início da guerra, no qual tentei traçar seus contornos emergentes gerais. O conflito inicialmente opôs o exército sudanês às Forças de Apoio Rápido (RSF) – uma organização paramilitar formada durante o regime do ditador Omar al Bashir (1989-2019). Nas primeiras semanas da guerra, as RSF invadiram grande parte de Cartum, capital do Sudão, incluindo o Palácio Presidencial. Construído inicialmente em 1825, durante a colonização turco-egípcia do Sudão, o palácio era a sede de um regime imperial empenhado em escravizar e saquear o resto do país. O último governador do Sudão Turco-Egípcio (1820-1885), Charles Gordon, foi morto por insurgentes mahdistas nos degraus do palácio em 1885. Sucessivos regimes mantiveram tanto as tendências espoliadoras dos colonialistas turco-egípcios quanto sua obsessão pelo Palácio Presidencial. Depois que os mahdistas o demoliram, os britânicos o reconstruíram durante sua ocupação colonial do Sudão (1898-1955). Ele tornou-se o “Palácio Republicano” após a independência do Sudão em 1956 e, em seguida – embora por pouco tempo –, o “Palácio do Povo” durante o reinado de Jafaar Nimeiri (1969-1985). Bashir, que tomou o poder em um golpe em 1989, ordenou a construção de um novo palácio, ao lado do antigo, construído e financiado pelos chineses. Ele não conseguiu ficar muito tempo em sua nova morada. Uma onda de protestos em 2018-19, provocada por cortes nos subsídios aos cereais e combustíveis, pôs fim ao seu regime.
Um governo de transição foi estabelecido em 2019, no qual políticos civis compartilharam o poder de forma desconfortável com os líderes dos serviços de segurança do Sudão: Abdul Fattah Al Burhan, chefe das Forças Armadas do Sudão (SAF), foi nomeado chefe de um Conselho Soberano, enquanto Mohamed Hamdan Daglo (também conhecido como Hemedti), líder da RSF, tornou-se seu vice. Os dois homens logo conspiraram para tirar os civis do poder. Em outubro de 2021, eu passei por um protesto de fachada organizado do lado de fora do palácio, orquestrado pelos serviços de segurança, que usaram a agitação artificial como justificativa retórica para um autogolpe no final daquele mês. Bashir havia multiplicado seus serviços de segurança como forma de proteger seu regime contra golpes, garantindo que nenhum órgão fosse forte o suficiente para tomar o poder. Cada um tinha seu próprio império econômico, que incluía o setor de construção, imóveis e bancos. Talvez fosse inevitável que as duas cabeças mais poderosas da Hidra, a RSF e o exército sudanês, se voltassem uma contra a outra e disputassem o controle da capital. Após quase dois anos de conflito, em 21 de março de 2025, o exército sudanês finalmente retomou o Palácio Presidencial e expulsou a RSF de quase toda Cartum. Soldados exultantes posaram em frente ao palácio em ruínas, com as paredes marcadas por buracos de balas. Algumas semanas depois, um diplomata europeu me perguntou ansioso: isso significa que a guerra acabou?
O palácio, assim como a soberania sudanesa, agora está vazio. O que começou como uma batalha pelo controle do Estado se transformou em uma guerra sem fim à vista. Tanto a RSF quanto o exército sudanês eram inicialmente atores militares fracos, sem ampla base social. Eles travaram uma guerra à maneira de seu mentor, Bashir, que colocou grupos étnicos uns contra os outros e terceirizou suas campanhas de contra-insurgência para forças milicianas. Tanto a RSF quanto o exército criaram coalizões indisciplinadas de forças de autodefesa comunitárias e combatentes mercenários. A dinâmica local desencadeada por esta estratégia desarticulou-se da luta pelo controle do Estado sudanês. Para jovens como Hamar e Misseriya, que lutam na região de Kordofan, no sul do Sudão, as lutas pela terra e pelos recursos tornaram-se existenciais e deixaram feridas que um cessar-fogo a nível nacional não poderia curar, mesmo que fosse acordado. A luta pelo controle do palácio desencadeou uma centena de conflitos bélicos em todo o país.
A fragmentação centrífuga do conflito sudanês tem sido financiada por atores regionais, para os quais as terras em Kordofan não é uma heimat (lar, terra natal), mas uma oportunidade de negócios. O principal apoiador das RSF são os Emirados Árabes Unidos (EAU), que esperam aumentar seu domínio sobre o lucrativo comércio de ouro do Sudão com a aquisição de um porto no Mar Vermelho e o controle das ricas terras agrícolas do país. Por trás do exército sudanês está seu apoiador de longa data, o Egito, junto com um grupo heterogêneo composto por Catar, Turquia e Arábia Saudita. Os esforços diplomáticos internacionais para acabar com a guerra civil no Sudão partem da premissa de que as nações envolvidas prefeririam um Sudão estável e soberano, com um único governo. Mas isso não é necessariamente verdade. Para aqueles que armam os beligerantes do Sudão, a guerra pode trazer tantas oportunidades de lucro quanto a paz, e pode ser mais fácil exercer influência sobre um Sudão fragmentado e destruído. A soberania pode não retornar ao palácio.

No início, era quase possível acreditar em uma vitória rápida das RSF. Bashir criou a organização paramilitar a partir de grupos de identidade árabe em Darfur, no oeste do Sudão, para combater em uma contra-insurgência contra rebeldes em grande parte provenientes de comunidades não árabes da região, como os fur, masalit e zaghawa. No início da guerra atual, a superioridade numérica das RSF permitiram-lhes tomar rapidamente o controle de Darfur, que se tornou seu reduto, com exceção da cidade de El Fasher, onde enfrentaram a resistência dos Zaghawa. Em Kordofan, as RSF forjaram alianças com milícias locais, oferecendo-lhes o que eram efetivamente franquias no monopólio da violência. O exército sudanês foi rapidamente reduzido a uma série de cidades-quartel sitiadas. No final do primeiro ano do conflito, as RSF aproveitaram o impulso para avançar profundamente no centro do Sudão, longe do seu reduto, em Darfur, capturando duas cidades importantes ao sul de Cartum: Wad Medani, capital do estado de Al Jazira, um dos celeiros do Sudão, e Sinjah, no estado de Sennar. Estas perdas humilharam o exército, que se desintegrou perante o avanço das RSF.
Os paramilitares eram os melhores combatentes. Já estavam endurecidos pelas batalhas em Darfur e no Iêmen, onde as RSF serviram como força mercenária para os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita na guerra contra os houthis. Seu avanço para o centro do Sudão foi auxiliado por carregamentos de armas dos Emirados — incluindo mísseis antitanque — e do Grupo Wagner, que está de olho nas minas de ouro controladas pelas RSF no sul de Darfur. A verdadeira razão do sucesso das RSF, porém, é o fracasso do exército sudanês. Apesar de sua esmagadora superioridade aérea, no primeiro ano da guerra o exército tinha poucos soldados dispostos a morrer por um corpo de oficiais esclerosado que havia se refugiado em Port Sudan, no Mar Vermelho, que se tornou a capital de facto do exército. Embora o exército tenha sido absurdamente reconhecido pelas Nações Unidas como o governante legítimo do Sudão — o que lhe permitiu bloquear comboios humanitários no território controlado pelas RSF —, em junho de 2024, seu controle sobre grande parte do país era apenas nominal.
No entanto, mesmo no auge do seu sucesso, as RSF enfrentavam desafios que Hemedti não conseguia resolver. Ex-contrabandista de camelos e proprietário de uma loja de móveis da filial Awlad Mansour da Mahariya Riziegat, uma comunidade árabe de Darfur, Hemedti era há muito considerado um intruso sem instrução proveniente das periferias pelos seus rivais em Cartum. Desde o início da guerra, ele teve que desempenhar vários papéis, às vezes conflitantes, ao mesmo tempo: não apenas líder de uma máquina de guerra, mas também CEO de um império empresarial transnacional com interesses em ouro e armas. As RSF não são um exército permanente, mas sim uma série de milícias, recrutadas em grande parte por meio de mobilizações marciais conhecidas como faza’a, organizadas pelas autoridades tradicionais das comunidades árabes de Darfur. As RSF utilizaram essas milícias para lutar em Cartum, mas a instrumentalização foi mútua: as comunidades de Darfur também utilizaram os recursos das RSF para travar as suas próprias lutas locais. Em El Geneina, no Darfur Ocidental, milícias árabes realizaram uma limpeza étnica dos masalit, forçando os sobreviventes a atravessar a fronteira para o Chade, em um ato que o governo dos EUA caracterizou como genocídio.
Os objetivos políticos de Hemedti muitas vezes entram em conflito com as concessões que ele deve fazer para manter unida a coalizão de milícias comunitárias árabes que constituem sua máquina de guerra. A limpeza étnica dos masalit foi um sucesso militar para essas milícias, mas um desastre político para Hemedti. A reprovação internacional revelou-se menos problemática do que as repercussões em Darfur. O fato das RSF terem se tornado um veículo para o supremacismo árabe minou as perspectivas de Hemedti de se posicionar como um líder revolucionário capaz de unir as periferias oprimidas do Sudão – uma ideia com que ele tinha flertado ao tentar encontrar aliados políticos após a queda de Bashir. Preocupadas de que em breve partilhariam do destino dos masalit, muitas das comunidades não árabes de Darfur, como os zaghawa, juntaram-se ao exército, apesar de terem lutado contra o Estado sudanês durante mais de duas décadas. Os zagawa do Chade atravessaram a fronteira nominal entre os dois países e entraram no Darfur do Norte, participando na defesa de El Fasher, que, até 17 de abril, ainda não tinha caído. A cidade tornou-se um buraco negro para as RSF, engolindo homens e recursos e forçando-as a desviar a sua atenção de Cartum e do centro do Sudão. Para a população do Darfur do Norte, os paramilitares revelaram-se uma maldição: sob o cerco das RSF, as condições humanitárias deterioraram-se de tal forma em Zamzam, um campo de deslocados adjacente a El Fasher, que este foi atingido pela fome – antes de, em 13 de abril, as RSF o invadirem, matando centenas de civis e forçando quase meio milhão de pessoas a fugir.
A máquina de guerra de Hemedti baseia-se na expansão contínua. Uma vez que as RSF oferecem aos seus recrutas licença para saquear e invadir como forma de pagamento, na ausência de novos alvos, as suas forças têm tendência a dispersar-se. Em todas as cidades que capturam, as RSF empregam o mesmo manual: destruir instituições estatais, saquear recursos humanitários, arrasar com propriedades civis. Seus ataques funcionaram como um enorme motor de acumulação primitiva que destruiu terras agrícolas, deslocou milhões de pessoas e efetuou a transferência de riqueza dos mais pobres do Sudão para uma classe de líderes milicianos apoiados pelo capital dos Emirados. Embora as RSF afirmem ter estabelecido administrações civis nas áreas sob seu controle, com frequência elas entram em conflito com as populações locais. À medida que seus avanços no campo de batalha diminuíram, as RSF passaram a extrair lucros dos próprios corpos daqueles que domina; os sequestros em áreas controladas por paramilitares se tornaram comuns. É claro que as RSF não vêem a situação dessa forma. Os jovens milicianos que filmam alegremente a si mesmos carregando chapas de metal roubadas de Cartum para Darfur falam em “derrubar o Estado de 1956”. Desde o início, o Estado sudanês foi estruturado por relações centro-periferia, nas quais as cidades ribeirinhas do norte, centralizadas em torno da capital, exploravam o interior do país em busca de mão de obra e recursos. De acordo com os jovens combatentes que se aproveitam dos espólios da guerra, as RSF estão simplesmente devolvendo a Darfur o que lhe foi roubado. A retórica não corresponde à realidade. As cidades de Darfur, como Nyala e Zalingei, também foram saqueadas pelas RSF. Os paramilitares generalizaram a economia política predatória do regime de Bashir. Enquanto Bashir explorava as periferias para enriquecer o centro, as RSF transformaram todo o país numa periferia a ser saqueada.
O método de guerra das RSF acabou por se provar a sua própria ruína. O uso da violência sexual e das execuções em massa como armas de guerra foi um presente em termos de propaganda para o exército sudanês, que criou as suas próprias forças milicianas evocando espectros demasiado credíveis de saqueadores invasores vindos do oeste. Em outubro de 2024, o pêndulo começou a pender novamente a favor do exército. Depois de pagar pela deserção de um importante comandante das RSF, Abu Aqla Keikal, ele retomou Wad Medani e, no final de 2024, conseguiu reverter quase todos os ganhos do grupo paramilitar no centro do Sudão. Em 17 de abril de 2025, as RSF haviam perdido Cartum e estavam amplamente restritas a Darfur e Kordofan.
O ressurgimento do exército sudanês deve-se, em parte, ao sucesso na obtenção de apoio estrangeiro. O Catar — ansioso por bloquear os Emirados Árabes, seu rival — financiou a compra de caças chineses e russos pelo exército, enquanto os serviços secretos militares egípcios supervisionaram operações de ataque com drones recém-chegados do Irã e da Turquia. No entanto, seria um erro sobrevalorizar a importância do novo equipamento. O sucesso do exército deriva principalmente de ter imitado Bashir, terceirizando os combates para milícias, enquanto voltava a apoiar o bloco político islâmico que sustentou os primeiros anos da ditadura. Os apoiadores islâmicos de Bashir foram derrubados pela revolução de 2019; “a guerra”, explicou-me um ex-membro de seu serviço de inteligência no ano passado, “nos oferece uma segunda chance”. O conflito proporcionou aos islamistas a oportunidade de reconstituir suas forças militares e expandir-se para os escalões superiores do exército sudanês. Grupos islamistas, como o Batalhão Al Bara’ Ibn Malik, lutam ao lado dos mustanfereen, ou “mobilizações populares”: comunidades que pegaram as armas oferecidas pelo exército. Burhan construiu uma força de combate, mas apenas cedendo poder aos membros de sua coalizão. A vitória no campo de batalha teve como preço uma fragmentação ainda maior, que torna a reconstituição do país e a conquista de uma paz duradoura mais difíceis do que nunca. No estado de Al Jazira, um amigo me disse: “Nunca costumávamos perguntar… Mas agora a primeira pergunta que fazemos a um estranho é de qual aldeia ele é”. As comunidades se fecharam em si mesmas e o pacto nacional encolheu proporcionalmente.
Os últimos dois anos de guerra devastaram o país. Estima-se que mais de 150 mil pessoas tenham morrido. O Sudão constitui a pior crise humanitária do mundo. É também a pior crise de deslocamento do mundo: 13 milhões de pessoas fugiram de suas casas. Quase dois terços da população precisa urgentemente de assistência humanitária, incluindo 16 milhões de crianças. Em dezembro de 2024, o Comitê de Revisão da Fome da Classificação de Fase Integrada – o padrão ouro mundial na medição da insegurança alimentar – previu que a fome ocorreria no norte de Darfur e no sul de Kordofan. No entanto, a resposta humanitária para 2025 tem menos de 10% do financiamento necessário. Os cortes de Trump na ajuda externa tornaram essa situação insuportável ainda mais intolerável: 75% das salas de resposta a emergências, organizações criadas por ativistas sudaneses para fornecer alimentos e cuidados médicos em todo o país, fecharam depois de ficarem sem dinheiro. O sistema de saúde do Sudão entrou em colapso total. Grande parte de Cartum é um cemitério. Os beligerantes governam sobre ruínas.
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Após uma série de derrotas e em um clima cada vez mais paranóico criado pela deserção de Keikal, as RSF tentaram mudar sua sorte realizando uma conferência em Nairóbi no final de fevereiro, que anunciou uma carta política que levaria à formação de um governo paralelo. Líderes comunitários de Darfur chegaram com passaportes falsos do Chade e lotaram os hotéis da capital queniana, onde se reuniram com líderes rebeldes de facções que decidiram apoiar as RSF. O próprio Quênia recebeu um pagamento generoso dos Emirados Árabes Unidos para sediar a conferência. Sua proximidade com Hemedti faz parte de um realinhamento regional em torno das RSF, que também viu dólares dos Emirados fluírem para o Sudão do Sul, Chade, Etiópia e Uganda. Nenhum desses países se declarou formalmente como apoiador das RSF, assim como os próprios Emirados Árabes Unidos negaram que estejam financiando o grupo paramilitar. Os petrodólares dos Emirados lubrificam as rodas das redes de negócios: todos os países em sua esfera de influência se beneficiam do ouro que sai do Sudão, quase todo ele indo para os Emirados Árabes Unidos. Em 15 de abril, as RSF declararam um “Governo de Paz e Unidade”, ao mesmo tempo em que suas forças arrasavam o campo de Zamzam. O exército sudanês também estabelecerá seu próprio governo. Alguns temem que uma segunda partição do Sudão seja iminente, pouco mais de uma década após a separação do sul. Na realidade, o país já está dividido, e o estabelecimento de um governo das RSF é um exercício de relações públicas; seus territórios continuarão sendo governados por milícias apoiadas por atores regionais que lucram com a inserção contínua do Sudão nos mercados globais de commodities.
Apesar do conflito no campo de batalha, muito une as duas partes beligerantes. Ambas são remanescentes do regime de Bashir – embora o exército tenha uma história muito mais longa – e ambas dependem de apoio externo. Ambas exacerbaram as divisões sociais no país como forma de fortalecer suas forças. Ambas usaram a fome como ferramenta de guerra e restringiram o acesso humanitário. A unidade das duas partes beligerantes não é apenas formal. Os negócios nunca estiveram tão bons. Ambos os lados exportam ouro para os Emirados Árabes Unidos, com as exportações oficiais anuais – a maior parte do ouro é contrabandeada – duplicando desde o início da guerra. As exportações de animais para o Golfo também dispararam (de 2 para 4,7 milhões de cabeças de gado entre 2022 e 2023). A maior parte do gado do Sudão vem de Darfur, mas é exportado através do Porto do Sudão. Nesta venda a preço de banana dos ativos do país, os dois lados colaboram.
As partes beligerantes também estão unidas pelo papel comum na fragmentação do país. Tanto as áreas controladas pelas RSF quanto as controladas pelo exército estão divididas internamente. Um Darfur “unificado” sob o domínio das RSF verá confrontos entre os paramilitares e grupos rebeldes não árabes, muitos deles apoiados pelo exército sudanês, que ficará muito feliz com a destruição de Darfur, assim como aconteceu antes, se o centro do país puder ser mantido. Também ocorrerão confrontos entre aqueles que são formalmente leais às RSF. Grupos árabes do Darfur têm usado o apoio das RSF para avançar em reivindicações de terras em disputas com outras comunidades que remontam às migrações induzidas pelas mudanças climáticas que começaram na década de 1970. Tensões interétnicas também surgiram em torno de nomeações políticas dentro das RSF. Hemedti encontra-se agora na mesma posição que Bashir, mediando constantemente entre as milícias rivais das quais depende seu poder. A declaração de um governo paralelo não superará essas dinâmicas subjacentes.
A coalizão heterogênea do exército sudanês também está profundamente dividida, e uma cisão ainda pode surgir. Os islamistas estão mais interessados em construir uma base de poder no centro do Sudão do que em entrar em guerra em Darfur e Kordofan. Alguns dos oficiais próximos a Burhan são hostis aos islamistas, assim como alguns dos apoiadores do exército, incluindo o Egito. Os islamistas ainda podem pressionar por um golpe de Estado. Quem quer que esteja no comando de um governo liderado pelo exército terá que lidar com os monstros que ele mesmo criou: o exército empoderou líderes milicianos que são apenas nominalmente leais a Cartum e já colocaram suas comunidades em conflito com as comunidades vizinhas.
Os esforços diplomáticos da chamada comunidade internacional têm sido risíveis. Os EUA passaram um ano tentando levar os dois lados a Jeddah, na Arábia Saudita, para chegar a um acordo de cessar-fogo, mesmo que o exército sudanês tivesse toda a intenção de vencer a guerra no campo de batalha. Em agosto de 2024, ele nem sequer compareceu às negociações de paz em Genebra; estava ocupado usando dinheiro do Catar para comprar caças chineses. A diplomacia tem-se concentrado em garantir um cessar-fogo e, em seguida, regressar à receita internacional que foi tentada — e falhou — após a queda de Bashir: um governo de transição, a integração das RSF no exército e eleições. Tal abordagem parece uma fantasia dos anos 90, quando as estantes dos especialistas em política estavam repletas de títulos como How to Build a State (Como construir um Estado).
Essa era chegou ao fim. A guerra civil sudanesa é ao mesmo tempo muito local e muito internacional para ser resolvida por um processo diplomático que se concentra nos dois beligerantes, que têm um controle instável sobre as milícias que recrutaram e cujos negócios lucram com a guerra. As forças que estão dividindo o Sudão são estruturais e têm paralelos em outras partes da região: o colapso da capacidade do Estado, forças militares apoiadas por atores mercenários estatais e não estatais e a fragmentação do corpo político também são características dos conflitos no Iêmen, na República Centro-Africana e na Somália. Cada vez mais, parece que as peças não serão recolocadas no lugar. Pelo menos no Chifre da África, a era do Estado-nação parece estar chegando ao fim, e os contornos de um novo século XIX estão surgindo, no qual a soberania dá lugar a países desarticulados, controlados por interesses externos e fragmentados por dinâmicas locais.
Se existe um Regime de Guerra Global emergente, como Hardt e Mezzadra sugeriram, ele não terá dois polos, como durante a Guerra Fria, mas múltiplas coordenadas. No Sudão, os Emirados Árabes Unidos financiam as RSF, mas também compram ouro do exército e apoiam alguns dos islamistas alinhados com ele. A Turquia pode estar vendendo drones para Burhan, mas Ancara também recebeu recentemente uma visita oficial de Saddam Haftar, filho do general que controla o leste da Líbia, que canaliza armas e combustível para as RSF. Não há nenhuma lógica geopolítica de alinhamento em ação aqui: cada país funciona como uma sociedade por ações, obtendo seus lucros onde pode, mesmo que as consequências sejam politicamente incoerentes. A política transacional de Trump tem sido há muito tempo o modus operandi dos países de poder médio, cujas fileiras os Estados Unidos parecem determinados a integrar.
Nesse regime de guerra global transacional, o espaço para a resistência é fragmentado. Os comitês de resistência do Sudão – ativistas locais organizados horizontalmente que derrubaram Bashir – têm sido alvo tanto do exército quanto dos paramilitares. Alguns pegaram em armas e lutam ao lado dos islamistas que eles expulsaram do poder. Outros formaram salas de resposta a emergências que, na ausência de apoio estatal e de organizações humanitárias internacionais, têm prestado heroicamente serviços de saúde e alimentação em todo o país. Se olharmos com atenção, podemos ver, em meio às ruínas do Sudão, uma rede genuinamente nacional de grupos de ajuda mútua. Sua sobrevivência é incerta. As forças que estão dividindo o Sudão têm pouco interesse em acabar com esta guerra, que criou o tipo de capitalismo-enclave que provavelmente será característico do Chifre da África nas próximas décadas.
(*) Tradução de Raul Chiliani



































