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Moniz Bandeira: Objetivo dos EUA é anular a soberania dos Estados nacionais

Confira a entrevista completa da Revista Opera com Moniz Bandeira, por ocasião do lançamento de sua mais nova obra, “A Desordem Mundial”.
por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: The U.S. Army)

Nascido em Salvador, Luiz Alberto Moniz Bandeira mudou-se para o Rio de Janeiro ainda jovem, publicando, aos dezenove anos, seu primeiro livro. Integrante do Partido Socialista Brasileiro, onde foi um dos fundadores da corrente Política Operária (Polop), foi perseguido durante o regime militar, tendo se exilado no Uruguai no ano de 1964.

Em 1965, volta ao Brasil e passa a viver clandestinamente em São Paulo. Foi preso político por dois anos, de novembro de 1969 a outubro de 1970 e, depois, em 1973, por ordem do Centro de Informações da Marinha (CENIMAR). Entre 1971 e 1972, pesquisou e escreveu, na clandestinidade, a obra Presença dos Estados Unidos no Brasil, bestseller no ano de 1973 (quando estava preso).

Formado em Direito e doutor em Ciência Política, foi indicado ao Prêmio Nobel duas vezes por sua obra A Segunda Guerra Fria. Hoje, aos 80 anos, é sem sombra de dúvidas um dos mais importantes intelectuais brasileiros vivos, e segue a tradição de se debruçar sobre os mais importantes temas globais atuais, tendo publicado no último mês seu mais recente livro, A Desordem Mundial.

O que segue é a íntegra de uma entrevista concedida pelo professor, que há 20 anos reside na Alemanha, à Revista Opera:

1 – Em A Desordem Mundial, o Sr. investiga profundamente as mais importantes tensões no mundo atualmente, da Síria à Ucrânia. Que importância têm a América Latina e o Brasil neste cenário? O impeachment de Dilma Rousseff tem ligação com isso?

R – A importância da América Latina é relativa. O Brasil se reveste, particularmente, de maior importância geopolítica e estratégica, devido ao fato de ser a segunda maior massa geográfica, demográfica e econômica do hemisfério, abaixo dos Estados Unidos, ter fronteira com quase todos os países da América do Sul (exceto Chile e Equador) e dominar grande parte do litoral do Atlântico Sul. E daí que, a inflectir para o alinhamento com a Rússia, China e Índia, três potências continentais, e mais a África do Sul, Washington não podia tolerar.

Em 1963, após o presidente João Goulart ganhar o plebiscito, que lhe devolveu a plenitude dos poderes executivos, extirpados pelo Congresso com a adoção do parlamentarismo, em 1961, o presidente Kennedy, preocupado com as conseqüências da campanha da imprensa contra o Brasil, convocou os jornalistas para uma entrevista coletiva na Casa Branca. E, após declarar que o fato lhe parecia anormal, artificial e contrário aos interesses do Hemisfério, desdobrou um mapa da América do Sul e, a apontar para o território do Brasil, aduziu: “Eu apenas gostaria de chamar a atenção dos senhores para o tamanho do Brasil”. E, quase dez anos depois, quando o general Emílio Garratazu Medici, como chefe do governo brasileiro, visitou os Estados Unidos, o presidente Richard Nixon disse que “para onde for o Brasil irá toda a América Latina”. Esta sempre foi a percepção dominante em Washington. E jamais, portanto, os Estados Unidos aceitaram, passivamente, que o Brasil não se alinhasse com suas diretrizes de política internacional.

Até o general Ernesto Geisel, que desenvolveu uma política externa com a maior autonomia, teve de abortar, em 1977, um golpe do seu ministro da Guerra, o general Sílvio Frota. Aos Estados Unidos, batidos, virtualmente, na Ucrânia e na Síria, convinha o impeachment da presidente Dilma Rousseff, com o fito de romper o grupo dos BRICS. É difícil, no entanto, mudar súbita e radicalmente a política exterior do Brasil, dado que a China constitui atualmente seu maior parceiro econômico e comercial. E os Estados Unidos, exauridos.

2 – Em qual contexto houve essa radicalização recente da política externa norte-americana? Qual foi o turning point?

R – Desde queda do Muro de Berlim (1989) e a dissolução da União Soviética (1991), os neoconservadores (neocons) do Partido Republicano e outros pretenderam que os Estados Unidos assumissem, abertamente, a condição do Império com a implantação da full-spectrum dominance, i. e., o total domínio do espectro terrestre, marítimo, aéreo e espacial. Essa pretensão, consubstanciada no Project for New American Century, que começou a ser executado pelo presidente Bill Clinton, do Partido Democrata, com a expansão da OTAN, e continuado, declarada e agressivamente, pelo presidente George W. Bush, do Partido Republicano, ao invadir o Afeganistão e, depois, o Iraque, o primeiro de uma série de outros países que planejava atacar, mas não teve condições e foi desaconselhado pelos militares.

As denominadas “revoluções coloridas”, nas repúblicas do Leste Europeu e da extinta União Soviética constituíram o desdobramento dessa operação, iniciada ao tempo do governo de Bill Clinton com o bombardeio da Sérvia pela OTAN, sem autorização da ONU. O presidente Barack Obama, do Partido Democrata, deu prosseguimento ao programa de estabelecer a full-spectrum dominance, sob o matiz de “primavera árabe” e, com o bombardeio da Líbia pela OTAN, desestabilizou todo o Oriente Médio.  

3 – Qual é a sua análise sobre o papel exercido pela Rússia neste momento no tabuleiro geopolítico global? 

R – O objetivo dos Estados Unidos e seus vassalos da União Europeia, o cartel ultra imperialista, é restringir/anular a soberania dos Estados nacionais e instituir a governança global, a full-spectrum dominance, entregando à OTAN o monopólio da violência, como global cop (polícia global). Porém os neoconservadores do Partido Republicano e do Partido Democrata, no seu ufanismo, esqueceram que a União Soviética se dissolvera, mas a Rússia não, e esta herdara todo o poderia nuclear, a mesma capacidade de reduzir também os Estados Unidos a pó de urânio. E não esperavam-se defrontar-se com um líder da estatura do presidente Vladimir Putin, que encarnou a “alma russa” (Русская душа) e salvou o país da desintegração, quando muitas regiões tendiam a não reconhecer a nova Constituição, de 25 de dezembro de 1993, ratificando a dissolução da União Soviética. Ele é o maior estadista das duas primeiras décadas do século XXI.

4 – Em 8 de novembro, os EUA elegeram seu próximo presidente. Como você avalia os dois candidatos – Donald Trump e Hillary Clinton – que concorreram?

R – Hillary Clinton era a candidata da elite de Wall Street/Silicon Valley,  região onde se concentram empresas eletrônicas da cadeia produtiva do complexo industrial-militar, era a candidata do establishment tanto dos Estados Unidos quanto da União Europeia. Representava a continuidade da mesma política de quatro presidentes, dois do Partido Republicano, dois do Partido Democrata, que eram, entretanto, iguais, só nos matizes se diferenciaram. E as centrais sindicais American Federation of Labor and Congress of Industrial Organizations (AFLCIO), que antes apoiavam o Partido Democrata, cansaram-se. Os trabalhadores brancos, empobrecidos pela globalização, os desempregados e outros segmentos da população descontente com  o statu quo queriam mudança. E daí que elegeram Donald Trump, um bilionário outsider, heterodoxo, como franco repúdio ao establishment político, à continuidade da política de guerra, à globalização, com a instalação de indústria offshore e a transferência de empregos para os países da Ásia, em busca de fatores mais baratos de produção, a fim de aumentar a taxa média lucro.

Assim, mais de mais de 70 milhões de cidadãos americanos (59 milhões em favor de Trump e 13 milhões em favor Bernie Sanders, no Partido Democrata) – demandaram mudança e não sem razão a corrente progressista do Partido Democrata, liderada por  Bernie Sanders, tende a uma composição com Donald Trump e a apoiar certos pontos de seu programa de governo.

5 – Tanto sobre a guerra na Síria quanto na ucraniana, temos visto na mídia global um discurso único, hegemônico. Em O Ano Vermelho, o Sr. trata, brevemente, da penetração das grandes agências internacionais de notícias na imprensa brasileira no começo do século XX. Isso mudou? Como o Sr. avalia esses discursos?

R – Antes, qualquer pessoa ou grupo, com poucos recursos, podia fundar um jornal e distribuir. Havia maior liberdade de imprensa. Claro que mudou, porém mudou para pior. Atualmente somente grandes empresas estão em condições de sustentar órgãos de comunicação, escrita ou falada, e na maioria das grandes cidades do Brasil só existem poucos meios de comunicação, que divulgam as mesmas notícias e, no mais das vezes, a mesma opinião, a refletirem o que pensam e querem seus donos e anunciantes. São empresas corporativas, como, aliás, em quase todos os países do Ocidente. As grandes agências de notícias, que abasteciam e continuam a abastecer a imprensa no Brasil, sempre foram estrangeiras e difundiram a Weltanschauung (visão do mundo) das potências dominantes e servem como instrumentos de operações de guerra psicológica (psy-ops).

Entretanto, certas notícias divulgadas em 1917 e que me pareceram guerra psicológica, quando escrevi O Ano Vermelho, em 1966, eram, na realidade, corretas, como a acusação do chefe de governo provisório da Rússia, Aleksandr Kerensky, segundo a que Lenin e Trotsky haviam recebido recursos da Alemanha.

6 – O Sr. vive na Alemanha já há algum tempo, mas gostaria de te perguntar: qual é sua avaliação sobre a relação que a esquerda brasileira tem com esses temas globais? Isto é; como combater a Desordem Mundial no Brasil?

R – A definição de esquerda ou direita depende das circunstâncias históricas, conforme a realidade em contínua mutação. “Nós entramos e não entramos no mesmo rio, nós somos e não somos”, Heráclito ensinou (Fragmento B 12, A 49 e 91). Com efeito, os conceitos têm de evoluir, portanto, com as mutações da realidade que pretendem representar. Não podem ser uma fotografia, que fixa determinado momento, determinada situação, de um ângulo.

As classes sociais existem, as lutas sociais prosseguem, porém suas características não são mais iguais às dos tempos de Marx e Engels ou de Lenin e Trotsky, ao tempo da Revolução Russa. E o fato é que, atualmente, as grandes corporações, à procura de fatores mais baratos de produção, de condições de investimentos mais seguras, estáveis e lucrativas, transferiram suas plantas industriais para os países da periferia do sistema capitalista e daí exportam o que fabricam, as manufaturas, para os mercados das próprias potências econômicas, das quais haviam emigrado. A produção industrial da Europa e dos Estados Unidos se processa, em grande medida, offshore, em países como a Índia e outros da Ásia, onde a força de trabalho é muito mais barata.

Assim o setor terciário superou a indústria na Europa, nos Estados Unidos e até no Brasil, onde gera mais empregos e concentra investimentos que nos setores primário (campo, extrativismo etc.) e secundário (manufatureiro).

E o que se chama de esquerda tem de estudar e compreender. Quanto à desordem, que ocorre no Brasil, só posso dizer que resultou de um lawfare, uma guerra jurídica, urdida por interesses alienígenas e fortes setores do empresariado nacional, explorando o descontentamento das classes média, ao fazer aflorar a podridão do Estado profundo, a fim de atender a interesses corporativos e do capital financeiro internacional.

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