Se a grande mídia serve para ser acreditada, a Coreia do Norte é uma terra repleta de campos prisionais, zumbis e unicórnios.
Recentemente o jornal sul-coreano Chosun Ilbo noticiou que uma fonte anônima havia informado que Kim Yong Chol, o enviado norte-coreano aos EUA, havia sido mandado para um campo de trabalho devido ao fracasso das negociações com o governo Trump em Hanói. Essas alegações foram relatadas de forma onipresente na mídia americana, muitas vezes sem a menção à fonte anônima original. Alegações de que outros quatro oficiais de alto escalão foram demitidos, executados ou enviados para campos de prisioneiros também circularam amplamente. Agora, a mídia está sendo forçada a voltar atrás depois que Kim Yong Chol foi flagrado com o presidente Kim Jong-un durante uma apresentação artística.
Quando perguntado sobre a história, o secretário de Estado, Mike Pompeo, disse: “Nós vimos a reportagem… estamos fazendo o nosso melhor para checá-la”.
Embora os outros funcionários que se diz terem desaparecido de várias maneiras ainda não tenham sido identificados, há uma abundância de razões para duvidar de seus destinos relatados.
The Walking Living
O Departamento de Estado bem que poderia se preocupar menos com a produção nuclear da Coreia do Norte e mais com seu aparente programa avançado de necromancia, uma vez que Kim Hyok-chol está longe de ser a única pessoa executada no país a continuar andando por aí e conduzindo seus negócios normalmente.
Em 2016, um desertor norte-coreano afirmou que o oficial militar Ri Yong-gil havia sido executado, e a mídia regurgitou tal alegação de forma acrítica, assim como políticos sul-coreanos e militares. Talvez tenha sido só quando ele passou para o além que aprendeu as habilidades necessárias que o qualificaram para uma promoção em 2018, quando assumiu o cargo de chefe do Estado-Maior da Coreia do Norte.
Em 2013, Hyon Song-wol, uma famosa cantora norte-coreana, teria sido executada por autoridades em uma “chuva de tiros de metralhadoras, enquanto os membros de sua orquestra observavam”. Parece, todavia, que as balas não causaram nenhum dano duradouro a seus pulmões, já que ela ainda está cantando com sua banda pop só de garotas.
Em 2010, a mídia sul-coreana informou que um treinador de futebol havia sido executado na Coreia do Norte. Então, a repórter Jean H. Lee provavelmente ficou chocada quando ela se “encontrou com ele no aeroporto de Pyongyang”.
Se a mídia deve ser acreditada, zumbis não são as únicas criaturas míticas endêmicas da Coreia do Norte. Em 2014, foi amplamente divulgado que os serviços de notícias estatais da RPDC anunciaram a descoberta de uma caverna pertencente a um unicórnio. Porém, isso não passava de um erro de tradução, que não foi corrigido antes de o ex-integrante da Fox News, Bill O’Reilly, dizer à sua massiva audiência que “o governo norte-coreano anunciou ter encontrado um unicórnio”.
Um artigo, que foi atualizado após o erro ter sido cometido, regurgita uma série de outras alegações estranhas, argumentando que os coreanos acreditam que Kim Jong-il, o falecido pai do atual presidente, “inventou o hambúrguer, escreveu 1.500 livros durante a faculdade e acertou 11 buracos com uma única tacada na primeira vez que jogou golfe, segundo a revista Time”.
Essas alegações são fáceis para os americanos acreditarem, pois eles foram condicionados a demonizar a Coreia do Norte desde a década de 1950, quando os EUA mataram 1/5 da população do país e bombardearam 85% dos prédios de lá.
Uma nação vista em caricatura
A Coreia do Norte tem seus problemas, assim como todos os outros países; mas afirmações desmedidas sobre lá proliferam no Ocidente.
Por exemplo, o tio de Kim Jong-un foi executado. Porém, ele não foi “despido e jogado em uma jaula para ser comido vivo por 120 cães famintos”. Também é falso, como vários relatos têm afirmado, que autoridades norte-coreanas tenham sido executadas por “má postura”.
Da mesma forma, relatos sobre a proibição do sarcasmo são tão falsos quanto relatos de que todos os homens norte-coreanos são forçados a fazer o mesmo corte de cabelo que o presidente Kim. A última afirmação foi desmascarada por um par de comediantes do YouTube que realmente viajaram para a Coreia do Norte para cortar o cabelo e fazer um documentário cômico, expondo a natureza estenográfica das reportagens da grande mídia sobre o país.
O relato do ano passado, que dizia que a Coreia do Norte havia deixado um míssil balístico de alcance intermediário cair acidentalmente em uma de suas próprias cidades, não é corroborado por imagens de satélite.
A razão pela qual as notícias falsas proliferam do jeito que acontece com a Coreia do Norte não é apenas por conta do orientalismo ocidental. É difícil verificar informações do país, e aqueles com conhecimento sobre ele em primeira mão – por exemplo, o homem que “desertou” no ano passado, mas o fez por ser um fugitivo de acusações de homicídio – normalmente têm queixas contra o governo, e não faltam incentivos para mentir.
Em 2017, o governo sul-coreano aumentou para US$ 860 mil sua recompensa para desertores norte-coreanos que contem os segredos de Estado da RPDC. Enquanto isso, os desertores são pagos com um generoso por hora para compartilharem com a mídia e os defensores dos direitos humanos suas histórias de horror.
“Pagamentos em dinheiro em troca de entrevistas com refugiados norte-coreanos têm sido uma prática-padrão no campo jornalístico há anos”, escreve Jiyoung Song, que vem entrevistando os norte-coreanos como pesquisador de direitos humanos desde 1999. Ele continua:
“Um funcionário do governo sul-coreano do Ministério da Unificação me disse que os pagamentos podem variar muito, de US$ 50 a US$ 500 por hora, dependendo da qualidade da informação.
Mas essa prática levanta uma dificuldade: como o pagamento muda a relação entre um pesquisador e um entrevistado e que efeito ele terá na história em si?
Essa prática também impulsiona a demanda por ‘histórias vendáveis’: quanto mais exclusiva, chocante ou emocional, maior será a taxa a ser paga.”
Em outras palavras, há toda uma indústria que incentiva a criação de notícias falsas sobre a Coreia do Norte, com recompensas em dinheiro que fariam com que até mesmo um jornalista que vive nos EUA começasse a salivar como uma matilha de 120 cães famintos. O problema é que não há incentivo para que os jornalistas acertem – na verdade, acontece exatamente o oposto, pois essas histórias explosivas geram receitas de publicidade desproporcionais por meio de cliques.
Porém, isso é tudo que muitas dessas matérias noticiosas são: contos de fadas de zumbis e unicórnios.
[rev_slider alias=”livros”][/rev_slider]