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A raposa cuidando do galinheiro: a privatização da saúde em Pernambuco

Modelo de Parcerias Público-Privadas (PPPs) e Organizações Sociais na saúde espalha lógica privatista em todo o País. Em Pernambuco, no entanto, 30% das despesas em saúde se dão sob esse modelo. Por Jones Manoel | Revista Opera
(Foto: Miva Filho / SES-PE)

Começo o nosso texto com uma pergunta: qual candidato, seja ao governo do Estado, à Presidência, à Câmara ou ao Senado, que diz que não defende a saúde? Pense comigo como é pouco provável, ou até impossível, que uma declaração assim tão desatinada aconteça. 

Mas, se todos falam de saúde, de qual saúde estamos falando? 

E para quem essas ações são majoritariamente destinadas?  

Quem se beneficia com elas? 

É a partir dessas reflexões que tentamos construir esse breve texto.

Diria que é  impossível que qualquer ser humano não acesse o serviço de saúde ou, pelo menos, precise de alguma política pública de saúde ao longo de sua vida. Perceba: essa infraestrutura está relacionada desde ao adoecimento mais simples, uma dor de garganta, por exemplo, até a necessidade de fiscalização de alimentos e medicamentos de forma mais ampliada. A partir disso, constatamos como a questão da saúde é fundamental para nossas vidas. É um princípio lógico que, enquanto elemento fundamental para vida, a saúde não deveria ser tratada enquanto mercadoria.

 Mas quantos trabalhadoras e trabalhadores não esbarram em barreiras de acesso a serviços de saúde por não poder pagar algum serviço particular? 

Ou, ainda, quanto de nossos salários é transferido para planos de saúde privados ou utilizado em gastos privados com a saúde? 

Destas duas perguntas decorrem duas constatações importantes para o nosso programa comunista: 1) é necessário fortalecer o nosso Sistema Único de Saúde (SUS), garantindo a construção concreta de seus princípios na prática, que são acesso universal, integral e respeitando as diferenças, necessidades e particularidades dos indivíduos e coletividades; 2) Além das garantias destes princípios, é necessário assegurar que este sistema seja 100% público, estatal e de qualidade. 

Chegamos agora ao ponto central do nosso texto: a privatização da saúde. Quando falamos de privatização, geralmente pensamos em algum aparelho estatal que passou para as mãos privadas. Um exemplo disso é o setor de telecomunicações, que era gerido por uma empresa pública, a Telebrás, e foi privatizado na década de 1990. Atualmente, o setor está dividido entre alguns grupos capitalistas, materializados em multinacionais como a Vivo, Claro, Tim…. Isto seria o que podemos nomear de privatização “clássica”. 

No entanto, também neste período, uma outra forma de privatização foi ganhando corpo, tendo atualmente forte atuação na saúde pública. A grosso modo, é um modelo que privilegia o repasse de recurso público para entidades privadas gerirem e executarem determinado serviço de saúde, mesmo que ele continue tendo seu acesso público e gratuito garantido. São exemplos dessas entidades as conhecidas Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), vinculadas ao denominado “terceiro setor” e atreladas a modelos de Parcerias Público-Privadas (PPP).

As OS surgem no processo de Contrarreforma do Estado Brasileiro (1994/1995) por meio do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, no governo Fernando Henrique Cardoso. Na letra da lei, as OS são definidas como “pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas à saúde, à assistência social, ao ensino, à pesquisa e à cultura” (Lei Federal 9.637/1998). Segundo a cartilha neoliberal, tais entidades teriam maior autonomia, possibilidade de contratações mais flexíveis, adoção de regras próprias para compras e contratos, além de maior independência na execução orçamentária. 

Mas qual o real problema dessas entidades atuarem nos serviços de saúde, visto que, segundo os liberais, têm maior autonomia, ao mesmo tempo que os serviços oferecidos continuam públicos e gratuitos? 

O título do nosso texto é um forte indicativo da problemática. Já imaginou deixar a raposa tomar conta do galinheiro? Esta é a metáfora perfeita para tratar da relação entre Estado e OS. É condição inerente ao modo de produção capitalista que empresas privadas busquem o lucro. Ora, não seria diferente com as OS! Sua definição de “sem fins lucrativos” fica restrita somente à letra da lei. Na realidade, estas entidades se aproveitam, e muito, da transferência do fundo público para a iniciativa privada. 

Essa transferência pode acontecer, por exemplo, na forma de remuneração do alto escalão de gestores da OS, uma vez que a remuneração de dirigentes é definida pelo próprio conselho administrativo da unidade. A transparência destes dados é quase inexistente, o que dá mais margem para maior apropriação do fundo público. Mas os próprios contratos de gestão firmados entre as secretarias de saúde e a OS abrem espaços para uma série de outras vantagens lucrativas: a possibilidade de aplicação financeira do dinheiro repassado pela secretaria de saúde; a possibilidade de habilitação da chamada “dupla porta” nas unidades, ou seja, parte dos serviços e leitos de um hospital, por exemplo, podem ser destinados ao atendimento privado mediante pagamento ou uso de planos de saúde, por não existir exclusividade de prestação de serviços ao SUS em lei; a isenção ou benefícios tributários, pois muitas dessas OS são consideradas também entidades filantrópicas¹; a utilização de termos aditivos ao contrato inicial, aumentando o repasse feito pelos estados ou municípios para a iniciativa privada.

 Corroborando com a tese de que estas entidades possuem realmente fins muito lucrativos está o ranqueamento de organizações sociais. As OS aparecem  entre as empresas mais lucrativas quando considerados diversos setores da economia. Afunilando a pesquisa para o setor de serviços médicos, algumas OS ocupam as primeiras posições do ranking (MORAIS et al., 2018). Some-se a isto o crescente processo de precarização do trabalho favorecido pela flexibilização na contratação de funcionários pelas OS. Instabilidade, insegurança, menores salários, jornadas extensas e dificuldade de organização coletiva estão na rotina desses trabalhadores e trabalhadoras. As implicações à saúde dos trabalhadores decorrentes desse intenso processo de precarização do trabalho são inúmeras, mas não focaremos nestas no texto, apenas podemos citar de maneira a exemplificar os transtornos mentais relacionados ao trabalho, o assédio moral e sexual, os distúrbios do sono, os acidentes de trabalho, entre outros.

Cabe ressaltar ainda que existem Ações Diretas de Inconstitucionalidade sobre a lei das OS, uma vez que a Lei Orgânica da Saúde (8.080/1990) trata apenas da complementaridade do sistema privado aos serviços públicos ofertados pelo SUS e não do repasse da gestão de serviços públicos para iniciativa privada. O combate aos “novos modelos de gestão”, evidenciados nas OS, é uma das bandeiras de luta da Frente Contra a Privatização da Saúde, da qual nós, do PCB, fazemos parte.  

E como essa lógica chega ao nosso estado de Pernambuco? A gestão PSB privatiza a Saúde Pública. 

É no governo de Eduardo Campos (PSB), precisamente em 2009, que as OS se agigantam em nosso estado. É bem verdade que a qualificação destas entidades em Pernambuco foi feita através do Decreto Estadual 11.743/2001, mas apenas em 2009 se inicia o repasse da gestão e consequentemente dos recursos públicos para estas entidades (PACHECO et al., 2016). Fundações de direito privado, como a Fundação de Gestão Hospitalar Martiniano Fernandes – IMIP, a Fundação Altino Ventura e o Hospital do Tricentenário, recebiam no ano de 2008 o montante de aproximadamente 140 milhões de reais dos recursos estaduais disponíveis para aplicação na saúde pública. De acordo com portal da transparência alimentado pelo próprio estado de Pernambuco, no ano de 2021, foram repassados mais de 2 bilhões de reais para Organizações Sociais em Saúde do estado. É importante notar que esse montante representou mais de 30% de todas as despesas do Governo do Estado de Pernambuco com a saúde.

 Essas organizações administram, contratam e executam serviços de saúde em grandes Hospitais pernambucanos, caso dos hospitais Miguel Arraes, Dom Helder Câmara, Mestre Vitalino, entre outros, em Unidades Pernambucanas de Atendimento Especializado (UPAE) e em Unidades de Pronto Atendimento (UPA). Ainda de acordo com o portal da transparência, em 2021, possuíam gestão por OS em Pernambuco 13 hospitais, 10 UPAE e 15 UPA, totalizando 38 unidades espalhadas pelo estado de Pernambuco. Em comparação com dados de 2014, o crescimento de unidades gerenciadas por OS é de 27%. 

A gestão estava distribuída entre 11 OS, com destaque para o Hospital Tricentenário, o Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP) e a Fundação Professor Martiniano Fernandes (IMIP Hospitalar), que compõem respectivamente o ranking de maiores repasses recebidos, totalizando, no ano de 2021, cerca de 1,3 bilhões de reais. 

  Apesar de pregar maior eficiência e flexibilidade, não são raros os problemas decorrentes da transferência de serviços e pessoal para a gerência das Organizações Sociais. Vejamos: 

A situação é tão grave que os órgãos responsáveis pela fiscalização dos recursos aplicados, como a Secretaria Estadual de Saúde (SES) e o Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE), têm muita dificuldade em garantir a legitimidade desses gastos. A Lei Estadual 15.210/2013, que disciplina sobre o Contrato de Gestão entre as Organizações Sociais de Saúde e o poder público, dispõe sobre diversos instrumentos jurídico-contábeis de responsabilidade dessas entidades, mas que na prática não são cobrados. O próprio Tribunal de Contas levou quase dez anos para exigir que as Contas Anuais fossem também encaminhadas ao Tribunal, por meio da Resolução TC 154/2021, quando a lei supracitada já o previa como obrigação desde o início de sua vigência. Até hoje, não há comprovação dos benefícios reais da privatização da gestão da saúde no estado, ou em qualquer outra unidade federativa. Por outro lado, existem documentos de caráter nacional, como o dossiê “Contra fatos não há argumentos que sustentem as Organizações Sociais no Brasil” publicado pela Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, que expõem os ataques à população trabalhadora usuária do SUS causados por esse “modelo de gestão”. 

Materializando ainda mais a metáfora da raposa tomar conta do galinheiro, tivemos, em Pernambuco, Antonio Carlos Figueira, atual Diretor Acadêmico da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), filho do fundador do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), que exerceu cargo no Governo Estadual de Pernambuco por dez anos, inclusive como Secretário de Saúde  por quase 3 anos, ainda no governo do finado Eduardo Campos. Os recursos geridos por sua família no ano de 2020, por meio de duas OS diferentes, somaram quase 1 bilhão de reais, quando ele ainda exercia cargo junto ao Governo do Estado.

Precisamos acabar com esse modelo! Nossa candidatura vem pautando um sério debate classista sobre diversas questões que atingem a população pernambucana. Combater a privatização da saúde é parte importante do programa de governo comunista, reafirmando que “saúde não é mercadoria!”

Não podemos permitir o desmonte do SUS e o crescimento de grandes monopólios privados da Saúde, modelo que, como vimos, foi largamente adotado pelo PSB em Pernambuco e não foi criticado pelas candidaturas ao governo do Estado que aparecem à frente nas pesquisas. Pelo contrário, é, sem dúvidas, o modelo a ser adotado por Marilia, Danilo, Raquel, Miguel, pouco interessados em representar o interesse popular. 

Seguiremos enfrentando, como já enfrentamos nas ruas, os ataques ao Sistema Único de Saúde, a precarização do trabalho e a privatização da saúde. Por um SUS, 100% Público, Estatal e de Qualidade! Com o SUS, para além do SUS! 

Notas:
[1]  Um desses benefícios é a isenção, por parte do Estado, da necessidade de contribuições previdenciárias. O combo filantropia + OS se espalhou na saúde pública por oferecer essa série de vantagens às ditas “entidades sem fins lucrativos”. 
REFERÊNCIAS: 
MORAIS, Heloiza Maria Mendonça de et al. Organizações Sociais da Saúde: uma expressão fenomênica da privatização da saúde no brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 1, p. 1-13, 2018.
PACHECO, Helder Freire et al. Organizações sociais como modelo de gestão da assistência à saúde em Pernambuco, Brasil: a percepção de gestores. Interface, Botucatu, v. 20, n. 58, p. 585-595, 2016.

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