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Conflitos no campo atingem maior número já registrado no Brasil desde 1985

Em 2023, sob governo Lula, houve recorde de casos de violência no campo: despejos judiciais no meio rural quase triplicaram e as violências de agentes dos governos estaduais mais que dobraram
Gabriel Gama
Integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) usa máscara durante manifestação na Esplanada dos Ministérios, em frente ao Congresso Nacional. (Foto: Marcello Casal JR/ABr)
O Brasil teve 2.203 conflitos no campo em 2023, o maior número já registrado desde 1985, quando começaram os levantamentos da Comissão Pastoral da Terra (CPT). No ano passado, os despejos judiciais no meio rural quase triplicaram e as violências causadas por agentes dos governos estaduais mais que dobraram, embora empresários e grileiros continuem liderando as agressões.

Os dados são do relatório “Conflitos no Campo 2023”, da CPT, divulgado nesta segunda-feira. A publicação destaca o número recorde de conflitos no campo no Brasil, que envolveram 950 mil pessoas no ano passado. Até então, a maior quantidade de ocorrências havia sido registrada em 2020, com 2.130 casos. A região Norte lidera com 810 conflitos, seguida pela Nordeste (665), Centro-Oeste (353), Sudeste (207) e Sul (168).

Por que isso importa?

  • O levantamento de conflitos no campo feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) é uma das únicas bases de dados desse tipo no país. Ele serve como indicador para violência no ambiente rural, realidade que afeta milhares de famílias no Brasil
Infográfico mostra número de conflitos no campo ano a ano
(Imagem: Bruno Fonseca/Agência Pública)

Do total de ocorrências, 78,2%, ou 1.724 conflitos, foram relacionados a disputas pela terra; 11,4% foram motivados pela água; e 10,4% tiveram relação com o trabalho. Com mais de 187 mil famílias atingidas, a quantidade de conflitos pela terra também é a maior da série histórica.

O estado que mais teve conflitos agrários foi a Bahia, com 202 casos. O Pará fica em segundo lugar, com 183 registros. Na terceira posição, vem o Maranhão, com 171 conflitos. Na sequência, Rondônia registrou 162 violências pela terra e Goiás ocupa o quinto lugar da lista, com 140.

Mapa mostra conflitos no campo por região no Brasil
(Imagem: Bruno Fonseca/Agência Pública)

“Desde 2017, estamos vivenciando um período de acirramento da violência no campo, que se intensificou durante o governo Bolsonaro e se manteve no primeiro ano do governo Lula. Esse período é marcado pela violência contra as comunidades na tentativa de expulsá-las do território, visando barrar a luta pela conquista de novas áreas”, avalia Andréia Silvério, coordenadora nacional da CPT.

Apesar do recorde de conflitos, as ações de resistência também se intensificaram. Foram concretizadas 119 novas ocupações e retomadas de territórios, um crescimento de 60,8% em relação a 2022. Um aumento ainda maior foi verificado na quantidade de novos acampamentos de posseiros e sem-terra, com 17, ou 240% a mais do que no período anterior.

Violências causadas por governos estaduais mais que dobram, mas fazendeiros ainda são maiores agressores

A quantidade de violências perpetradas por agentes dos governos estaduais mais que dobrou em um ano, passando de 63 em 2022 para 132 em 2023. A maior parte envolveu ações policiais de intimidação armada e ameaças variadas, com 103 episódios.

Os estados de Goiás e Bahia estiveram à frente nesse recorte, seguidos por Mato Grosso do Sul, Tocantins, Maranhão e Rondônia. A CPT denuncia que esses governos têm intensificado a repressão policial contra acampamentos, assentamentos, comunidades quilombolas e terras indígenas.

No mesmo período, as violências causadas pelo governo federal caíram 27%, com 175 ocorrências em 2023, primeiro ano da gestão Lula. Elas chegaram a 240 no ano anterior, último do mandato de Bolsonaro.

Apesar dessa queda e da ampliação do diálogo do governo atual com os movimentos sociais, por meio da reestruturação de ministérios como o do Desenvolvimento Agrário, Direitos Humanos e Justiça e a criação do Ministério dos Povos Indígenas, a CPT avalia que “isto não se refletiu em avanços na conquista de direitos pelas populações camponesas e tradicionais, como a reforma agrária e a demarcação das terras indígenas”.

Ainda assim, os maiores causadores de violência no campo são fazendeiros, empresários e grileiros. Juntos, eles respondem por 59,9% de todos os conflitos por terras em 2023. Foram 495 causados por fazendeiros, 313 por empresários e 144 por grileiros.

Despejo judicial no campo quase triplica em um ano

As ocorrências de despejo judicial no campo dispararam 194% entre 2022 e 2023, passando de 17 para 50 casos concretizados, que desalojaram mais de 5 mil famílias. As ameaças de despejo tiveram aumento de 32,6%, com 183 registros em 2023, 45 a mais do que no período anterior, e deixaram 21 mil famílias sob a expectativa de não ter um local para viver.

De acordo com o relatório, a Bahia é líder isolada em número de famílias efetivamente despejadas, com 2,9 mil – mais da metade do total do país.

Segundo a coordenadora da CPT, o grande número de despejos nesse estado é decorrente da ofensiva contra os sem-terra. “É possível apontar também a recorrente violência contra comunidades tradicionais e povos indígenas, sendo a grilagem uma prática instituída através de esquemas que envolvem os órgãos de terras, cartórios e até mesmo o Judiciário, já há muitos anos denunciada”, afirma Silvério.

“Na Bahia se identificou uma forte articulação do movimento invasão zero, constituído majoritariamente por fazendeiros, grileiros e jagunços, que visa retaliar violentamente as novas ocupações e retomadas de territórios indígenas, a exemplo do que ocorreu na região sul do estado já em 2024, culminando com assassinato da liderança indígena Nega Pataxó”, complementa.

Quando o recorte é a quantidade de famílias ameaçadas de despejo, Rondônia assume o primeiro lugar, com 7,1 mil famílias, seguido pela Bahia, que tem 3,4 mil famílias nessa condição. Somados, esses estados concentram 48% da população ameaçada por despejos no campo.

Infográfico mostra número de despejos judiciais no campo em 2022 e 2023
(Imagem: Bruno Fonseca/Agência Pública)

A CPT atribui esse crescimento ao fim da suspensão de despejos coletivos, instaurado pela Arguição de Descumprimento de Poder Fundamental (ADPF) 828, que esteve em vigor entre 2020 e 2022. A medida tinha o objetivo de evitar impactos maiores da pandemia da covid-19 entre as populações vulneráveis.

Assassinatos de mulheres aumentam

Trinta e um assassinatos foram registrados em conflitos no campo no Brasil em 2023, o que corresponde a uma redução de 34% em relação ao ano anterior.

A situação, no entanto, não é uniforme. Na região da tríplice fronteira entre Amazonas, Acre e Rondônia, conhecida como Amacro, houve oito assassinatos, o mesmo número observado em 2022, sendo cinco causados por grileiros.

“Prometida como ‘modelo’ de desenvolvimento com foco na sociobiodiversidade, [a região de Amacro] tornou-se epicentro de grilagem para exploração madeireira e criação de gado, com altas taxas de desmatamento, queimadas e conflitos”, afirma o relatório.

Quando se analisam os assassinatos de mulheres no campo, a tendência é de crescimento. Sete mulheres foram executadas em 2023, 16,7% a mais do que no período anterior. Um dos casos que ganhou maior notoriedade foi o de Mãe Bernadete, líder quilombola morta a tiros em agosto passado, na Bahia.

Indígenas são os mais afetados por conflitos envolvendo projetos de crédito de carbono 

Entre os conflitos pela terra, os indígenas continuam sendo a categoria que mais sofreu violências, com 470 ocorrências, ou 29,6% do total registrado em 2023. Também são o grupo mais assassinado no meio rural, com 45% do montante de vítimas.

Os conflitos que envolvem projetos de créditos de carbono, destinados a compensar as emissões de empresas poluidoras, atingiram 23 localidades diferentes naquele ano, implicando uma área de 9,7 milhões de hectares do território nacional. Pará e Rondônia concentram 94% desse total.

Grande parte dessas áreas, ou 88,4%, faz parte de terras indígenas. Em segundo lugar, aparecem as unidades de conservação, com 7,6%, e por fim os assentamentos (3,4%).

Agência Pública Fundada em 2011 por repórteres mulheres, a Pública é a primeira agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Brasil. Todas as nossas reportagens são feitas com base na rigorosa apuração dos fatos e têm como princípio a defesa intransigente dos direitos humanos.

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