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Jodi Dean: “a Palestina é o cerne da luta contra o imperialismo em todo o mundo”

Em entrevista à Revista Opera, Jodi Dean, perseguida nos EUA por suas posições pró-Palestina, fala sobre comunicação, imperialismo e a guerra contra Gaza
Pedro Marin
A professora Jodi Dean na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). (Foto: Pedro Marin / Revista Opera)

9 de abril é uma data especial para a professora norte-americana de ciência política Jodi Dean. Primeiro, por ser seu aniversário. Segundo, por ser “meio que um aniversário legal”, como diz ela; isto é, por compartilhar o natalício com figuras como a guerrilheira palestina Leila Khaled (nascida 22 anos antes dela, em 1944), com o escritor e co-fundador da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), Ghassan Kanafani (nascido em 1936), e com o cantor, ator e ativista afro-americano Paul Robeson, nascido em 1898. 

Em 2024, quando completou 62 anos, foi também nessa data que a editora Verso publicou em seu blog o ensaio “A Palestina fala por todo nós”, no qual Dean faz um balanço da guerra total de Israel contra Gaza; da reação, por parte dos estudantes universitários dos EUA, contra a guerra; e de algumas críticas advindas de intelectuais de esquerda – nominalmente, de Judith Butler, em um artigo para a London Review of Books –, que, na visão de Dean, “ecoam as condenações que os estados imperialistas tornam condicionante para que se fale sobre a Palestina”, ou seja, a condenação ao Hamas.

A espinha dorsal do ensaio de Dean publicado naquele 9 de abril é a imagem dos guerrilheiros do Hamas aterrisando de parapentes em território israelense no fatídico 7 de outubro de 2023. É essa imagem – de “um povo oprimido tomando os céus em fuga e voando livremente no ar” – que Dean mobiliza como metáfora para fazer um longo apanhado histórico da luta palestina. Ela relembra que em 1987, durante a Primeira Intifada, dois membros da FPLP haviam voado com planadores e aterrissado em Israel; que em 2018, durante a Grande Marcha do Retorno, foi a vez dos moradores de Gaza usarem pipas e balões para causar pequenos incêndios em território israelense; que sete anos antes, em 2011, crianças palestinas quebraram o recorde mundial de mais pipas no céu ao mesmo tempo em uma praia de Gaza; que em 1998 foi construído o Aeroporto Internacional Yasser Arafat – algo “profundamente interconectado com o sonho de um Estado palestino” –, para ser destruído três anos depois por tratores israelenses. Dean conclui, no primeiro trecho do ensaio, que “os parapentes que chegaram em Israel no dia 7 de outubro continuam a associação revolucionária entre libertação e voo”.

Comemorado o aniversário, em poucos dias as palavras da professora sobre os céus palestinos arrastariam-na para um inferno pessoal. Denunciada nas redes sociais por grupos sionistas como uma antissemita, em função de seu texto, ela foi suspensa de dar aulas por ter escrito algo “repugnante”, segundo o presidente da Universidade Hobart and William Smith, onde lecionava, e feita alvo de uma investigação interna da universidade, com o fim de avaliar se há alunos que “se sentem inseguros” com suas aulas.

Formada em História pela Universidade de Princeton e Ph.D em Ciência Política pela Universidade de Columbia, autora de treze livros – dentre eles “Camarada” (2021) e “Multidões e Partido” (2022), ambos lançados em português pela Boitempo –, membro do Party for Socialism and Liberation (PSL – Partido do Socialismo e da Libertação), Dean esteve no Brasil para participar do do festival “Poder e prosperidade em um mundo multipolar”, realizado pela Internacional Progressista na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), ocasião em que concedeu a seguinte entrevista à Revista Opera, na qual trata de sua visão acerca do “capitalismo comunicativo”, da cada vez mais conflituosa conjuntura internacional,  das diferenças e continuidades entre Democratas e Republicanos nos EUA e, claro, sobre a guerra israelense contra Gaza.

Você trabalha recorrentemente com o conceito de “capitalismo comunicativo”. O que isso significa?

Uso o termo capitalismo comunicativo essencialmente para designar a economicização da comunicação, principalmente nas redes digitais. Portanto, a ideia é que não se trata apenas do fato de nos comunicarmos, mas sim que nossa comunicação é capturada por essas redes digitais e se torna uma oportunidade para a acumulação de capital por parte das gigantes da tecnologia. Esse é um ponto, mas o conceito também significa que a comunicação acaba afetando todos os aspectos da economia. Assim, por exemplo, na agricultura de alta tecnologia, são utilizadas redes de comunicação, redes de informação e redes digitais. E por que isso é importante? Bem, comecei a pensar em tudo isso nos anos 90, quando a mensagem era que as comunicações em rede iriam instalar uma democracia totalmente nova. Seria o poder do povo em toda parte. Uma das expressões era “assembleias para milhões”.

Agora todo mundo sabe que isso não era verdade, mas esse tipo de ideal, de que se todos pudessem se comunicar haveria uma explosão de democracia, era uma ideia muito poderosa. Portanto, eu queria tentar mostrar que, uma vez que você submete a comunicação à lógica econômica, na verdade temos comunicação sem comunicabilidade. Então penso nisso como uma mudança do valor de uso da comunicação para seu valor de troca, e podemos pensar em um exemplo como o Twitter: as pessoas buscam retweets, e os retweets podem significar que as pessoas o odeiam ou que estão zombando de você ou que concordam, mas nunca se sabe – simplesmente submetemos a comunicação à contagem. Isso acontece até mesmo no ensino, como no ensino universitário, em que se pode perguntar a um professor algo como “como foi sua aula?” e eles dirão: “ah, foi ótimo, sabe, 15 alunos falaram”. Bem, isso não nos diz muita coisa.

Portanto, o significado do que as pessoas dizem é eclipsado pela troca, pelo compartilhamento ou pela proliferação do que as pessoas dizem, de modo que há uma espécie de primeiro nível de uma dimensão econômica da comunicação, que é a acumulação de capital daqueles que controlam as redes, o armazenamento e todos os dados, e isso traz esse efeito sobre nós, em que o significado se perde. Outra maneira que gosto de dizer isso é que a diferença entre a verdade e a mentira não importa mais; as mentiras circulam ainda mais rapidamente do que a verdade. E isso é antes de Trump, certo? Esse tipo de crise da verdade, mas acho que faz parte das condições das mídias pessoais intensamente conectadas em rede.

Você mencionou essa ideia de democratização a partir da internet. Marshall McLuhan por exemplo tratou disso em termos de uma “aldeia global”, mas o que vimos foi o contrário: o mundo se tribalizou. Mas é interessante, porque as pessoas nem sempre se dão conta de que essa internet do qual ele tratou, essa internet da “democratização”, era muito diferente da atual: era uma internet pré-algoritmo e pré-mercantilização, ou não tanto mercantilizada. Que impactos esses dois elementos – o algoritmo e a mercantilização – trazem para a política e para a luta social?

Eu penso na mudança assim como você, em como ela mudou e como se tornou uma Internet comercial. Acho que foi a Lei de Telecomunicações dos Estados Unidos, de 1997, que basicamente fez com que a Internet deixasse de ser uma espécie de utilidade pública e de projeto do governo – sendo que “governo” significava apenas financiamento público – e passasse a estar disponível para todas as atividades comerciais. Portanto, a lei submetia tudo a uma lógica de mercado. A lógica não é “podemos ter discussões melhores?”, o objetivo é “como podemos obter mais audiência? Como podemos vender? Como podemos ter coisas que chamam a atenção?”. E isso significa que não há muita tolerância para nuance ou argumentos complexos, mas gatos! [risos] Essa piada circulava muito e acho que ela ainda funciona: “a Internet foi criada para a circulação de fotos de gatos, vídeos de gatos, memes de gatos…” [risos]

Essa piada é um bom presságio de que, na verdade, a internet não serve à compreensão ou ao raciocínio com nuances, nem mesmo favorece o entendimento dos pontos de vista de outras pessoas. Trata-se muito mais de tomar uma posição e de divulgar seu próprio ponto de vista o mais rápido possível. Portanto, para a política… Isso sujeita a política aos piores tipos de extremismo. 

Quero dizer, não quero ser contra o extremismo, às vezes o extremismo é importante, útil e correto. Mas se você quiser explicar algo para as pessoas como “o que está acontecendo hoje não é o começo e o fim de tudo, isso faz parte de um processo mais longo”, é muito mais difícil, certo? As pessoas não têm muita memória. 

E também todos os tipos de coisas são niveladas, de modo que, digamos, um genocídio em Gaza circula no mesmo espaço que pessoas preocupadas com futebol, resultados de futebol americano ou música pop. Tudo isso é nivelado. Portanto, isso não é bom. Realmente não é bom para a política.

Você mencionou essa questão da mentira, sendo algo anterior a Trump. Em que medida podemos associar esse novo ambiente tecnológico com o ressurgimento do fascismo? Porque há o argumento – muito popular no Brasil nestes dias – de que o problema da internet é que ela não é regulamentada.

Acho que esse é um argumento liberal, certo? Não se trata de regulamentar a Internet. Trata-se de permitir que ela seja um serviço de utilidade pública totalmente sob controle público. Enquanto for uma ferramenta capitalista, enquanto forem corporações privadas de qualquer tipo… Será que realmente queremos que o Facebook ou o Google determinem o que dizemos? Afinal, eles já o fazem. Portanto, acho que a linguagem da regulamentação deve ser substituída pela linguagem da propriedade do povo, o controle popular, pela eliminação de qualquer tipo de propriedade privada de mídia.

Entre os marxistas e os socialistas há muita discussão em relação ao abandono ou não do velho jornal leninista e a adaptação ao algoritmo e às mídias sociais. Qual é sua posição sobre isso?

Acho que essa é uma pergunta muito interessante e realmente difícil. Talvez eu tenha mudado de opinião nos últimos 20 anos. No início, meu argumento era que não se pode competir com a gigantesca mídia capitalista com a mídia independente, e acho que isso continua sendo verdade. Assim, sempre que dizemos: “Ah, olha, esse importante argumento comunista teve 35 retweets”. Bom, sim, mas esse comentário de um rapper aleatório teve 500 milhões. Ou seja, se pensarmos nisso nos termos que o capitalismo nos oferece, é um fracasso total e completo.

Foi isso que pensei durante muito tempo e acho que é verdade até certo ponto. Mas se voltarmos ao que você disse, essencialmente sobre tribalismo, como se tivéssemos vários grupos, então dizemos: “Bem, podemos conectá-los e expandir nossa tribo, expandir nosso grupo de baixo para cima, dando às pessoas que conhecemos outras oportunidades de aprender coisas e também de nos vermos”. Portanto, acho que é importante quando os movimentos colocam seus materiais on-line para que eles se vejam circulando e possam se fortalecer dessa forma. Mas não se pode pensar nisso em comparação com a mídia capitalista. Não sei se estou dizendo isso de forma muito clara.

Sim, entendo. Mas um dos aspectos da discussão é quanto devemos nos adaptar ao algoritmo, não? Porque podemos também buscar estratégias para ter os 500 milhões de retweets, mas isso tem um custo, não?

Sim, e é por isso que acho que nossa meta não pode ser competir com o algoritmo. Podem ser coisas menores. Por exemplo, se quisermos lançar algo, podemos fazê-lo em um determinado horário do dia em vez de em outro, porque é mais provável que alcancemos as pessoas; isso parece razoável. Mas não dizer “ah, se colocarmos um monte de pessoas nuas nessa foto, conseguiremos muito mais” ou “se dissermos algo absolutamente maluco”…

O outro tipo de questão interessante é que, mesmo quando estamos tentando atingir, digamos, um grupo específico – eu diria nosso próprio público, mas pessoas do nosso próprio público e adjacentes –, pessoas sobre as quais não temos a menor ideia ou pessoas com as quais podemos realmente discordar também leem. E então eles tiram nosso material do contexto e sabem o que fazemos, e assim toda a parte de vigilância entra em cena, e também somos expostos e atacados de alguma forma. Portanto, isso não é definitivo: de um jeito ou de outro, é apenas uma das coisas com as quais temos de lidar. 

E voltando ao jornal leninista. Não acho que o “TikTok leninista” seja uma loucura. Acho que, se é onde as pessoas estão, isso pode ser uma espécie de porta de entrada para mais discussões, discussões mais avançadas. Mas, novamente, não podemos pensar que estamos competindo no mesmo nível das megacorporações, mas podemos encontrar caminhos. Talvez com iscas e chamarizes.

O que você pensa? Concorda ou estou sendo generosa demais com o TikTok? [risos]

Eu concordo até certo ponto. Acredito no velho jornal, especialmente em países como o Brasil, em que uma maioria da população não foi alfabetizada até a chegada do rádio, então não tivemos o desenvolvimento de uma “consciência literalizada”, e acho que essa é uma das tarefas históricas dos comunistas, criar essa consciência. Mas concordo, para agitação [as redes] são boas.

Sim, acho que está correto. Entender isso como agitação e, depois, tentar levar as pessoas a coisas mais longas. Mas devo dizer que me preocupo com o fato de estarmos perdendo uma cultura de leitura e uma cultura de estudo, e isso se torna cada vez mais difícil, e não deveríamos deixar isso de lado. Sim.

Por outro lado, o jornal leninista também era um trabalho de elaboração. As redes, as redes secretas, a distribuição e, por um lado, o TikTok não oferece isso, porque é superindividualizado; por outro lado, se você o estiver usando, digamos, para o seu partido ou movimento, e estiver coordenando esse trabalho e treinando pessoas, poderá usá-lo de uma forma mais próxima à do partido leninista.

Há uma crítica mais ou menos recorrente de que os comunistas não deram a devida atenção ao tema da comunicação; não no sentido de propaganda e agitação, mas sim no sentido de que certos meios de comunicação sobredeterminam uma certa época. Você concorda com essa crítica?

Na verdade, não. Tudo o que consigo pensar com essa crítica é algo como “você acha que Stalin não tinha uma grande operação de comunicação funcionando?” “Você já viu os cartazes, as estátuas?” Sabe, assim como temos celulares; havia estátuas gigantes em todos os lugares. A arquitetura é um meio de comunicação. Todo o antigo bloco socialista tem monumentos incríveis, bem como grandes projetos arquitetônicos. Portanto, que a abordagem da comunicação não assuma a mesma forma de uma abordagem capitalista ou de uma abordagem de relações públicas, não significa que não esteja tentando transmitir uma mensagem política e trazer e criar um tema político. Então acho que temos que medir isso em seus próprios termos. E hoje todos nós podemos aprender e fazer melhor. Quero dizer, acho que a questão é: como podemos melhorar nossa mensagem? Como podemos torná-la mais atraente? Por que eles não nos amam? [risos]. Essas são perguntas reais. 

Mas as respostas não serão do tipo: “ah, seja mais parecido com a publicidade”. Escrevi um livro chamado The Communist Horizon (O horizonte comunista) e muitas pessoas, quando eu falava sobre ele, diziam: “Sabe, concordo com tudo o que você disse, mas não deveríamos apenas fazer um ‘Rebrand’ [mudar ou adaptar a postura]?” e eu dizia: “Você não entendeu nada do que eu disse.”

Deixando de lado um pouco o tema da comunicação: estamos hoje numa conjuntura mundial que parece caminhar rumo a conflitos mais amplos. Temos a guerra na Ucrânia, a OTAN contra a Rússia; essa longa Guerra Fria entre EUA e China; e agora também a guerra total israelense contra Gaza. Como você vê isso? Seriam conflitos interimperialistas? Ou os EUA têm um papel fundamental nesses conflitos? Talvez até pensar em termos kautskianos, de uma transição de uma época de ultraimperialismo para outra? 

Acho que é um erro colocar os EUA, a China e a Rússia no mesmo plano de imperialismo, como se na ordem global eles tivessem o mesmo nível de controle e poder.

Assim sendo, acredito em uma análise que diga que vivemos em uma época imperialista, que uma época imperialista tem dinâmicas específicas, e que a principal força imperialista são os Estados Unidos, com os países da OTAN ou principalmente a UE como parceiros menores. 

E Israel é um ator importante nisso devido à sua posição no Oriente Médio, e os Estados Unidos simplesmente o adulam. Portanto, eu diria que vivemos em uma época imperialista com potências imperialistas, mas que não devemos encará-la como uma espécie de triangulação, com potências iguais.

Numa entrevista há alguns anos, nas últimas eleições norte-americanas, você foi perguntada sobre a posição do PSL sobre a disputa entre Biden e Trump, e disse que, embora o PSL tivesse sua própria candidata, reconhecia que Democratas e Republicanos não são iguais. Em que sentido não são iguais? Pergunto porque há a análise de que os Republicanos tendencialmente têm uma política mais voltada à sua esfera de influência, a América Latina, e os Democratas uma estratégia menos contida. Mas há continuidade em alguma medida, não? Quem fez o pivô para a Ásia, por exemplo, foi Obama, e Trump continuou… 

Concordo com você. Acho que nos saímos muito melhor em nossa análise quando vemos as continuidades. Na verdade, isso torna o mundo muito mais claro do que se tentarmos apenas seguir a propaganda do ciclo eleitoral americano para tentar estabelecer uma diferença onde não há uma diferença forte. 

Dito isso, acho que na vida cotidiana – e você sabe, estou em um ambiente acadêmico e universitário –, na vida cotidiana havia uma diferença entre o governo Obama e o governo Trump no que diz respeito a discussões sobre questões LGBTQ, questões raciais, embora ainda houvesse toda a questão de Ferguson e Black Lives Matter, que começou com Obama. No entanto, a atmosfera do nível de conforto das pessoas e a capacidade de falar sobre as coisas eram diferentes, como a tolerância para a aparição aberta de grupos supremacistas brancos sob Trump – isso não estava presente antes de forma tão pública. Quer dizer, sabemos que os Estados Unidos são um país extremamente racista. Tivemos a escravidão, pelo amor de Deus, e depois essencialmente o apartheid.

Esse é o argumento da continuidade, mas no dia a dia é possível sentir uma certa diferença, particularmente em relação às questões de imigração – embora Biden também tenha sido péssimo nisso. Portanto, a continuidade é o ponto mais forte, mas você pode sentir pequenas diferenças, mas não o suficiente para votar em um genocida.

Recentemente você foi suspendida de seu trabalho como professora por suas posições em relação ao genocídio israelense em Gaza e o 7 de outubro. Queria lhe ouvir sobre isso, e também perguntar: você crê que a questão Palestina hoje é a questão central, dentro dos EUA e também internacionalmente? É correto a comparação com o que foi a Guerra do Vietnã?

Vou falar primeiro sobre a questão da Palestina e depois talvez sobre minhas próprias questões. Porque o que realmente importa é que, a essa altura, acho que já são quase 38 mil pessoas registradas como mortas e assassinadas por Israel desde 7 de outubro em Gaza, sem contar as mais de 500 na Cisjordânia.

Acho que está claro que esse é o cerne da luta contra o imperialismo em todo o mundo. E acredito que isso se deve ao fato de que houve protestos em todo o mundo, certo? Se os protestos não tivessem sido mundiais, se não estivéssemos vendo-os em todos os lugares repetidamente, então não seria. Mas é quase como se as pessoas decidissem qual questão será essa questão global. Portanto, acho que é o centro da luta anti-imperialista e acho que é o centro dessa luta porque os EUA estão viabilizando que isso aconteça. Israel não seria capaz de fazer o que faz sem o apoio dos EUA e da União Europeia.

E, na verdade, a maioria dos governos do mundo todo, mesmo quando votaram pelo cessar-fogo na ONU ou pelo reconhecimento do Estado palestino, pouquíssimos – acho que a Colômbia é uma exceção – fizeram mais do que gestos simbólicos. Além disso, devemos perceber que essa é uma ordem mundial que milhões e milhões de pessoas estão rejeitando.

Às vezes me sinto um pouco culpada, porque há conflitos em outras partes do mundo. Congo, Sudão e ainda o Afeganistão. E todos eles são importantes. Mas não acho que diminua a importância desses conflitos dizer que, neste momento, o genocídio que está acontecendo em tempo real diante de todos nós, apesar de todas as principais instituições internacionais estarem dizendo que ele precisa parar, é a questão central. Acho que é a coisa mais significativa do momento. Ele mostra que a ordem imperialista está disposta a deixar de lado a chamada ordem baseada em regras.

E acho que é particularmente assustador reconhecer que, nesta era de mudanças climáticas generalizadas, de migrações internas e externas, a chamada ordem baseada em regras não signifique nada. Quer dizer, nós sabíamos que era uma ordem de exploração, desigual, e agora eles estão dispostos a jogar até mesmo isso fora? Essa é uma grande mudança. Então, sim, acho que essa é a luta central no momento.

Escrevi um artigo para o blog da [editora] Verso que foi publicado em 9 de abril, que é também o meu aniversário e o aniversário de Leila Khaled, e também o aniversário de Ghassan Kanafani e de Paul Robeson – é meio que um aniversário legal. 

Dois dias depois, um grupo de monitoramento sionista radical viu o texto no Twitter, pegou-o e começou a me denunciar. Quero dizer, não é como se eu me escondesse. Mesmo assim, eles incluíram o nome do presidente da faculdade onde leciono, Mark Gearan, e começaram a atacar todas as contas de mídia social da faculdade, exigindo que demitissem essa terrível antissemita. E o motivo pelo qual todo mundo ficou indignado foram as primeiras linhas do artigo, que diziam que muitos de nós ficamos entusiasmados ao ver os parapentes, sabe, ultrapassando as barreiras, fazendo o impossível [no ataque de 7 de outubro].

Não era só uma metáfora, mas fundamentalmente era uma metáfora.

Uma metáfora. E é uma imagem muito específica, do voo e dos parapentes fazendo o impossível e se libertando. Quando um povo oprimido se liberta, isso é inspirador para qualquer pessoa. E, sinceramente, parece que as pessoas que ficaram realmente incomodadas com isso não tivessem lido o artigo inteiro, porque poderiam ter ficado incomodadas com minha defesa do Hamas, mas, em vez disso, ficaram incomodadas com as linhas iniciais [risos]. Então, o presidente iniciou uma reunião do corpo docente me condenando e dizendo que o que escrevi era repugnante e, no dia seguinte, me chamou no escritório e disse que eu estava suspensa de dar aulas, aguardando uma investigação para o caso de haver alunos que possam ter se sentido inseguros.

Em seguida, ele enviou sua declaração a todos os alunos, pais, graduados ou ex-alunos, membros da administração, funcionários e professores. Portanto, foi um ataque total e claro. A partir daí, houve uma espécie de escalada. Portanto, agora estou sendo investigada, não muito otimista, porque não se trata do número de pessoas que dizem que esse é um argumento perfeitamente razoável, compreendido por milhões. Meu irmão disse: “Não sei por que alguém ficou incomodado, não consegui entender metade do que você disse” [risos]. É um site ou blog meio obscuro, sabe, é um site ou blog de esquerda, grande parte do conteúdo é acadêmico ou teórico.

Tivemos um fórum sobre liberdade de expressão para uma Palestina livre que minha faculdade não permitiu que acontecesse, então o transferimos para a Internet, e um amigo disse: “Era um belo ensaio sobre pipas”. [risos] Foi perfeito.

Nós tratamos um pouco de Ucrânia: neste caso nos questionamos porque países europeus, seus líderes e até as classes dominantes europeias, tomaram as posições que tomaram, prejudicando a si mesmas, levando até aos problemas de abastecimento de gás, e então nos lembramos de que há o imperialismo norte-americano e bases da OTAN por toda a Europa. Mas e quanto a Israel? Mesmo que prejudique a campanha de Biden internamente, o governo dos EUA mantém seu apoio a Israel. Como explicar isso? Porque há analistas que dizem que a relação EUA-Israel é especial, porque Israel tem um poder de lobby excepcional dentro dos EUA.

Sinceramente, eu gostaria de ter uma boa resposta. Tive essa discussão, acho que muitos de nós tivemos ela nos últimos oito meses em particular, porque parece tão sem sentido, parece tão totalmente destrutivo e também parece negar totalmente a humanidade dos palestinos. É como se Biden não conseguisse ver os palestinos como seres humanos, e há todo um setor, creio eu, da elite política dos Estados Unidos, que não vê os palestinos como seres humanos. Essa não é uma boa explicação, é claro. Um colega meu acha que o que temos é um caso de captura de todos os interesses de um Estado grande por um Estado pequeno. Então, em vez do grande estar no comando, o pequeno está, mas acho que isso é só uma descrição. Não é bem uma explicação.

Você já mencionou que uma explicação são as contribuições de campanha. E o que torna isso um pouco convincente é, por exemplo, o fato de a AIPAC [American Israel Public Affairs Committee; ‘Comitê Americano de Assuntos Públicos de Israel’] ter dado, sabe, milhões e milhões e milhões para Joe Biden ao longo de sua carreira, e podemos pensar que ele talvez esteja motivado por isso, coisas de campanha. A continuação da guerra por motivos políticos internos também se aplica a Netanyahu. Como se ele a mantivesse para evitar ser processado por suas acusações de corrupção e tudo o mais que será essencialmente trazido à tona assim que a guerra terminar. Portanto, pode ser, mas acho que é algo sobredeterminado, porque essas razões não explicam o inacreditavelmente intenso tipo de novo Macartismo em torno de Israel – já era um novo Macartismo em torno da China, mas agora esse inacreditável ataque sobre a liberdade de expressão, a liberdade acadêmica e os estudantes.

Então é essa a extensão da reação ao fato de não podermos defender a Palestina? Mesmo assim, não acho que isso seja explicado pelos interesses políticos do Partido Democrata. E então, o que é isso? Eu gostaria de ter uma explicação melhor, porque não quero dizer o lobby, porque, primeiro, isso soa antissemita, embora esse tenha sido um resultado bem-sucedido dos esforços de fortalecer a conexão entre os judeus americanos e os judeus israelenses nos últimos 40 anos. Mas nem mesmo isso parece explicar.

Parte de mim acha que há um sentimento, uma espécie de desespero e de apego a uma ordem, e que quando o poder dominante vê alguém se libertar, isso tem que parar. Então, essa espécie de posição – “não, você não pode resistir” – é fundamental. Isso me parece uma maneira de entender, mas não é uma boa explicação científica. 

Mas é uma boa explicação política. Bom, finalmente: durante sua discussão aqui na UNICAMP o mediador disse que você tem sofrido perseguições nos EUA, e te convidou ao exílio aqui no Brasil. Não sei quanto já viu do país, mas está considerando fazer isso? [risos]

[risos] Preciso fazer com que ele cumpra isso, certo? É sério. Eu estava pensando: “Cara, tem muito público aqui, muitas testemunhas disso!” Então, sabe, se eu pudesse ter um emprego de meio de ano, se eu for demitida do meu, eu definitivamente gostaria, mas eu não falo português! Então essa é uma barreira. [risos]

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