No início do genocídio, havia a suposição de que uma guerra com o Líbano aliviaria a pressão sobre Gaza. Mas com a atenção do mundo agora voltada para a escalada com o Hezbollah e o Irã, Israel continua realizando seus massacres em Gaza silenciosamente.
À medida que o Irã lançava uma saraivada de centenas de mísseis balísticos em direção a Israel na noite do dia 1, as pessoas nos abrigos e campos de desabrigados de Gaza inundaram as ruas para assistir à chuva de foguetes à distância. Vídeos nas mídias sociais mostraram as multidões aplaudindo e comemorando felizes porque, pela primeira vez, não eram eles que estavam sendo bombardeados, e parecia que os aliados da resistência tinham finalmente vindo em auxílio de Gaza.
Esses sentimentos foram semelhantes aos de 8 de outubro de 2023, quando o Hezbollah abriu uma “frente de apoio” para Gaza em uma tentativa de desviar uma parte das forças militares de Israel para o norte. À medida que o ataque israelense evoluía para um genocídio, as pessoas em Gaza começaram a esperar que o Hezbollah assumisse um papel ainda mais ativo e entrasse totalmente na guerra para diminuir a pressão sobre Gaza. Essas esperanças se revelaram equivocadas, pois os objetivos da frente de apoio passaram a ser de atrito em vez de uma guerra aberta.
Por razões emocionais, os palestinos em Gaza continuaram a ter esperança de que a resistência libanesa entrasse na batalha com mais intensidade para aliviar o sofrimento do povo e pressionar o exército israelense.
A recente expansão da guerra de Israel no Líbano, no entanto, provou exatamente o contrário. Embora a presença do exército israelense no terreno em Gaza tenha sido reduzida, os ataques aéreos em Gaza não só continuaram, como também aumentaram.
Na semana passada, enquanto o mundo estava preocupado com os acontecimentos no Líbano, o exército israelense cometeu massacres horríveis em Gaza em completo silêncio, com apenas uma modesta cobertura da mídia internacional. Todos os olhos estavam agora voltados para o Líbano, mesmo em Gaza.
Na última semana, o exército israelense bombardeou centros de desalojados na Cidade de Gaza, em Jabalia e no campo de refugiados de Nuseirat.
No dia 26 de setembro, o exército israelense bombardeou a Escola Hafsa, na área de Faluja, no norte de Gaza, matando mais de 15 pessoas. No dia 22 de setembro, o exército bombardeou duas escolas em Nuseirat que serviam de abrigo aos desabrigados. Um dia antes, outro massacre ocorreu na Escola Zeitoun, na Cidade de Gaza, em que um membro da Defesa Civil de Gaza segurou um feto sem vida que havia saído do útero da mãe assassinada.
Um vídeo publicado pela Defesa Civil afirmou que a mãe, Iman Madi, havia sido deslocada para a escola carregando o feto em seu ventre, que foi enterrado junto com a mãe no seu sétimo mês. Ela foi morta junto com outras 21 pessoas, incluindo doze crianças.
No dia 29 de setembro, o exército israelense bombardeou a escola Umm al-Fahm, no norte da Faixa de Gaza, causando a morte instantânea de dez pessoas desalojadas.
Entre esses massacres de maior porte, outros ataques menores não cessaram, como o bombardeio de casas sobre as cabeças de seus moradores.
Entre os dias 21 e 26 de setembro, de acordo com relatórios diários do Ministério da Saúde de Gaza, o exército israelense cometeu 29 massacres na Faixa de Gaza, matando cerca de 300 civis e ferindo centenas de outros.
Separando as frentes e caminhando para uma guerra eterna
Parte da razão para essa realidade é que a guerra no Líbano começou depois que o exército israelense já havia degradado as capacidades militares da resistência em Gaza. Agora, Israel consegue manter uma presença em Gaza sem dedicar a ela os mesmos recursos militares que dedicava no auge da guerra, lhe permitindo, portanto, redirecionar seus esforços para a escalada no Líbano.
O analista político palestino Alaa Abu Amer acredita que o principal objetivo da escalada é desvincular as frentes de Gaza e do Líbano para que Israel possa lidar com cada frente separadamente.
“Gaza foi esquecida, e todo o foco agora está no sul do Líbano”, disse Abu Amer ao Mondoweiss. “Depois que o exército israelense atingiu seus objetivos em Gaza, a faixa foi destruída e ocorreu um genocídio: os objetivos que restaram devem ser implementados por meio da fome e do cerco”, continua ele. “[Israel] está tentando esgotar as energias de Gaza e frustrar as tentativas de incitar a resistência como um objetivo de longo prazo. Esse plano está sendo combinado entre os Estados Unidos e outros países da região, incluindo partidos palestinos.”
“A frente que estava obstruindo tudo isso era a frente do sul do Líbano”, continua ele. “[É] a única carta de poder na mão do Hamas para confrontar os americanos e os sionistas para chegar a um acordo político que preservaria a resistência e manteria Gaza fora da estrutura dos planos sionistas.”
“A equação é que o Hezbollah no Líbano continuará, Israel continuará e o Hamas não se renderá. Essa é uma batalha sangrenta que pode atrair muitas partes relutantes, inclusive países da periferia, como a Jordânia”, acrescenta Abu Amer.
Abu Amer acredita que Israel não deseja se envolver em uma guerra de desgaste de longo prazo. “O povo de Israel está acostumado a viver no luxo e não tem afinidade com essa terra”, diz ele. “A maioria deles veio para Israel por causa dos privilégios materiais que receberam. Essa sociedade não conseguirá se manter por muito tempo depois que Israel se envolver no Líbano.”
O analista e colaborador da Mondoweiss Abdaljawad Omar acredita que, embora os massacres israelenses em Gaza tenham continuado, Israel não conseguirá executá-los com a mesma intensidade que no auge do genocídio.
“A mudança do equilíbrio da batalha para o norte inclui a retirada de algumas forças da Faixa de Gaza, o que significa reduzir o bombardeio em Gaza”, disse Abdaljawad Omar à Mondoweiss. “Mas o exército israelense ainda é capaz de realizar operações terrestres e quaisquer outras operações militares dentro da Faixa. O exército de ocupação agora tem a oportunidade, já que a frente norte está aberta, de realizar massacres sem suscitar reclamações da comunidade internacional, cujas preocupações estão em outro lugar”, diz ele.
“Desde o início da guerra em Gaza e o início da frente de apoio libanesa, Israel lançou uma guerra deliberada e ampliada que visa criar uma realidade radicalmente diferente em Gaza”, continua ele.
Mas a imposição dessa realidade requer uma guerra de longo prazo e uma escalada contínua. “Isso exigirá um alto custo de Israel, tanto militar quanto economicamente”, diz Omar.
Isso também significa que um custo sangrento será pago pela resistência em Gaza e no Líbano, para não mencionar suas bases de apoio popular. O resultado é que não há um horizonte claro para o fim da guerra. Israel confia em suas capacidades militares e na capacidade de seus aliados de fornecer armas e apoio diplomático e político no momento certo.
“Talvez ninguém queira uma guerra abrangente que reúna todas as forças em uma guerra regional aberta”, diz Omar. “Mas Israel está travando uma longa guerra com diferentes frentes. A questão é que ele quer lidar com cada frente separadamente, mas também espera que seus aliados se juntem a ele, arrastando os EUA para outra guerra no Oriente Médio.”
(*) Tradução de Raul Chiliani