O anúncio, no último dia 17, de que o líder do Hamas, Yahiya Sinwar, foi morto em um ataque israelense a Gaza, levou alguns a conjecturararem que o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, poderia tomar o fato como uma vitória e finalmente negociar uma troca de prisioneiros e um acordo de cessar-fogo para a Faixa de Gaza. Essa crença esperançosa se reforçou, por parte de de alguns, com a carta divulgada recentemente pelo Secretário de Estado Antony Blinken e pelo Secretário de Defesa Lloyd Austin ao ministro da Defesa israelense Yoav Gallant, pedindo a Israel que alivie a proibição de entrada de alimentos e outros materiais vitais no norte de Gaza, para que não haja “implicações” para o rápido fornecimento de armamentos em massa dos Estados Unidos para Israel.
Aqueles que alimentam essas esperanças aparentemente não se lembram de algumas coisas que aconteceram no ano passado.
Desde o início do projeto de genocídio de Israel em Gaza, houve violações massivas do direito internacional e os mais graves abusos de direitos humanos. Essas violações foram documentadas com uma clareza sem precedentes no decorrer do genocídio, em grande parte devido ao fato de Israel não ter feito segredo delas e de seus soldados terem transmitido seus crimes orgulhosa e consistentemente.
Isso não impediu nem um pouco o fluxo de armas para Israel. Mesmo quando o Reino Unido cortou alguns contratos militares ou quando o presidente da França pediu o fim das remessas de armas ofensivas para Israel, as armas de Washington (e também da Alemanha) continuaram fluindo. O governo de Joe Biden violou repetidas vezes a legislação dos EUA, inclusive fazendo com que Blinken enganasse o Congresso sobre a facilitação de ajuda de Israel para o povo de Gaza, e pode muito bem ter condenado seu próprio partido político à derrota nas próximas eleições com sua insistência em sustentar o pior genocídio do século 21.
Mais pedidos sem consequências em caso de recusa
Essa carta de Lloyd e Blinken nada mais é do que um teatro político. Sua intenção é comunicar aos eleitores que podem não votar nos Democratas em novembro que eles estão fazendo algo para lidar com o pior dos crimes de Israel em Gaza. Na verdade, não fazem nada disso.
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Blinken e Austin escreveram uma carta que, como de costume, apresenta poucas consequências. Eles deram um minúsculo passo à frente, afirmando que um não-cumprimento de Israel dos termos da carta “pode ter implicações para a política dos EUA de acordo com o NSM-20 (esse é o Memorando de Segurança Nacional que Biden emitiu em março, exigindo relatórios sobre a conformidade dos destinatários da ajuda militar com as leis humanitárias internacionais e dos EUA) e com legislação relevante dos EUA”.
Ao dizer que “pode ter implicações”, há uma clara inferência: o não cumprimento pode não ter nenhum efeito sobre a enxurrada de armas para Israel. Considerando o histórico não apenas americano, mas especificamente o relacionamento de Biden com Israel, é muito mais provável que não haja consequência alguma.
Isso é reforçado pelo fato de que a carta dá a Israel 30 dias para cumprir suas condições. Não há nada na carta que exija tanto tempo para a implementação. Mas, considerando que a carta é uma resposta a uma ameaça israelense de submeter o povo do norte de Gaza à fome, 30 dias é tempo suficiente para que o máximo de danos seja causado.
A carta de Blinken e Austin apresenta uma extensa lista de requisitos específicos que Israel deve cumprir para ser aprovado no padrão que eles estabelecem. Com qualquer outra entidade, essa lista exigiria que cada condição fosse atendida ou que a entidade fornecesse uma explicação dos motivos pelos quais seus esforços não foram suficientes.
Com Israel, no entanto, o que essa lista oferece é uma forma de propagandistas como os porta-vozes do Departamento de Estado, Matthew Miller e Vedant Patel, e os porta-vozes da Casa Branca, Karine Jean-Pierre e John Kirby, alegarem que Israel está tentando “cumprir suas obrigações em circunstâncias muito difíceis” ou algo parecido.
De fato, no dia 16, Israel permitiu que 50 caminhões de ajuda humanitária entrassem no norte de Gaza, depois de semanas sem permitir absolutamente nada (e em comparação com os 500 caminhões por dia que entravam em Gaza antes de 7 de outubro de 2023, o que ainda não era suficiente). Miller apontou a esse fato como um progresso e se esforçou para salientar que Israel havia aberto algumas das passagens para Gaza e tomado medidas para cumprir algumas das outras condições estabelecidas na carta dos secretários.
Por que a carta foi enviada?
Quando se trata de propaganda em tempos de guerra, uma mídia “ingênua” sempre ajuda. A Associated Press, informando sobre a carta dos secretários, deu o seguinte título à sua matéria: “Os EUA alertam Israel a aumentar a ajuda humanitária em Gaza ou correr o risco de perder o financiamento de armas”. Mas, é claro, os EUA não fizeram nada disso.
Isso não quer dizer que o governo Biden não queria algo de Israel. Essa carta é uma reação muito clara ao chamado “Plano do General”, idealizado pelo ex-general israelense Giora Eiland. Esse plano previa matar de fome a população do norte de Gaza, forçando-a a ir para o sul e declarando que qualquer pessoa que permanecesse seria considerada “terrorista” e um alvo legítimo.
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A descarada limpeza étnica aqui era maior do que até mesmo os Estados Unidos poderiam imaginar. Biden claramente temia que a implementação do plano (que já estava bem encaminhado, com o norte de Gaza completamente fechado) provocasse mais controvérsia do que ele desejava tão perto das eleições. Israel começou a recuar antes mesmo da carta ser recebida.
O fato do plano de Eiland ter se tornado um ponto de discussão pública antes de ser totalmente realizado é revelador. Israel provavelmente esperava que pudesse seguir em frente com ele, dada a indiferença não apenas dos americanos, mas também dos europeus e dos líderes dos Estados do Golfo em relação aos horrores desencadeados em Gaza. Mas eles deviam saber que havia uma boa chance de haver mais resistência do que desejavam.
O conveniente do plano para Israel é que, mesmo que recue, isso significa apenas levar a cabo o genocídio a um ritmo um pouco mais lento. Israel permite a entrada de alguns caminhões e abre algumas passagens, mas os bombardeios e tiroteios continuam ininterruptos, de modo que todos os problemas para levar ajuda às pessoas permanecem. A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) está à beira de um colapso financeiro e estrutural em Gaza. E, é claro, grande parte do norte de Gaza já está dizimada, de modo que as condições para as pessoas lá são propícias a doenças e a todos os outros perigos de uma infraestrutura destruída, ainda mais do que no sul.
A mensagem realmente significativa para Israel não veio esta semana de Antony Blinken e Lloyd Austin. Ela veio em um navio, aquele que transportava o sistema de defesa antimísseis THAAD. E veio acompanhada por cerca de cem soldados americanos.
O Terminal High Altitude Area Defense (THAAD) é um sistema altamente sofisticado que se mostrou bastante eficaz na derrubada de mísseis de curto e médio alcance à medida que eles descem em direção a seus alvos. Os EUA já haviam implantado uma bateria THAAD em Israel em 2019 para um exercício de treinamento, mas esta é a primeira vez que uma bateria foi estacionada em Israel com tantas tropas americanas para operá-la como parte de um sistema de defesa.
A implantação do THAAD dará a Israel uma camada adicional de impunidade em seus esforços de provocar uma guerra regional com o Irã. A presença de tropas dos EUA aumenta as chances de Israel atrair Washington para esse conflito.
Com a instalação do THAAD, a morte de Sinwar e um ataque dos Estados Unidos ao Iêmen no dia 16, é possível entender por que alguns poderiam pensar que Israel estava pronto para finalmente concordar com uma troca de prisioneiros e um cessar-fogo em Gaza. Afinal de contas, o país agora tem a possibilidade de um confronto mais forte com o Irã, está se atolando em outra campanha genocida no Líbano, e Gaza já não passa de escombros.
O líder da oposição, Benny Gantz, foi rápido em desmentir a ingenuidade dessa concepção. Após a confirmação da morte de Sinwar no dia 17, Gantz tuitou: “A eliminação hoje do arqui-terrorista Sinwar não é apenas uma questão de justiça. Ela envia uma mensagem muito clara aos nossos inimigos: Israel não descansará até que aqueles que nos prejudicam paguem por seus crimes. O exército israelense continuará operando em Gaza por anos, mas este momento deve ser aproveitado e alavancado para trazer os reféns de volta para casa e derrubar o regime do Hamas.”
Kamala Harris deixou claro que está jogando o jogo junto com seu patrão. “Este momento nos dá a oportunidade de finalmente acabar com a guerra em Gaza. E ela deve terminar de forma que Israel esteja segura, os reféns sejam libertados, o sofrimento em Gaza termine e o povo palestino possa concretizar seu direito à liberdade, segurança, dignidade e autodeterminação. É hora de começar um novo dia sem o Hamas no poder“, declarou Harris.
Outras autoridades de Biden fizeram eco a sentimentos semelhantes, ignorando a mesma realidade que Biden vem ignorando há um ano: que Netanyahu e a maior parte do governo de Israel não têm interesse em acabar com a guerra em Gaza. Até mesmo o líder da oposição, o chamado “moderado” Gantz, deixa claro que não há perspectiva para isso.
No entanto, o interminável teatro catastrófico continua. A matança em Gaza continuará, diminuindo e aumentando de acordo com as necessidades táticas de Israel. Harris nos lembra que não há esperança de que essa eleição, seja quem for o vencedor, traga alguma esperança de melhora, e, na verdade, ela pode apenas piorar a situação.
(*) Tradução de Raul Chiliani