Apertem os cintos. A República Popular Democrática da Coreia (RPDC) disparou mais um míssil na última terça-feira (29), dessa vez sobrevoando o território do Japão, marcando o 107º aniversário da invasão japonesa à Coreia, em 29 de agosto de 1910. No domingo, o país realizou um teste nuclear bem-sucedido do que seria uma bomba de hidrogênio.
O alerta não se refere à possibilidade destrutiva do “insano” Kim Jong Un, sequer a uma impossível resposta militar de Washington, mas ao amontoado hediondo de propaganda e bravatas que teremos de aturar nos próximos dias.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, respondeu ao disparo dizendo que “todas as opções estão na mesa” quando, na realidade, não há nenhuma. Um blefe envergonhado, não de um jogador com uma mão ruim, mas de alguém que sequer está no jogo; um gorila jogando fichas e urrando da platéia.
A posição que a RPDC ocupa no momento atual é de tal vantagem estratégica que qualquer posição tomada por seus adversários – ou mesmo posição nenhuma – lhe é conveniente.
Guerrear é impossível; primeiro porque tal decisão teria de partir unilateralmente dos Estados Unidos. Em tese, uma ação militar por parte das 24 mil tropas norte-americanas estacionadas na Coreia do Sul depende da aprovação do país, que não ocorrerá por três razões: no caso de vitória, esvaziaria em grande parte a importância estratégica do país, o que significaria, em última instância, uma crise econômica sem precedentes. No caso de derrota, a Coreia do Sul também pagaria o maior preço humanitário, não os EUA. Por fim, a razão mais importante é uma soma das duas: o preço a ser pago pela Coreia do Sul seria muito grande, ao passo que uma vitória contra o Norte não significaria conquista nenhuma ou, no mínimo, conquistas limitadíssimas. A posição do Japão é similar.
Para além desta questão, há o fato de que China e Rússia também não têm interesse em uma guerra na Península Coreana, já que esta desestabilizaria a região na melhor das hipóteses e, na pior, significaria um avanço das tropas norte-americanas nas fronteiras dos países.* A guerra, portanto, só interessa a um dos atores: os Estados Unidos – e mesmo neste caso há de se considerar que o país atualmente está diretamente ocupado na Síria, Afeganistão e Paquistão, e indiretamente (por meio de proxies) na Ucrânia e Iêmen. Mais uma guerra, em qualquer lugar do mundo, poderia significar na prática um enfraquecimento em suas posições em todas estas outras.
O secretário do tesouro norte-americano, Steven Mnuchin, no entanto, parece ter achado (ou ao menos crer que achou) uma solução para apresentar a Trump. Segundo ele, “aqueles que fazem negócios com eles (Coreia do Norte), não poderão fazer negócios conosco. Trabalharemos com nossos aliados. Trabalharemos com a China.” A posição foi reiterada por Trump em seu Twitter.
A China é responsável por 21% (457 bilhões de dólares) das importações norte-americanas, e é destino de 9,3% da produção norte-americana (128 bilhões de dólares). O Ministério de Relações Exteriores da China classificou a proposta como “inaceitável.”
Se Trump de fato levasse o plano a frente, poderia criar uma cisão econômica entre a RPDC e a China (83% das importações norte-coreanas vêm da China, e 85% das exportações tem ela como destino), mas seria Guam, Seul e Tóquio, e não Pyongyang, o alvo do “fogo e fúria” no dia seguinte. O ataque teria de ser respondido à altura, e a China pode abrir mão do carvão norte-coreano, mas não do escudo em suas fronteiras que a Coreia do Norte constitui contra o império.
*Alguns falam na superação da questão do posicionamento de tropas em um mundo em que mísseis podem ser lançados do mar e do ar; trata-se de uma percepção absolutamente equivocada por duas razões: a primeira; a guerra é a política em sua forma militarizada, e vice-versa. A aproximação de tropas de um país na fronteira de outro poderia não ser fundamental no caso de guerra, mas é importante quando se trata de pressão política. É este o sentido geopolítico que tem o golpe na Ucrânia e a consequente tomada do poder por parte de figuras ligadas aos EUA – e em vários casos favoráveis à entrada do país na OTAN – em relação à Rússia.
A segunda razão é que, mais importante do que destruir seu inimigo, é consolidar seu poder. Simplesmente bombardear um país sem avançar com tropas que garantam a posterior estabilização pode ser interessante a diversos interesses econômicos, mas simplesmente não faz sentido no que se refere à política (um exemplo clássico é o do bombardeio, com bombas atômicas, do Japão – se os soviéticos tivessem as ilhas Kurilas e Sakalinas em seu poder, e a disposição de avançar, teriam consolidado a autoridade no país asiático, em detrimento dos norte-americanos, apesar dos últimos terem sido os responsáveis pelo bombardeio).
Sem o apoio dos sul-coreanos, portanto, uma chuva de mísseis no norte só poderia criar um vazio de poder, e mesmo com o apoio sul-coreano a segunda maior potência militar do planeta – a China – avançaria sobre o território. Trump pode gritar da plateia, mas seria destruído se conseguisse um lugar na mesa.