Tropas brasileiras fizeram intervenção no Haiti por 13 anos. A política externa que parece ser de solidariedade, no entanto, não tem apoio uníssono dos haitianos, e reflete uma postura histórica de invasão estrangeira direcionada ao país com a única revolução de escravizados bem-sucedida no mundo.
Consulte qualquer Enciclopédia e indague qual foi o primeiro país livre da América. Encontrarás sempre a mesma resposta: os Estados Unidos. Mas os Estados Unidos declararam sua independência quando era uma nação com seiscentos e cinquenta mil escravos, que seguiram sendo escravos durante um século.
Se você pergunta a qualquer Enciclopédia qual foi primeiro país que aboliu a escravidão, receberás a mesma resposta: Inglaterra. Mas o primeiro país que aboliu a escravidão não foi a Inglaterra e sim o Haiti, que todavia continua expiando o pecado de sua dignidade4. (Eduardo Galeano em artigo: “Haití, país ocupado”, in Página 12, Buenos Aires, 28 de setembro de 2011.
A Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) chegou oficialmente ao seu fim no último 31 de agosto. As tropas brasileiras, no entanto, sairão por completo, na prática, no dia 15 de outubro, quando começará uma nova operação chamada Minujusth (Missão das Nações Unidas para o Apoio à Justiça no Haiti), um programa da ONU que se propõe a auxiliar as instituições haitianas.
Para Miguel Borba, historiador, mestre em Relações Internacionais pela PUC, em Ideologia e Análise de Discurso pela Essex, membro do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) e da rede Jubileu Sul, a Minustah é “uma intervenção militar e política internacional destinada a garantir um golpe de Estado dado em fevereiro de 2004 no Haiti, contra um presidente democraticamente eleito, Jean Bertrand Aristide”.
Aristide tentou introduzir reformas sociais no Haiti e cobrou judicialmente a França pela dívida externa imposta pelo país no momento de sua independência. De acordo com Borba, a França, Estados Unidos e Canadá foram responsáveis pelo golpe junto com a elite haitiana em troca de mão de obra barata e recursos naturais sem a inconveniência de um governo de centro-esquerda, se traduzindo, portanto em um “sequestro da soberania haitiana”.
A missão surgiu com o pretexto de reduzir a violência do Haiti e estabilizar o país politicamente. No entanto, Borba questiona esse discurso afirmando que o país tinha baixos índices de violência, menores do que em cidades como Baltimore ou a capital dos Estados Unidos, Washington. O historiador afirma ainda que a violência aumentou depois da invasão estrangeira.
As intervenções militares estrangeiras configuram uma tendência histórica direcionada ao país. No intervalo de dez anos, entre 1993 e 2013, houve não menos do que sete missões de intervenção militar enviadas pelas Nações Unidas (ONU) com o apoio da Organização dos Estados Americanos (OEA). “É uma expressão atual do colonialismo e do racismo que constituem as relações entre os centros capitalistas dominantes e as periferias do capitalismo global há pelo menos cinco séculos”, argumentou o membro da PACS.
A Minustah foi liderada pelo Brasil, e refletia o interesse brasileiro em ocupar uma cadeira definitiva no Conselho de Segurança das Nações Unidas, e faria o país se projetar como importante ator internacional. Prevista para durar seis meses, a missão se estendeu por treze anos, gastando anualmente 400 milhões de dólares e atingindo a marca de 37.500 militares brasileiros no país ao longo dos anos.
“Ela durou tanto tempo não tanto por seus êxitos, mas por ser capaz de prolongar seus fracassos e permitir a continuidade de quem se beneficia com isso. As forças armadas brasileiras se reequiparam, muitos oficiais ficaram anos recebendo salários em dólares; as ONGs nem se fala”, afirmou Borba. “É um fracasso para os haitianos e haitianas, mas uma fonte de bons empregos e promoções (nos mundos militar, filantrópico, diplomático, acadêmico) para quem faz carreira passando pelo Haiti”.
A missão deixa em sua história uma série de controvérsias. Houve denúncias e cobranças de haitianos por conta da epidemia de cólera iniciada em 2010. Não havia registros da doença no país até então, o que aponta para a contaminação do rio por meio das fezes de soldados nepaleses levados pelas Nações Unidas naquele ano, segundo relatório do epidemiologista Renaud Piarroux. A epidemia vitimou 8 mil pessoas e o caso não levou à indenização por parte da Organização. Há registro também de ao menos 150 acusações de abuso sexual cometidas pelas tropas da Minustah.
Para o historiador, operações internacionais como essa se beneficiam da exploração da miséria de países periféricos. “Não é coincidência que a MINUSTAH acabe em 2017 junto com a falência do projeto de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro. Elas são parte de uma mesma política de controle sociorracial sob roupagem discursiva humanitária”.
Borba ressalta ainda que outras intervenções continuarão sendo feitas, “remodelando sempre a mesma política racista e elitista de “segurança pública” em países classificados como “falidos” e cidades ou bairros nomeados como “frágeis”. De fato, a Minustah sai e começa uma nova missão realizada pela ONU, a Minujusth.
É importante frisar que a situação atual do Haiti, em termos políticos, econômicos, está fortemente ligada à história do país, que foi a primeira República negra do mundo. O Haiti foi palco da única revolução negra escrava bem-sucedida na história e foi o primeiro país independente da América Latina. Desde sua independência, em 1804, o país, no entanto é alvo de sucessivas intervenções militares intercaladas por ditaduras violentas.
Embora tenha se tornado independente em 1804, foi apenas em 1862 que o Haiti foi reconhecido como tal pelos Estados Unidos, que, de 1915 a 1934, invadiu o país com intervenções de fuzileiros navais. A resistência formada por uma guerrilha levou a morte de seus líderes. “Não é fácil “estabilizar” 10 milhões de pessoas que conhecem a sua história e sentem orgulho de serem descendentes de Dessalines”, explicou Borba. Dessalines foi um dos líderes da revolução de negros no país e se tornou o seu primeiro governante.
Para Ricardo Seitenfus, Doutor em Relações Internacionais, antigo representante especial da OEA no Haiti (2006-2011) e autor do livro “Haiti: Dilemas e Fracassos Internacionais”, existe uma incapacidade do Ocidente de “aceitar, compreender e conviver com os princípios que regem a independência traumática do berço dos Direitos Humanos Fundamentais” (citado em artigo).
O medo de que a revolução haitiana servisse de exemplo para a libertação de escravizados e a independência de outras colônias criou tendências históricas de entender o país como ameaça internacional. “O Haiti foi historicamente objeto de uma atenção negativa por parte do sistema internacional. Percebido como uma ameaça, é a força que define as relações do mundo com o Haiti e jamais o diálogo”. Assim, a instabilidade política do país também é causada pelas constantes intervenções internacionais, segundo Seitenfus.
A Revolução Haitiana fez nascer o primeiro país liberto da escravidão pela luta dos próprios escravizados, e paga até hoje pela sua ousadia. Em nome da liberdade, estima-se que cerca de 160 mil haitianos morreram – além da posterior guerra civil e a destruição do país até então cheio de riquezas.
Os haitianos tiveram que pagar uma dívida bilionária (o que equivale aos US$ 21 bilhões de dólares atuais) por sua independência para a França, o que deixou o país devastado economicamente, além de sofrer embargos econômicos constantes e de se tornar quintal de intervenções políticas e militares. A política externa direcionada ao Haiti, portanto, apresenta-se como um histórico de fracassos e arbitrariedades.
Para Borba, o Brasil precisa assumir a responsabilidade por mais de uma década de intervenção política e militar no Haiti. “Não podemos simplesmente lavar as mãos e ir embora sem prestar contas. O sequestro da soberania haitiana produz sobre seus sequestradores o peso da culpa pela situação lamentável em que o país se encontra hoje”. O historiador explica ainda que Venezuela e Cuba ajudaram o Haiti sem intervenções militares. Seu auxílio depois do terremoto de 2010, veio por meio de médicos, professores, agrônomos; construíram praças e viadutos.
A população haitiana resiste superando expectativas, desastres naturais, violências institucionais e a insistente ocupação estrangeira, não sem luta. O Haiti foi uma vanguarda na busca da liberdade no mundo e segue sendo um país de constante resistência, apesar de frequentes intervenções, inspirado no potencial revolucionário de seus ancestrais.
* Marcelle Felix é militante da Rede Emancipa, jornalista e mestranda em sociologia pelo IESP – UERJ.