A Venezuela oficialmente decidiu banir os partidos de oposição da corrida nas eleições presidenciais do próximo ano – ao menos de acordo com a imprensa ocidental. As notícias estão por toda parte, sob manchetes que dizem:
Eleição presidencial da Venezuela: Governo de Nicolas Maduro bloqueia candidatos opositores da competição – The Independent
Três partidos de oposição na Venezuela são bloqueados das eleições – ABC News
Em nome da democracia, a Venezuela bane a oposição – The Economist
Venezuela: Presidente Nicolas Maduro bloqueia partidos de oposição de eleições presidenciais – DW
A mesma história foi também impressa no The New York Times e The Washington Post, então ela deve ser verdadeira, certo? Com certeza parecia verdade durante a leitura.
“A Assembleia Constitucional pró-governo da Venezuela na quarta-feira efetivamente tirou de três dos partidos de oposição mais influentes do país o direito de participar nas eleições presidenciais do próximo ano”, diz o The New York Times. No entanto, as primeiras ranhuras na notícia começam a aparecer quase que imediatamente, quando o autor (a Associated Press), diz: “A assembleia toda-poderosa passou um decreto exigindo dos partidos a reaplicação para status legal depois do boicote às eleições municipais no começo de Dezembro.”
A questão, portanto, é se ser forçado a se “reaplicar para obter status legal” realmente constitui um banimento. Para descobrir isso, vamos ouvir as palavras da decisão da Assembleia Nacional Constituinte (ANC).
“Para participar dos processos eleitorais nacionais, regionais ou municipais, as organizações políticas devem ter participado nas eleições imediatamente anteriores do período constitucional, nos níveis nacional, regional ou municipal”, disse a ANC, como reportado pelo jornal opositor El Nacional.
O que isso significa?
Então a ideia geral é que, para cada eleição, cada partido deve se registrar e cumprir uma série de requerimentos básicos. Geralmente, esse processo é dispensado para partidos que tenham participados em uma eleição anterior, contanto que tenham conseguido ao menos 1% dos votos. Pelas novas leis da ANC, no entanto, os partidos precisam passar por um processo de reaplicação se eles não tiverem participado na eleição “imediatamente anterior.” Então digamos que, se você boicotou uma eleição, terá de preencher um monte de papéis para competir em uma eleição futura.
Claramente, o movimento mira os partidos de oposição que boicotaram as recentes eleições municipais da Venezuela. Estão incluídos, assim, três dos maiores partidos da principal coalizão opositora, a Mesa de Unidade Democrática (MUD): Acción Democrática (AD), Voluntad Popular (VP) e Primero Justicia (PJ).
“Se eles se recusaram a participar nas eleições… devem ser validados de novo”, disse a líder da ANC, Delcy Rodriguez.
Se esta é ou não uma medida razoável, cabe a você decidir. Há o argumento de que qualquer tipo de impedimento na participação democrática (quer seja como eleitor ou candidato) deve ser condenado. Por outro lado, a oposição tem um hábito ruim de só concorrer nas eleições nas quais pensam que podem vencer, enquanto simplesmente boicotam as que pensam que vão perder. Não se trata somente de uma estratégia de mal perdedor; é um movimento cínico que tem por objetivo deslegitimar e atacar a democracia Venezuela.
De qualquer maneira, nós ainda ficamos com uma pergunta: a aparente solução da ANC melhora ou piora as coisas? No pior dos casos, trata-se efetivamente de um banimento aos partidos opositores, como a grande mídia argumenta?
Quão duros são os requerimentos para a validação?
Para entender se a decisão da ANC constitui ou não um banimento aos partidos de oposição, precisamos examinar com mais cuidado o processo de aplicação. Para conseguir reaplicar para uma eleição, um partido deve demonstrar o apoio de ao menos 0,5% dos eleitores. Este requerimento pode ser encontrado na Lei de Partidos Políticos, Reuniões Públicas e Manifestações (Capítulo 2, Artigo 10).
No começo deste ano, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) deixou claro que para as eleições os partidos precisam alcançar o limiar de apoio de 0,5% em ao menos 12 estados. O partido em si é livre para escolher os estados, contanto que alcance o limiar de apoio.
Nesta altura, é importante notar que esse requerimento não é exatamente oneroso para os padrões internacionais, como os dos Estados Unidos. Por exemplo, na Califórnia um partido só precisa do apoio de 0,33% dos eleitores para se qualificar a concorrer. Na Flórida, no entanto – que tem uma população de quase 2/3 da venezuelana – a porcentagem é significativamente maior; de 5%. De qualquer maneira, ninguém argumenta que o estado da Flórida constitua uma ditadura, certo?
E quanto ao contexto venezuelano?
Nós já vimos estas notícias antes. No começo deste ano, o CNE foi alvo de similar controvérsia quando anunciou que todos os partidos que não conseguissem 1% nas eleições anteriores teriam de passar por um processo de revalidação.
Apesar das críticas da oposição, as grandes burocracias de partidos da MUD como VP, AD e PJ não tiveram problemas em manter seu status legal durante o processo de re-verificação. Então até o momento não há razão para acreditar que eles não seriam capazes de fazer o mesmo para as eleições de 2018.
O verdadeiro programa como o processo de registro
Em outras palavras, todos os veículos de mídia que descreveram o decreto da ANC como um “banimento” contra “partidos opositores” estavam, sem dúvidas, simplesmente errados. Ao contrário, para grandes partidos como VP, AD ou PJ, os novos requerimentos não devem ter grandes impactos. Isso não significa dizer que a ANC ou o governo Maduro não tentarão colocar obstáculos em seu caminho ao passo que as eleições se aproximam. De fato, com as eleições de 2018, sendo as mais importantes desde 2013, eu pessoalmente não ficaria surpreso em ver diversas táticas tanto do PSUV quanto da MUD.
No entanto, isso não quer dizer que o último decreto da ANC não vá ter suas vítimas. Assim como o processo de re-verificação no começo de 2017, o decreto da ANC poderia ter um peso desproporcional em partidos políticos menores, incluindo os de esquerda. Durante o processo de registro no começo do ano, os partidos tiveram somente 48 horas para coletar suas assinaturas. Para partidos maiores e bem estabelecidos, com redes de apoio em todo o país, dinheiro e voluntários, esse processo foi simples – mas não para partidos menores.
“Em Libertador (Caracas), é necessário mobilizar 20 mil pessoas para conseguir alcançar o apoio… são 1200 pessoas por hora”, disse o secretário-geral do partido de esquerda REDES, Juan Barreto.
Alguns dos maiores críticos do processo foram os apoiadores do Partido Comunista da Venezuela (PCV). Uma vez aliado próximo do PSUV, o PCV argumentou que os requerimentos do CNE foram um ataque na privacidade, que poderia abrir espaço para futura repressão política.
“Isso envolve riscos fundamentais para nossos militantes, nós estamos falando de conceder informações confidenciais de militantes que fazem parte de um partido que foi perseguido durante toda a história”, disse o secretário-geral do PCV, Oscar Figuera, em março.
Em resposta às petições de partidos menores, à direita e esquerda, a Suprema Corte da Venezuela diminuiu os requerimentos, por meio de decisão, em abril, que estabeleceu que os votos conseguidos nas eleições anteriores contariam para o limiar de apoio necessário.
De qualquer maneira, desde então o CNE tem prejudicado a possibilidade de partidos e candidatos pequenos, normalmente de esquerda, em participar livremente em uma série de ocasiões. Evidência disso é a controvérsia no estado de Lara, onde o CNE se recusou a reconhecer a vitória de um candidato do movimento social Chavista nas eleições municipais, sob ordens da ANC. Ou simplesmente leia nossa entrevista com o candidato Eduardo Saman, cujo nome sequer apareceu na cédula de votação.
“É uma situação que tomaria cinco minutos para ser revertida [pelo CNE], mas não há desejo para fazer esta decisão, para gerar confusão”, disse ele.
Como o caso de Saman ilustra, o CNE, o PSUV e o aparato do estado como um todo está colocando os movimentos sociais de esquerda e chavistas críticos de lado. Revolucionários sérios estão simplesmente tendo negada a oportunidade de tomar as rédeas do projeto socialista da Venezuela e salvar o país da incompetência de Maduro e do terrorismo da oposição.
Ao invés de ser um banimento em grandes partidos de oposição, as ações do CNE e da ANC poderiam na realidade acabar por prejudicar os revolucionários venezuelanos, tornando mais difícil que candidatos dos movimentos populares enfrentem tanto o PSUV quanto a MUD. No entanto, trata-se de um tema pelo qual a grande mídia não tem nenhum interesse. A imprensa internacional prefere repetir os comunicados da MUD e lamentar sobre o quão difícil é para uma oposição de direita apoiada pelos EUA vencer em um país de maioria Chavista.
A realidade é que todos, da imprensa internacional até Maduro e a MUD, estão unificados no apoio à narrativa simplista do nós contra eles, do PSUV contra a MUD. Qualquer um que suporte esta narrativa binária é colocado em um pedestal, enquanto as complexidades da participação das bases na revolução são ignoradas. Por quê? Porque o poder não concede nada sem uma demanda. Se o processo revolucionário da Venezuela deve ser recuperado, cabe aos que não têm poder para exigir concessões manter os reacionários pró-imperialistas fora do poder e enfrentar a direita interna da revolução.