O ano era 2016. O major-general Yair Golan — então vice-chefe do Exército de Israel, o número dois da força — fez um discurso em memória das vítimas do Holocausto. Esse teria sido só mais um dos inúmeros discursos de um militar israelense com mais de 30 anos de serviço, não fossem as palavras que chamaram a atenção do mundo inteiro. No discurso, Golan afirmou-se preocupado: “Porque se há algo que me assusta na lembrança do Holocausto, é discernir as tendências nauseantes que ocorreram na Europa em geral, e na Alemanha especificamente naquela época, 70, 80 e 90 anos atrás, e ver evidências delas aqui entre nós no ano de 2016. (…) Afinal, não há nada mais simples e fácil do que odiar o estrangeiro, não há nada mais simples e fácil do que despertar medos e intimidar, não há nada mais simples e fácil do que se tornar bestial, renunciar aos próprios princípios e tornar-se presunçoso.”
As palavras despertaram a fúria imediata das principais figuras da direita do país – incluindo o já primeiro-ministro Benjamin Netanyahu –, e Golan foi levado a se retratar. Seu discurso era uma referência ao episódio em que o soldado israelense Elor Azaria foi filmado assassinando um palestino rendido na cidade de Hebron, não uma “comparação absurda” entre os períodos e países, complementou o general dias depois. O soldado em questão, que motivara a fala, recebeu apoio de diversos setores em Israel, inclusive de ministros do governo. Acabou sendo condenado em um tribunal militar, mas cumpriu apenas metade de sua sentença. Quando saiu da prisão, tornou-se uma celebridade digna de receber férias com tudo pago e passou a oferecer sessões de aconselhamento a soldados sobre como tratar palestinos. Um coach antes da popularização da palavra; o soldado virou herói nacional depois de matar um prisioneiro rendido.
A relação estabelecida pelo general não era novidade na época e não é novidade hoje. Muitos intelectuais, políticos e homens de Estado já traçaram esse paralelo – Albert Einstein, o físico mundialmente conhecido, entre eles. Em 1948, numa carta ao The New York Times, Einstein e outros intelectuais judeus da época denunciaram as semelhanças “no recém-criado Estado de Israel” e os “métodos, filosofia política e apelo social” de organizações nazistas e fascistas. Entre os signatários da carta está Hannah Arendt, cuja crítica ao Estado de Israel é convenientemente esquecida pela gama de acadêmicos e figuras públicas que costumam venerá-la pelo papel que cumpriu na demonização da União Soviética.
Esse assunto voltou outra vez à tona com a fala do presidente Lula no último dia 18, na coletiva de imprensa que encerrou o giro do presidente brasileiro no continente africano. Na ocasião, Lula disse que o único paralelo histórico ao que ocorre na Faixa de Gaza é a decisão de Hitler de exterminar os judeus da Europa, recurso batizado de “solução final” da questão judaica. A reação foi imediata. Autoridades israelenses, que há quatro meses conduzem na Faixa de Gaza uma das ofensivas mais brutais do século, foram a público repudiar a declaração e ameaçar o Brasil com retaliações, solicitando apoio de outros líderes mundiais, que até agora seguem em silêncio.
No Brasil, a fala despertou uma histeria vergonhosa dos veículos de imprensa, que se comportam como verdadeiras filiais em língua portuguesa dos mais reacionários portais de Israel. Serviu também para nos ajudar a separar o joio do trigo, uma vez que muitas figuras do chamado “sionismo de esquerda”, que até então se escondiam atrás do escudo moral da “crítica a Netanyahu”, deixaram claro que, na hora que a corda aperta, são mais sionistas que de esquerda.
Foi o caso dos protestos contra a simples menção das origens coloniais do nazismo, que em plena europa empreendeu um projeto que elevou à enésima potência os brutais experimentos de dominação e escravização que por quatro séculos a Europa realizou nas suas colônias na África, América, Ásia e Oceania. Essa afirmação, que não é nenhuma novidade, pode ser lida em toda sua riqueza em autores como Aimé Césaire, Frantz Fanon, Jean-Paul Sartre, Walter Rodney e até mesmo da já citada menina dos olhos do ocidente, Hannah Arendt, que na segunda parte do seu Origens do Totalitarismo estabelece as relações entre o colonialismo, o imperialismo e os “projetos totalitários”. Ainda assim, muitos se incomodaram com essa correlação quando a fiz recentemente em uma rede social, talvez porque evidencia que o esclarecimento europeu e o liberalismo, filhos da modernidade, carregam consigo as manchas de sangue da escravidão de três continentes e do extermínio de um sem-número de povos.
Alguns dos lamentosos se incomodaram com o “grande estrago” que, segundo eles, foi feito pelo historiador italiano Domenico Losurdo, que se popularizou no Brasil por resgatar as ligações entre o horror nazista e o liberalismo da burguesia europeia, pai e mãe do colonialismo que acorrentou todo o globo num mesmo sistema econômico, o capitalismo.
Diz muito que, deparados com tal afirmação, extensamente refletida por décadas, por autores de diversos continentes, o primeiro impulso de alguns “sionistas de esquerda” seja lamentar os que trabalharam para não deixar que essa ligação caia no esquecimento. Isso me faz lembrar que, em sua resposta a Lula, o carniceiro de Tel Aviv falou em uma “linha vermelha” que teria sido cruzada pelo presidente brasileiro ao defender os palestinos massacrados em Gaza. Sem querer, ele nos deu o parâmetro para olhar à nossa volta e ver muitos que, conscientes ou não, deram um passo à frente e cruzaram eles mesmos a linha vermelha de sangue inocente, ombreando com os que sempre criticaram. Em tempos de guerra como os nossos, a frase de Hemingway sobre as trincheiras soa cada vez mais alta em todos os ouvidos, mas poucos são os que conseguem escutar:
“– Quem estará nas trincheiras ao teu lado?
– E isso importa?
– Mais do que a própria guerra.”
(*) Euclides Vasconcelos é professor e historiador. Especialista em história militar e geopolítica.