No dia 1º de fevereiro de 2024, a Ucrânia recebeu um pacote de ajuda de 50 bilhões de euros da União Europeia (UE), com o objetivo de reforçar sua capacidade de defesa e facilitar a reconstrução do país. Dezenas de outros países, juntamente com organizações credoras multilaterais lideradas pelo Ocidente, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, bem como investidores privados, contribuíram com bilhões de dólares em ajuda à Ucrânia desde a invasão da Rússia em 2022. Outros bilhões foram prometidos.
Embora o apoio internacional tenha sido crucial para a Ucrânia, espera-se que Kiev pague grande parte dessa ajuda. Aproximadamente metade da população global vive atualmente em países onde o pagamento de dívidas excede os gastos com educação e saúde. Enquanto os países mais ricos podem gerir suas dívidas de forma sustentável, os países mais pobres enfrentam desafios para evitar os efeitos prejudiciais da dívida excessiva, o que leva a um desenvolvimento atrofiado.
A Ucrânia continua precisando desesperadamente de assistência financeira externa, ajuda humanitária, desenvolvimento de infraestrutura, apoio militar e capacitação técnica. No entanto, vários apoiadores internacionais demonstraram uma discreta cautela em relação a isso. A capacidade da Ucrânia de implementar reformas políticas, econômicas e sobre corrupção apoiadas pelo Ocidente, expulsar as forças russas e pagar os empréstimos é questionada. Essa posição hesitante ressalta os desafios de coordenar um conjunto diversificado de doadores ao longo do tempo.
A União Europeia (UE) tem sido a principal fonte de assistência financeira para a Ucrânia, e a recente aprovação de seu último pacote de ajuda ocorreu após meses de debates entre os Estados membros. O FMI também concedeu um empréstimo de 15,6 bilhões de dólares em 2023, marcando o primeiro empréstimo do FMI concedido a um país em guerra. Enquanto isso, os investidores estrangeiros têm buscado cada vez mais garantias e seguros para investir na Ucrânia, com o governo ucraniano trabalhando com o Banco Mundial para implementar essas políticas.
Os EUA forneceram a maior parte da ajuda militar externa da Ucrânia, porém os mais recentes 60 bilhões de dólares em assistência militar ficaram bloqueados por meses devido à oposição no Congresso. O apoio republicano à Ucrânia diminuiu consideravelmente desde os primeiros dias da guerra, o que levou os defensores do pacote de ajuda militar pendente a enfatizar seus benefícios para as empresas norte-americanas, a criação de empregos e a redução dos custos de manutenção de estoques de armas dos EUA ou mesmo os gastos com sua destruição.
No entanto, essa linha de pensamento provocou reações contrárias de todo o espectro político. Os políticos republicanos têm criticado cada vez mais o fato de se fornecer à Ucrânia um “cheque em branco“, enquanto acusações de possível lavagem de dinheiro têm sido levantadas. A falta de uma estratégia bipartidária de longo prazo para a Ucrânia por parte de Washington deixou os fabricantes da área de defesa hesitantes em aumentar a produção de armas, já sob escrutínio pelo aumento de preços durante o aumento da demanda.
Além dessa relutância, existe a preocupação dos EUA em estabelecer saídas de longo prazo para as empresa de defesa. Por exemplo, desde 1979, os EUA deram ao Egito cerca de 50 bilhões de dólares em ajuda militar, incluindo caças, helicópteros, tanques, veículos blindados de transporte de pessoal, aeronaves de vigilância, treinamento antiterrorismo e assistência à segurança das fronteiras. Depois que o Congresso cancelou metade do pagamento anual de 1,2 bilhão de dólares ao Egito em 2013, após um golpe liderado por militares (bem como 250 milhões de dólares em ajuda econômica anual), as autoridades dos EUA observaram que seu governo teria que pagar pela remessa perdida e pelos custos de encerramento dos programas. Mais tarde, a ajuda ao Egito foi totalmente restabelecida, em 2015.
Apesar da retomada da ajuda militar ao Egito, questionamentos persistentes cercam a alocação desses fundos. A ajuda contribuiu para evitar que o Egito se tornasse um adversário, mas, desde 2013, o Cairo se aproximou mais da China e da Rússia. Os fabricantes de armas dos EUA têm oportunidades lucrativas de exportação, mas essa assistência também ajudou a enriquecer e fortalecer as Forças Armadas do Egito e o capacitou a absorver outras formas de ajuda externa. As condições do FMI para conceder ao Egito um empréstimo de 3 bilhões de dólares em 2023 dependiam do compromisso do governo militar com a reforma política e econômica, mas isso continua improvável.
O Egito, com uma dívida de 11 bilhões de dólares, é o segundo maior país devedor do FMI, depois da Argentina ( 32 bilhões de dólares) e à frente da Ucrânia ( 9 bilhões de dólares). O Banco Mundial conta com a Índia ( 39 bilhões de dólares), a Indonésia (19 bilhões) e o Paquistão ( 18 bilhões) como seus principais devedores. A dívida global combinada do FMI e do Banco Mundial ultrapassa os 300 bilhões de dólares, sendo que seu alcance global se expandiu significativamente desde seu enfoque original na reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial.
Essas organizações começaram a intervir em crises de larga escala nos países em desenvolvimento no início da década de 1980 para enfrentar os desafios da dívida externa. Como os EUA aumentaram as taxas de juros para combater a inflação, os empréstimos denominados em dólares causaram inadimplência e reestruturação de dívidas significativas, principalmente na América Latina.
O FMI e o Banco Mundial defenderam a privatização de setores inteiros e a industrialização voltada para a exportação, eliminando barreiras comerciais e concedendo às empresas estrangeiras acesso mais fácil a matérias-primas. A partir da década de 1980, as condições associadas aos Programas de Ajuste Estrutural (PAE) levaram ao retorno do crescimento econômico, mas os beneficiários da ajuda se tornaram mais dependentes do mercado e do FMI e do Banco Mundial, enquanto os salários permaneceram baixos devido à desvalorização das moedas.
O fim da Guerra Fria e o estabelecimento do moderno sistema financeiro global fizeram com que os governos ávidos por crédito mudassem sua dependência de países e organizações multilaterais para abraçar os credores privados, incluindo investimentos privados e capital de risco.
O impacto das estratégias de empréstimos amplos ficou evidente nos empréstimos do Paquistão na Política de Energia Privada em 1994. O Banco Mundial assumiu um papel dominante no projeto, fornecendo garantias, juntamente com o Banco Asiático de Desenvolvimento e o Export-Import Bank of Japan. O governo de Benazir Bhutto no Paquistão ofereceu garantias soberanas, atraindo investimentos estrangeiros consideráveis com retornos garantidos e repatriáveis em dólares.
No entanto, as mudanças nos governos paquistaneses alteraram a direção política de longo prazo do projeto, enquanto os produtores independentes de energia (IPPs) locais se envolveram em uma política de preços abusivos e em um excesso de oferta, mergulhando o país em dívidas. O Banco Mundial foi criticado, juntamente com os governos paquistaneses e as IPPs, pela falta de supervisão e pela apropriação indevida de fundos. Atualmente, o Paquistão enfrenta uma escassez aguda de energia e seu nível de endividamento aumentou.
O Paquistão também pode contar com outras fontes de financiamento. Os empréstimos sauditas ao Paquistão remontam à década de 1970, enquanto a China entrou no mercado de dívida do país na década de 2000. Nos próximos anos, o Paquistão precisará emitir pagamentos importantes para a Arábia Saudita, China e investidores privados, o que levou a impasses sobre a emissão de empréstimos adicionais e a decisão de quem, juntamente com os empréstimos ocidentais, será pago primeiro. Isso levantou preocupações sobre a sustentabilidade e a sabedoria estratégica da crescente dependência do Paquistão no endividamento externo.
A assistência da China aos países geralmente serve como uma solução para seu excedente de mão de obra, sua poupança e a capacidade industrial de suas empresas estatais. Os setores chineses de aço, cimento, carvão e outros acumularam uma enorme capacidade, e a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) da China permite que o país exporte esses recursos. No entanto, isso geralmente resulta em contratos de projetos concedidos a empresas chinesas, marginalizando o setor local e intensificando a dependência, enquanto os minerais e os recursos naturais são extraídos e exportados para a China. Apesar dos debates sobre o resultado de alguns projetos, eles se mostraram eficazes no aumento da influência chinesa e na obtenção de favores de governos e populações estrangeiras.
Diversas fontes de empréstimo também convergiram no século XXI para o que foi chamado de “mercados de fronteira“. Na década de 2010, o interesse dos investidores aumentou nos títulos de fronteira, em que os países em desenvolvimento emitiam dívidas em sua própria moeda, divergindo dos comumente usados “eurobônus”, geralmente denominados em dólares americanos. Os títulos de fronteira protegiam os países em desenvolvimento das oscilações voláteis da moeda, permitindo que eles ajustassem as condições de pagamento além da jurisdição dos tribunais de Londres e Nova York, e ofereciam a opção de gerenciar a dívida por meio da impressão de moeda.
Com os atraentes índices baixos de dívida em relação ao PIB e o fascínio dos títulos de alto rendimento, Wall Street incentivou esses países a contrair empréstimos. A dívida dos países africanos aumentou à medida que seus governos emitiam títulos soberanos em importantes centros financeiros globais, como Londres e Nova York, juntamente com um aumento nos empréstimos dos bancos estatais chineses. Apesar de seus papéis assumidos como vigilantes das finanças globais, o FMI e o Banco Mundial também incentivaram esses empréstimos e não soaram o alarme sobre essa crescente fonte de endividamento, concentrando-se mais na dívida emitida em moeda estrangeira. Em 2015, os governos africanos receberam 32 bilhões de dólares em empréstimos, mas estavam pagando 18 bilhões em juros por ano, com as suas dívidas continuando a aumentar.
A inadimplência de Moçambique em 2016 ocorreu quando montantes substanciais de dívidas não divulgadas anteriormente foram expostos, destacando os vínculos externos da declinante situação financeira do país e a falta de supervisão nas negociações com investidores privados. Em um caso proeminente de 2013 e 2014, um banqueiro sênior do Credit Suisse assinou um contrato de empréstimo de 850 milhões de dólares com o empresário franco-libanês Iskandar Safa. O empréstimo foi designado para a construção de uma força de patrulha costeira e uma frota de pesca de atum em Moçambique. Um total de 17 milhões de dólares em comissões foi concedido aos bancos, e os 836 milhões restantes foram canalizados para a Abu Dhabi Mar, uma empresa ligada à família Safa e sediada nos Emirados Árabes Unidos. O banqueiro do Credit Suisse deixou o banco logo após os negócios e arrumou um emprego sob o comando de Safa.
Essa controvérsia deixou o Moçambique sobrecarregado com projetos econômicos incompletos e empréstimos pendentes. Após a aquisição do Credit Suisse pelo UBS, a instituição pagou centenas de milhões de dólares em acordos e perdão de dívidas. Dois fundos de hedge, o VR Capital Group e a Farallon Capital Partners, também iniciaram processos contra o Credit Suisse e o governo moçambicano por seus papéis no esquema. Além disso, o banco de investimentos russo TVB Capital pagou mais de 6 milhões de dólares à Comissão de Valores Mobiliários por seu envolvimento, enquanto Moçambique continua buscando US$ 3 bilhões em compensações de Safa.
Os efeitos da COVID-19 nas cadeias de suprimentos e nos gastos já haviam enfraquecido a estabilidade financeira da África, e a invasão russa da Ucrânia em 2022 exacerbou ainda mais a situação. Os EUA aumentaram rapidamente as taxas de juros, fazendo com que os investidores internacionais começassem a se desfazer da dívida em moeda local em favor de títulos denominados em dólares. Isso levou à desvalorização das moedas locais e ao aumento dos custos de pagamento da dívida com o aumento da inflação.
Esses efeitos foram sentidos em toda a África. Uma reunião em 2023 em Nova York entre as principais autoridades financeiras da Nigéria e os credores ocidentais destacou os desafios financeiros da Nigéria. Em 2022, os pagamentos da dívida do país superaram sua receita em quase US$ 1 bilhão, exigindo mais empréstimos para cumprir as obrigações de pagamento existentes para a maior economia da África.
O financiamento do FMI tem sido parcialmente dependente do compromisso do governo nigeriano de remover os subsídios de 50 anos aos combustíveis em favor de gastos com infraestrutura de energia e transporte, educação e saúde. As medidas pressionaram ainda mais a inflação e o aumento do custo de vida, levando a protestos significativos em todo o país. Historicamente, a corrupção local, aliada à corrupção de empresas de energia ocidentais, como a Halliburton, o envolvimento de políticos como Dick Cheney e a cumplicidade de bancos como o HSBC, juntamente com a influência crescente da China, levou à concentração de grande parte da riqueza de recursos da Nigéria para alguns poucos e seletos beneficiários.
Os credores multilaterais, como o FMI, tiveram intervenções bem-sucedidas no passado, incluindo na Coreia do Sul (1997), México (1995) e o trabalho com o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) na Colômbia de 1999 a 2001. A China também conseguiu socorrer vários países nos últimos anos.
Mas é fundamental observar que, nesses casos, os países beneficiários já eram aliados e parceiros comerciais estabelecidos, desfrutando de acesso privilegiado aos mercados e a subsídios anteriores que reforçaram seus setores. Além disso, foram feitas críticas à condicionalidade da assistência, que aumentou a influência dos países e instituições credoras sobre as economias locais.
Será difícil determinar a eficácia geral da assistência à Ucrânia enquanto o conflito estiver em andamento e a reconstrução estiver atrasada. No entanto, chamou-se a atenção para o fato de que a dívida crescente da Ucrânia está sendo usada como alavanca pelos investidores para aumentar as privatizações e a liberalização em toda a economia. A crescente dificuldade da Ucrânia em garantir financiamento e assistência apenas destaca a falta de uma estratégia de longo prazo por parte dos credores e a fragilidade da situação do país.
Os países em desenvolvimento estão agora enfrentando uma nova crise da dívida exacerbada pela corrupção em vários níveis, envolvendo partes concorrentes e maximizadoras de lucros. Sem esforços coordenados e abrangentes, a assistência internacional corre o risco de continuar o ciclo de arrastar alguns países de uma crise para outra.
(*) John P. Ruehl é um jornalista australiano-americano que vive em Washington, D.C., e é correspondente de assuntos mundiais do Independent Media Institute. É editor colaborador da Strategic Policy e colaborador de várias outras publicações sobre assuntos estrangeiros. Seu livro, Budget Superpower: How Russia Challenges the West With an Economy Smaller Than Texas‘, foi publicado em dezembro de 2022.
(*) Este artigo foi produzido pelo Economy for All, um projeto do Independent Media Institute.
(*) Tradução de Raul Chiliani.