Os protestos provocados pelas recentes reformas patrocinadas pelo FMI no Quênia não demonstram sinais de abrandamento. As manifestações começaram em junho, quando o presidente do Quênia, William Ruto, propôs taxações sobre bens essenciais, como alimentos, assistência médica e combustível, de acordo com as reformas no orçamento apoiadas pelo FMI. Em resposta, a polícia queniana recorreu a uma repressão brutal, prendendo manifestantes e atirando contra as multidões. Pelo menos 60 pessoas foram declaradas mortas, além de inúmeras alegações de sequestros e torturas pela polícia. Desde então, Ruto retrocedeu em suas reformas em um esforço para conter uma crescente crise de legitimidade. Ainda assim, os manifestantes continuam exigindo que ele renuncie.
Os eventos no Quênia devem servir como um alerta sobre a crise da dívida global e a inadequação dos empréstimos multilaterais para romper o ciclo da dívida.
No ano passado, o Quênia gastou quase 60% de sua receita somente com o pagamento da dívida. Embora muitos culpem a China pelos problemas de endividamento do Quênia, as dívidas do país com os credores multilaterais são quase o dobro de seus empréstimos com todos os credores bilaterais combinados. Mas a crescente dependência do país em relação aos credores multilaterais não permitiu que ele escapasse dos ciclos viciosos de endividamento.
Em 2021, a resposta do FMI à devastação econômica causada pela pandemia da COVID-19 incluiu a emissão de 650 bilhões de dólares em Direitos Especiais de Saque (SDRs).[1] Os SDRs podem ser considerados uma espécie de moeda que o FMI emite para seus países-membros. Eles constituem o apoio mais significativo que os países em desenvolvimento receberam do Fundo desde o início da pandemia da COVID-19. Os SDRs proporcionaram aos países em desenvolvimento, incluindo ao Quênia, um alívio imediato e incondicional. O Quênia recebeu 738 milhões de dólares da emissão de SDRs do FMI para 2021, que foram usados para apoiar os gastos públicos durante a pandemia, inclusive para o financiamento essencial da saúde pública e da proteção social. No entanto, a alocação baseada em cotas do Quênia não foi nem de longe suficiente para atender às suas necessidades de gastos.
Naquele mesmo ano, o Quênia firmou um acordo adicional para obter um empréstimo de 2,4 bilhões de dólares do FMI, sujeito a certas condições em termos de política pública nos três anos seguintes. Desde então, esse valor foi aumentado para 3,6 bilhões de dólares. Como parte do acordo, o Quênia está sujeito a revisões periódicas do FMI. Em janeiro, o Fundo aconselhou ao Quênia aumentar a arrecadação de receitas por meio de impostos e, duas semanas antes do início dos protestos, endossou um programa de tributação regressiva. O FMI também vem promovendo processos de privatização desde 2023, concentrando-se na venda de empresas estatais de energia e manufatura.
Os empréstimos multilaterais não ajudam os países a se livrar das armadilhas da dívida
Em agosto passado, mais de um terço dos países do mundo estava enfrentando problemas de endividamento; alguns especialistas consideram que estamos no meio da “pior crise de endividamento global de todos os tempos”. Em média, as economias emergentes e em desenvolvimento alocam 42% das suas receitas para os serviços da dívida. Os índices de dívida em relação ao PIB nessas regiões são superiores a 55%.
Os empréstimos multilaterais nem sempre são concedidos em condições favoráveis. Durante os primeiros cinco meses da pandemia da COVID-19, mais de 90%[2] dos empréstimos do FMI para países emergentes e em desenvolvimento não eram subsidiados. Além do pagamento de juros e outras taxas, o FMI impõe sobretaxas onerosas aos países altamente endividados. Este ano, o Quênia entrou para a lista crescente de países que pagam sobretaxas do FMI. Isso coloca a taxa de empréstimo do FMI para o Quênia em mais de 7%[3]. Na próxima década, o Quênia pagará ao FMI cerca de 174 milhões de dólares somente em taxas de juros. O sistema baseado em cotas do FMI cria um problema duplo: os países que enfrentam necessidades financeiras significativas recebem relativamente pouca assistência antes de atingirem o limite de suas cotas[4] e serem submetidos a taxas adicionais.
Os empréstimos multilaterais não ajudaram os países a se livrarem das armadilhas da dívida que enfrentam. No Quênia, o apoio multilateral permitiu que o país evitasse por pouco a inadimplência. Embora isso tenha permitido que o Quênia mantivesse suas reservas arduamente conquistadas, agora ele tem de pagar taxas cada vez mais punitivas aos credores privados. Recentemente, o Quênia usou um empréstimo do Banco Mundial para liquidar um pagamento de 500 milhões de dólares de um Eurobond com vencimento em junho. Em seguida, usou os fundos do FMI para trocar um eurobond de 6,875% por uma nova emissão de eurobond de 1,5 bilhões de dólares a uma taxa de juros de 10,375%. Essas taxas de juros superavam em muito as projeções de crescimento, mesmo antes dos protestos, e provavelmente empurrarão o Quênia ainda mais para um ciclo de endividamento.
O Banco Mundial e o FMI advogam pelos mercados de capitais como uma ferramenta para financiar o desenvolvimento, mas esses mercados podem ser profundamente irracionais e predatórios. Apesar dos indicadores de sustentabilidade da dívida, os investidores estão mais do que dispostos a emprestar para países com risco de endividamento, contanto que com taxas cada vez mais elevadas. Apenas neste ano, a expectativa de cortes nas taxas de juros do Fed (Federal Reserve, banco central norte-americano) alimentou uma onda de novas emissões de títulos entre os países africanos, e os títulos africanos foram maciçamente procurados, em excesso. A emissão de 1,5 bilhões de dólares do Quênia recebeu três vezes mais propostas do que o valor oferecido, e a emissão de Benin foi seis vezes mais ofertada. Da mesma forma, Camarões emitiu um novo título a taxas de dois dígitos após uma análise do FMI que elogiou sua disciplina orçamentária. No entanto, esse maior apetite dos investidores não resultou em custos de empréstimo mais favoráveis. A África está enfrentando os custos de empréstimo mais altos já vistos em uma década, e os investidores podem esperar que os rendimentos da dívida soberana africana sejam 2,6 vezes mais altos do que os de países com classificação semelhante. Os mercados não podem fornecer as fontes sustentáveis de financiamento necessárias para o desenvolvimento econômico.
Resolução da dívida internacional e o caminho a seguir
A alternativa ao refinanciamento de dívidas nos mercados de capitais é uma reestruturação nos termos do Quadro Comum do G20. Esse é um processo lento e doloroso; a reestruturação da Zâmbia de acordo com esse quadro levou mais de três anos. Depois que os credores privados se recusaram a participar em termos comparáveis, o resultado foi apenas uma extensão dos pagamentos de juros da Zâmbia, sem redução do montante original. Durante esse período, uma seca mortal também causou estragos na economia da Zâmbia.
Muitos países em extrema necessidade de alívios das suas dívidas não se qualificam para o Quadro Comum do G20. O Sri Lanka entrou em inadimplência em 2022, mas não se qualificou para o Quadro Comum e não conseguiu renegociar os pagamentos de sua dívida. O FMI ofereceu 3 bilhões de dólares para resgatar o Sri Lanka de um montante de mais de 30 bilhões de dólares em dívidas, condicionando os fundos à negociação de acordos do Sri Lanka com seus outros credores. Apesar de chegar a um acordo com os credores bilaterais, os credores privados continuam a obstruir a resolução, colocando em risco o resgate do FMI. Além dos bilhões de dólares em pagamentos regulares de juros e do montante original devidos ao FMI, espera-se que o Sri Lanka pague ao Fundo 308 milhões de dólares em taxas extras na próxima década.
Após o início dos protestos, a moeda do Quênia foi desvalorizada, suas classificações de crédito foram rebaixadas e o Banco Mundial cortou suas previsões de crescimento. Os prejuízos causados pelas enchentes deste ano já estão estimados em mais de 300 milhões de dólares. Sem uma ação ousada e imediata, a crise de endividamento empurrará o Quênia e muitos outros países vulneráveis ainda mais decididamente rumo à instabilidade econômica, à agitação social e à vulnerabilidade climática.
A forte recuperação econômica dos Estados Unidos foi apoiada pela expansão dos gastos públicos e por uma política industrial verde intervencionista. Em contrapartida, os credores multilaterais estão respondendo à crise de endividamento que se desdobra no Sul Global com receituários políticos neoliberais fracassados. Não podemos responder adequadamente às crises sem precedentes de nosso tempo com apelos vazios ao crescimento liderado pelo mercado. A escolha que temos diante de nós é clara: podemos abordar as injustiças da arquitetura financeira internacional ou enfrentar um mundo de crescente instabilidade e crise.
Uma nova emissão de SDRs pode proporcionar liquidez crucial aos países em crise. Os SDRs aumentam a credibilidade, reduzem os custos de empréstimos e podem ser usados para pagar os empréstimos do FMI. Eles também podem ser trocados por moeda forte e usados para recomprar títulos. A eliminação das sobretaxas também seria um desenvolvimento bem-vindo e proporcionaria aos países devedores o tão necessário espaço fiscal. Entretanto, para lidar de forma sustentável com a escala da crise atual, será necessária uma reforma mais fundamental da arquitetura financeira global, incluindo um mecanismo internacional de resolução de dívidas que obrigue todos os credores a participarem igualmente de um processo de reestruturação que ofereça alívio real aos países endividados e em dificuldades.