No dia 4 de outubro, a União Europeia (UE) aprovou a imposição de tarifas punitivas sobre as importações de carros elétricos chineses, o que pode significar a intensificação de uma guerra comercial entre o bloco e a República Popular da China, caso a potência asiática responda com medidas recíprocas.
Em julho, políticas semelhantes já haviam sido aplicadas às importações de veículos chineses, com impostos de até 38,1%, mas essas eram medidas temporárias, válidas apenas por alguns meses. As tarifas definitivas entrarão em vigor no início de novembro por um período de cinco anos após a recente votação. Na época, a China lançou como contramedida uma investigação antidumping sobre as importações de carne suína e produtos suínos da UE.
As tensões comerciais entre as partes aumentaram no início de agosto, quando Pequim apresentou uma reclamação formal à Organização Mundial do Comércio (OMC) em resposta à decisão de Bruxelas.
Vale ressaltar que os EUA já haviam aumentado os impostos sobre os veículos elétricos chineses para 100%, indicando a influência de Washington sobre as medidas econômicas do bloco.
Na votação de outubro, a Alemanha, a potência econômica e industrial mais influente do continente, e as montadoras europeias se opuseram às políticas econômicas da UE, mas a Comissão Europeia seguiu em frente usando como justificativa os “altos subsídios estatais da China” e a sua “falta de transparência”.
Quando os resultados da votação foram divulgados, a Comissão disse que havia conseguido o apoio necessário dos estados da UE no primeiro debate. No entanto, não há unanimidade, dado que apenas dez países votaram a favor (França, Itália, Holanda, Polônia, Irlanda, Bulgária, Dinamarca, Estônia, Lituânia e Estônia), cinco contra (Alemanha, Hungria, Eslováquia, Eslovênia e Malta) e 12 se abstiveram (Espanha, Portugal, Grécia, Chipre, Suécia, República Tcheca, Bélgica, Áustria, Croácia, Romênia, Finlândia e Luxemburgo).
A votação dá a entender uma série de coisas:
– A posição de Berlim ficou dividida, já que o vice-chanceler Robert Habeck e a ministra das Relações Exteriores, Annalena Baerbock, propuseram que a Alemanha se abstivesse na votação, enquanto o chanceler Scholz e o ministro das Finanças, Lindner, eram a favor do voto negativo.
– A cautela com que os estados-membros abordam a concorrência chinesa no mercado europeu se reflete no grande número de abstenções.
– Houve uma fratura evidente no eixo franco-alemão e isso refletiu a crescente discrepância entre os 27 membros da UE em relação à ideia de entrar em uma guerra comercial com a China.
Para a economista e pesquisadora espanhola Alicia García Herrero, o plano de impor taxas alfandegárias compensatórias sobre os carros chineses “põe fim a uma era de compromisso entre a UE e a China “, já que Pequim responderá com força às tarifas impostas contra ela.
Assim que a iniciativa foi publicada, veio a resposta chinesa. O Ministério do Comércio reafirmou que implementaria todas as medidas necessárias para proteger os interesses das montadoras chinesas, argumentando que “a decisão da Comissão Europeia carece de qualquer base legal e factual”.
Argumentos e contra-argumentos
O especialista em economia do Deustch Welle, Lars Halter, argumenta que a China subsidiou massivamente a produção de automóveis, mas ele não fornece números exatos para esse suposto apoio. Marcel Fratzscher, diretor do Instituto Alemão de Pesquisa Econômica (DIW), disse no canal alemão ARD que “é indiscutível que os fabricantes chineses desfrutam de vantagens competitivas injustas devido aos enormes subsídios estatais”.
Esses economistas se baseiam em supostas observações, nas quais constatam o favorecimento seletivo de determinados setores industriais, o que cria grande excedente de capacidade produtiva e, portanto, uma redução significativa nos preços finais. No entanto, os argumentos são pouco claros e buscam encobrir o déficit de competitividade da economia europeia. Isso é ilustrado pelas opiniões das principais empresas do setor.
Para a montadora alemã Mercedes-Benz, que pediu o adiamento da medida, “as tarifas da Comissão Europeia sobre os carros elétricos chineses são um erro que pode ter consequências negativas de longo alcance”. A empresa disse ao Global Times que apoia uma regulação comercial liberal com base nas regras da OMC e fez um apelo por diálogo.
Ela disse que a empresa “está convencida de que as tarifas compensatórias prejudicam a competitividade de longo prazo do setor, e que o livre comércio e a concorrência justa garantem a prosperidade, o crescimento e a inovação. Medidas que prejudicam uma ordem comercial baseada nas regras da OMC, que é benéfica para todas as partes, devem ser evitadas com urgência”.
Tanto o governo quanto os fabricantes da Alemanha estão cientes de que uma guerra comercial com a China teria um grande impacto em sua indústria automobilística, um dos setores econômicos mais importantes do país. Mas alguns também reconhecem o poder do país asiático de influenciar o mundo em termos de desenvolvimento tecnológico e inovação.
“Precisamos da China para resolver problemas globais. Isso é particularmente verdadeiro para o enfrentamento bem-sucedido da crise climática. A China desempenha um papel crucial para uma transformação bem-sucedida rumo à eletromobilidade e à digitalização. Um conflito comercial também colocaria em risco essa transformação”, disse Hildegard Müller, presidente da Associação Alemã da Indústria Automotiva, quando as tarifas provisórias foram aplicadas.
Oliver Zipse, executivo-chefe da montadora alemã BMW, descreveu a votação como “um sinal fatal para a indústria automotiva europeia” e exigiu “uma solução rápida para evitar um conflito comercial em que ninguém ganharia”.
O automóvel foi inventado na Alemanha por Carl Benz no final do século XIX. Em 1886, o primeiro modelo com motor a gasolina foi patenteado e tudo indicava que seria um negócio poderoso em escala global. O primeiro automóvel chegou à China em 1901, sem que se suspeitasse que a indústria automobilística daquele país distante se tornaria a mais dura concorrente dos alemães. Em 2023, a China se tornou, pela primeira vez, a campeã mundial de exportação de carros, ultrapassando o Japão e a Alemanha.
A possível resposta da China e as vulnerabilidades da UE diante de uma guerra comercial
A economista García Herrero acredita que a resposta da China às tarifas da UE é mais agressiva que a resposta que ela poderia dar ao valor de 100% aplicado pelos Estados Unidos e pelo Canadá. E isso se deve ao fato de Pequim ter mais influência sobre o bloqueio europeu do que em outras regiões do mundo. Ela ressalta que 55% das exportações chinesas de veículos elétricos vão para a Europa.
Herrero argumenta que a influência da China é inversamente proporcional a duas grandes fraquezas europeias. Primeiro, a UE não consegue se expressar em uma só voz, e depende da China para obter componentes essenciais para a transição digital e energética.
“A situação não melhorou, apesar do plano da UE de reduzir o risco China, ou seja, de gerenciar os riscos associados à subordinação econômica e tecnológica. Pelo contrário, a sujeição da UE à China continua aumentando, enquanto o oposto ocorre para os EUA”.
É mais difícil para a UE ser competitiva se tiver que enfrentar a China e sua impressionante modernização tecnológica, que torna o custo de produção de um veículo elétrico mais barato do que em qualquer outro lugar, mesmo sem levar em conta os subsídios estatais. Dito isso, é compreensível que a UE procure se apoiar em medidas defensivas para se sustentar, na ausência de recursos para aumentar sua competitividade.
E para ser competitiva, a Europa teria que desenvolver um mercado verdadeiramente único. A economista espanhola ressalta que, para atingir esse objetivo, “ela precisaria ser muito mais rápida na construção – e reconstrução – de alianças com outras grandes economias, especialmente no Sul Global”.
No começo de outubro, a China anunciou que tomaria medidas antidumping contra o conhaque importado da UE, o que imediatamente provocou a queda das ações de empresas desse setor como a Hennessy e a Rémy Cointreau. Vale ressaltar que o país asiático é um mercado importante para as vendas e os lucros do conhaque da UE. Pequim alega que essa é uma medida legal para proteger os direitos e interesses legítimos da indústria e das empresas.
Um editorial do Global Times de 10 de outubro aponta que a mídia ocidental exagera o vínculo político por trás das respostas da China, sem considerar a lógica comercial: “As questões comerciais devem ser baseadas em fatos e fundamentos legais, não em motivações políticas”, diz o editorial.
Ele argumenta que, ao contrário da China, que se baseou em uma pesquisa científica que leva em conta as opiniões de todas as partes para aplicar as correções necessárias, no caso da investigação antissubsídios, a Comissão Europeia iniciou o caso sem uma solicitação da indústria da UE, o que claramente vai contra a vontade do mercado.
“Seus objetivos de investigação foram altamente seletivos, excluindo os principais exportadores de automóveis da UE, levantando inúmeras questões de não conformidade, falta de transparência e injustiça”, detalha o editorial, que pergunta: ”Quem está violando os princípios do comércio justo?”
As indústrias europeias estão cada vez mais preocupadas com a possibilidade do desencadeamento de disputas comerciais em grande escala ou até mesmo uma guerra comercial total. O que a UE realmente deveria estar pensando é porquê as preocupações da indústria são tão fortes e quais políticas tornaram a UE tão vulnerável.
A reação das indústrias europeias mostra que a China e a UE não podem e não devem se “dissociar”, nem é viável fazê-lo devido às alianças comerciais históricas.
Em 2023, o comércio entre as partes atingiu 783 bilhões de dólares, com trocas comerciais de quase 1,5 milhão de dólares por minuto em média. O estoque de investimentos bilaterais ultrapassa 250 bilhões de dólares, de acordo com o Global Times, e as empresas de ambos os lados continuam vendo com bons olhos os mercados uns dos outros.
O jornal informa que a confiança mútua nos negócios é tão grande que mais de 90% das empresas europeias pesquisadas planejam fazer da China seu destino de investimentos, e aproximadamente a mesma proporção de empresas chinesas pesquisadas planejam melhorar seus negócios na Europa.
Está claro que as indústrias da Europa estão atrasadas na modernização e otimização de seus processos, e que sua participação na economia global está diminuindo. A UE, contra seus próprios interesses, está se curvando aos desígnios dos EUA, mesmo sabendo que o objetivo é enfraquecer Pequim economicamente e o bloco europeu no processo.