A arqueologia é uma disciplina séria. Quando usada corretamente, pode servir para complementar ou mesmo contestar, oferecendo novas evidências, o registro histórico e enriquecer o registro cultural material dos povos do mundo, bem como prover vislumbres sobre a vida humana em épocas em que o registro humano não havia surgido.
Não é o que fez Zeev Erlich. Israelense, ele se apresentava como um “pesquisador da Terra de Israel” e tinha como missão de vida comprovar uma inexistente legitimidade judaica sobre as terras árabes do Oriente Médio.
Seu último alvo foi o Líbano. O idoso de óculos quadrados e robusto bigode branco vestiu a roupa de explorador e alguns equipamentos militares, se armou e partiu, com as tropas das Forças de Defesa de Israel (ou Forças de Ocupação de Israel), em direção à Fortaleza Shamaa, um castelo histórico na vila de Shamaa, no distrito de Sour, sul do Líbano.
Na vila, descrita como segura pelos soldados israelenses de elite das Brigadas Golani, combatentes do Hezbollah receberam Erlich e a tropa especial que o acompanhava com uma emboscada. O combate durou cerca de 72 horas, entre os dias 17 e 20 de novembro. Ao final, Erlich e os soldados, dentre eles oficiais das forças especiais, foram mortos.
O Hezbollah, citando fontes militares de Israel, disse que “o arqueólogo estava acompanhando o exército sob a responsabilidade do comandante da brigada (Golani) para se ‘familiarizar com a área’”. De acordo com a imprensa israelense, o pseudoarqueólogo queria investigar se a fortaleza era o local de sepultamento de Simão, o Zelote, apóstolo e discípulo de Jesus.
O caso gerou um rebuliço em Israel. Jornais israelenses condenaram o chefe da Brigada Golani, Yoav Yarom, por levar um “civil” para o Líbano. Outros falaram que a presença de Erlich no território em guerra contrariou os regulamentos israelenses. Mas acontece que Erlich era, sim, um militar. O explorador foi oficial de infantaria israelense e oficial de inteligência durante a Primeira Intifada (1987-1993). Ao final da carreira, foi para a reserva como major.
A própria família do falso cientista comprovou a versão. “Ele era completamente reconhecido como um soldado, entrou no Líbano com a aprovação (dos militares) e acompanhado, se bem que para pesquisa arqueológica, como ele sempre fez na Judeia e na Samaria”, disse o irmão de Erich, Yigal Amitai, ao Ynet.
Além disso, mais condenável que a permissão, por parte de Yarom, da visita de um reservista ao território em guerra, é a decisão do próprio Erlich em visitar o terreno invadido – comportamento ilegal do ponto de vista jurídico internacional, colonialista do ponto de vista político e imoral do ponto de vista da arqueologia.
É, de fato, a réplica dos tempos mais remotos dessa disciplina científica, em que exploradores viajavam pelo mundo em expedições colonialistas e saqueavam as riquezas de povos oprimidos para doar a nobres e encher gabinetes de curiosidade – salões onde exploradores e ricos acumulavam objetos “exóticos” (às vezes partes humanas de povos colonizados) para exibir aos aristocratas das crescentes nações imperialistas.
Até hoje, o legado colonialista-imperialista afeta disciplinas como a arqueologia e a paleontologia, impedem o acesso de cientistas de países oprimidos a fósseis de seus próprios países saqueados por nações imperialistas e limitam o conhecimento integral da história natural e humana, como mostram artigos científicos publicados em revistas como a Nature e The Royal Society Publishing (com o perdão da ironia no nome desta última revista).
Com a polêmica derivada da morte de Erlich, muitos sionistas aproveitaram o momento para homenagear o legado do colono. O ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, lamentou a morte. O jornal Israel HaYom o descreveu como um “gigante da arqueologia”.
Por outro lado, veículos e ativistas pró-Palestina aproveitaram para desenterrar o legado sinistro de Erlich.
O explorador israelense foi um dos fundadores do assentamento ilegal de Ofra, no Norte da Cisjordânia, onde viveu grande parte da vida e realizou pesquisas arqueológicas para justificar a ocupação ilegal das terras palestinas.
A formação de Erlich sempre vinculou a doutrina nacional-religiosa com os estudos arqueológicos. Ele passou por uma yeshiva (faculdades religiosas) em Jerusalém e pelas universidades Hebraica de Jerusalém e a norte-americana de herança judaica Touro.
Nas escavações que fez, Erlich sempre nomeou lugares de acordo com as diretrizes bíblicas, para fortalecer a reivindicação do Estado sionista sobre os lugares. Erlich organizou conferências e escolas de campo pela Cisjordânia para tratar sobre a geografia e arqueologia de Judéia e Samaria. O intuito era sempre a falsificação da história em prol da colonização sionista.
Uma particularidade de Erlich é o vínculo que faz entre a arqueologia e o exército sionista. “Foi sua (de Erlich) colaboração única com o IDF que o diferenciou. Durante anos, ele ofereceu sua experiência para ajudar os soldados a entender o significado estratégico de locais antigos, preenchendo a lacuna entre a pesquisa histórica e a necessidade militar”, relata o portal de notícias judaicas JFeed.
Constantemente, Erlich fazia visitas a sítios arqueológicos escoltado pelo Exército sionista – uma prova, por si só, do caráter ilegal e colonialista das expedições. Antes de ir para o Líbano, Erlich foi ao sítio arqueológico de Tell Balata, em Nablus, junto de repórteres do Israel HaYom.
No mesmo mês, militares israelenses mataram um garoto de 17 anos e um homem de idade não relatada na cidade de Nablus e sufocaram camponeses palestinos durante uma colheita de azeitonas. Outros crimes na região foram noticiados pela rede de notícias palestina Wafa.
Os propósitos da pesquisa de Erlich nunca foram científicos, e sim buscar justificar a ocupação e anexação da Palestina por meio da pseudoarqueologia. A tática não é nova: os nazistas também usaram de arqueólogos como Gustaf Kossina para justificar a “pureza ariana” e a legitimidade germânica sobre determinados territórios. O sionismo, por sua vez, sempre buscou usar a arqueologia de forma que priorizasse os patrimônios romanos e judaicos e ignorasse sítios e materiais de dinastias medievais islâmicas, como as dos mamelucos e seljúcidas.
A roupagem da pseudoarqueologia escolhida pelos sionistas foi a de “arqueologia bíblica”. A própria referência à Bíblia era uma estratégia política dos sionistas, apoiada pelos imperialistas da Europa que queriam que os judeus deixassem o Velho Continente, conforme conta o renomado historiador francês Ilan Pappé. “Havia um duplo ganho (na visão bíblica de que os judeus deveriam retornar à Palestina): livrar-se dos judeus na Europa e, ao mesmo tempo, cumprir o esquema divino segundo o qual a Segunda Vinda se daria com o retorno dos judeus à Palestina”, diz ele no livro “10 mitos sobre Israel”.
A estória bíblica diz que Deus prometeu a terra de Israel (Palestina) a Abraão. Que “Israel” existiu até o ano 70, foi demolida pelos romanos, e ficou relativamente esvaziada até 1948. As únicas provas dessa fantasia são fornecidas pela arqueologia bíblica, “em si um conceito oximoroso, pois a Bíblia é um grande trabalho literário, escrito por muitas pessoas em diferentes períodos, e não exatamente um texto histórico”, conforme a ressalva de Pappé.
Apesar do caráter fantasioso, o projeto de Erlich é paulatinamente aplicado pelo regime sionista. Os sionistas planejam, para 2025, a anexação total da Cisjordânia e a criação de assentamentos dentro de Gaza. “O ano de 2025 será, com a ajuda de Deus, o ano da soberania na Judeia e Samaria”, disse recentemente o ministro Smotrich, em referência às áreas escavadas por Erlich durante sua vida.
O jornal Middle East Eye relata que a viagem de Erlich para o Líbano ocorreu dias depois que o ex-diretor de comunicações de Netanyahu, Michael Freund, publicou no jornal sionista Jerusalem Post uma coluna de título “Sul do Líbano é na verdade Norte de Israel”.
O único obstáculo ao projeto, conforme provado na última escavação de Erlich, é o que sempre impediu os projetos colonialistas de avançarem: os nativos, ou povos oprimidos e sua intrépida luta de libertação nacional.
(*) Enrico Di Gregorio é arqueólogo e jornalista. Tem textos publicados no jornal A Nova Democracia, Palestine Chronicle, Monitor do Oriente Médio