No começo desta semana o think tank BESA Center publicou um texto que sustenta que “A destruição do Estado Islâmico é um erro estratégico”, assinado pelo Professor Efraim Inbar (diretor do Think Tank e professor emérito de ciência política na Universidade de Bar-Ilan). O Begin-Sadat Center for Strategic Studies é um think tank que descreve sua agenda como “conservadora, realista e sionista, na busca de paz e segurança para Israel”.
Não é novidade para os que acompanham a geopolítica da região que o crescimento de grupos armados salafistas como o ISIS se deve a estratégia imperialista que teve como prioridade a retirada de Bashar Al-Assad do poder na Sìria. Para além do regime change, existe o objetivo mais ligado à estratégia israelense de criar “zonas sem Estado”, dividir o mundo árabe, deixá-los ocupados demais para garantir a segurança estratégica do regime sionista que se via ameaçado por um novo processo de unificação da resistência (do Irã e movimentos sunitas), tomado pela ansiedade das desproporções demográficas (mesmo depois das ondas de migração massiva, a soma dos árabes que vivem em Israel, com os refugiados e os habitantes dos territórios ocupados, é superior ao número de judeus). A Palestina ficou em segundo plano e as percepções são de que “Israel nunca esteve tão seguro”, como foi apontado na edição passada da Foreign Affairs. Israel ainda compartilha do interesse norte-americano de conter a ascensão da República Islâmica do Irã nos negócios regionais.
O argumento do professor sionista e conservador não surpreende e segue a mesma lógica. Segundo Inbar, o ISIS deve ser “enfraquecido, mas não destruído”. A sua defesa realista dos interesses israelenses consiste em dizer que a existência de um território sobre o controle do grupo terrorista não só concentra suas energias, como dispersa as energias de outros adversários importantes como o estado nacional sírio, o Hezbollah, o Irã e a nova geração de políticos e milícianos do Iraque. O autor também sugere que combater o ISIS é ajudar Assad a vencer a guerra civil, o que não é tão conveniente quanto manter a Síria como um polo que concentra os esforços e energias dos jihadistas.
Ele diz coisas como:
“A brutalidade e a imoralidade do ISIS não deve ofuscar a clareza estratégica”; “Aumentar o controle iraniano do Iraque é congruente com os objetivos americanos nesse país?”; “A derrota do ISIS vai encorajar a hegemonia iraniana na região” e “É do interesse do Ocidente fortalecer a Rússia? (…) Só a tolice estratégica que atualmente predomina em Washington considera positivo aumentar o poder do eixo Teerã-Damasco-Moscou ao cooperar com a Rússia contra o ISIS.”
Até então parece que eu concordo com o texto, só que mantenho uma posição distinta do autor. O que ele chega a reconhecer indiretamente é que são atores como a Rússia, Assad, o Irã e as milícias xiitas que estão de fato combatendo o ISIS e que a política ocidental deve ser a de manter a postura que gerou o caos sírio em primeiro lugar.
É essa lógica que está por trás da aparente vacilação da política externa dos EUA, já que em grande parte do tempo ela trabalhou nesses termos e diversas figuras importantes da política norte-americana conservam essas posições. Não é a toa que John Kerry (atual Secretário de Estado) está sendo chamado de agente russo e algumas sugestões de Trump cooperar com a Rússia causaram um rebuliço capaz de jogar os votos intervencionistas republicanos para Hillary Clinton (a grande intervencionista do Partido Democrata). Ainda assim, apesar dessas “verdades”, devo questionar boa parte da argumentação e dos pressupostos do discurso neoconservador realista, pró-americano e sionista.
Não é nada fora do comum que entre as ideias apresentadas o autor inclua a utilidade do ISIS contra o Hezbollah. Ele diz que a guerra contra o ISIS está ocupando e “custando muito caro” para o partido libanês. Isso não é impressionante: os sionistas detestam e rosnam com o nome do Hezbollah pelo fato de terem sofrido sérias derrotas nas mãos de seu braço armado. Efraim Halevy, ex chefe da famosa agência israelense MOSSAD, em entrevista ao Al Jazeera mostrou muita clareza e compostura ao defender que não via problema algum em Israel tratar, dentro das suas fronteiras, de mercenários da Al Qaeda que lutam contra Bashar Al Assad na Síria, entre outros tipos jihadistas, já que “é uma questão humanitária”. Sua postura já mudou um pouco quando o jornalista perguntou se essas razões humanitárias se aplicariam ao Hezbollah: Halevy explicou que a Al Qaeda nunca atacou Israel, que não são inimigos de Israel.
O problema é que nosso autor agora tenta convencer quem o lê para uma postura tão ativamente anti-Hezbollah quanto a dele, dizendo que se eles vencerem o ISIS vão poder voltar “a fazer reféns ocidentais e outros atos terroristas na Europa”. Primeiro ele tenta trazer para a memória os sequestros de americanos na origem do Hezbollah, nos anos 80, quando existiam tropas norte-americanas no Líbano. Depois ele tenta, de forma bem desonesta, falar num tom genérico sobre “atos terroristas na Europa”. O problema é que nenhuma das duas coisas são características do Hezbollah, em especial a segunda, devido à consolidação do mesmo como movimento político solidamente posicionado no sistema libanês e à frágil paz que existe naquele país e se vê ameaçada pela existência do ISIS e gênios estratégicos como esses pagos pelo BESA Center.
Isso tudo já nos leva para o argumento mais geral de que a presença dos grupos jihadistas na Síria e a consolidação do ISIS num núcleo territorial evita que esses grupos concentrem-se em ataques terroristas no Ocidente. Será?
Quando o autor fala de “atos terroristas do Hezbollah”, ele não explica que até então temos uma explosão de um ônibus de israelenses na Bulgária em 2012 na qual a participação do movimento sequer é comprovada (se não quer reivindicar o atentado então não pretende manter uma campanha de terror propriamente dita) e que no máximo ele pode acusar algumas execuções de indivíduos específicos (que podem ter sido feitas por agentes iranianos), coisa bem diferente dos atentados terroristas massivos dirigidos contra civis aleatórios que agora acontecem na Europa.
Esquecendo a absurda comparação com o Hezbollah, nos resta perguntar porque os atentados recentes não foram evitados pela lógica do Professor Inbar, lógica que obviamente só finge se preocupar com o que é mais danoso e só se preocupa realmente com a segurança geo-estratégica de Israel e com a destruição de todas alternativas geopolíticas à atual ordem mundial. Nós vimos uma intensificação do terrorismo graças ao aumento do fluxos de armas, pessoas e dinheiro. O território controlado pelo “Califado” do ISIS fornece milhões em petróleo diariamente, um centro seguro e uma imã moral para inspirar terroristas do mundo todo. E percebam: quando eu falo do aumento do terrorismo não estou pensando só na Europa, mas no Oriente Médio que não é contemplado pela lógica um tanto racista do autor em questão. Aparentemente as bombas que o ISIS explode no Líbano, na Síria e no Iraque (país que mais sofre com terrorismo, estatisticamente) não contam como um “problema de terrorismo”, tão pouco os massacres cometidos naqueles territórios; o carro bomba que matou 200 pessoas em um shopping de Baghdad (que foi um entre vários ataques dentro de um único mês) ou os 670 prisioneiros xiitas massacrados em Badush no ano de 2014.
Ele mente quando diz que sua abordagem é para “deixar os bad guys se matarem e reduzir dano aos good guys”. A sua visão de xiitas provavelmente não é muito diferente da visão do ISIS: não tem problema se são mortos em massa e aleatoriamente. O mesmo se aplica a cristãos e outras minorias étnico-religiosas da região, ainda que os xiitas sejam os mais afetados. Xiitas são mortos por serem xiitas, executados brutalmente e em massa num processo de limpeza étnico-confessional, e isso é aceitável para o mesmo tipo de sionista (muito comum no nosso Brasil) que frente a qualquer contestação falará em antissemitismo, em seis milhões, em Holocausto, que não se repita e que não deixemos acontecer de novo… o hipócrita que considera o massacre dos xiitas um preço justo para uma estratégia hegemonista.
A rigor essa estratégia não se preocupa nem um pouco com o ISIS ou com suas vítimas (afinal o ISIS também nunca atacou Israel), se preocupa sim em ter um cachorro raivoso devidamente controlado para lutar contra os inimigos que ameaçam a hegemonia americana e sionista (mantenham em mente que Israel assumiu um papel mais importante no Oriente Médio com a retirada americana), de quebra é uma alternativa bem conveniente para a indústria armamentista (não vamos destruir o ISIS, vamos prolongar sua existência e atacar de vez em quando). Esse é um projeto terrorista e esse é o tipo de barbárie que oferecem para o mundo; me parece claro que a ordem internacional que queremos está mais próxima daqueles que são afetados por essa barbárie e não aqueles que querem instrumentaliza-la em nome do seu próprio poder. A conversão do Irã num polo regional pode ser ruim para os humores sionistas e norte-americanos, mas implica o fim do massacre no Iraque e certamente não é tão ruim quanto a hegemonia imperialista construída com base do caos e no terror. O texto realmente aponta de que lado está a paz e a estabilidade, e ela não está do lado do imperialismo.
Segundo o Professor, “estabilidade não é um valor para si e em si mesmo, só é desejável quando serve os nossos interesses”. Favorecer iranianos, russos, iraquianos e sírios não é do interesse deles, então quais serão os nossos interesses senão aqueles ao lado do Eixo de Resistência? O sionista recorre a generalidades como “Assad é um tirano”, “iranianos e companhia não compartilham dos nossos valores democráticos”, “também não são boas pessoas”, mas existem fatos bem claros para qualquer pessoa racional: na Síria de Assad não existe decapitação (que não é exclusividade do ISIS, sendo praticada também por outros grupos como o antigo Jabhat Al Nusra e “rebeldes moderados”), não existe escravidão sexual legalizada na República do Iraque, o Hezbollah não crucifica cristãos e o Irã não faz massacres como os do ISIS. A suposta hegemonia iraniana é sinônimo de paz, estabilidade e o fim desses massacres e atentados. Isso, no entanto, preocupa nosso think tank conservador pois toda essa brutalidade e caos terrorista são o preço necessário para a hegemonia que eles mesmos defendem; contemplem amigos, pois não é todos os dias que vemos um judeu defendendo sacrifícios para Moloch – essa posição não é outra coisa senão arremessar dezenas de milhares de vidas no fogo, incluindo de crianças, em nome de Israel, dos Estados Unidos e da atual ordem econômica ameaçada por qualquer perturbação no imperialismo.
Destruir o ISIS pode ter o efeito de bater em ninho de vespas? Talvez, tudo depende de como as coisas são e serão conduzidas, mas é justamente por isso que uma estratégia para combatê-los deve contemplar as principais forças políticas que atuam diretamente e que eventualmente vão refazer a ordem política na região – os riscos futuros não justificam a realidade presente do caos que é conveniente para alguns e mortal para outros.
Sugestões:
“A Origem do Estado Islâmico: O Fracasso da ‘Guerra ao Terror’ e a ascensão jihadista” de Patrick Cockburn, Editora Autonomia Literária, 2015. (Desconto de 10% usando o cupom OP16).
“A fênix islamista: O Estado Islâmico e a reconfiguração do Oriente Médio”, de Loretta Napoleoni, Editora Bertrand, 2015. (Desconto de 10% usando o cupom OP16).
Links:
http://www.independent.co.uk/news/world/middle-east/baghdad-bombing-attack-isis-islamic-state-iraq-ramadan-shia-most-victims-muslims-killed-a7120086.html
http://www.voltairenet.org/article186327.html The incredible US “peace plan” for Syria
http://www.voltairenet.org/article187601.html How Israel wants to restart the war in the Levant