Em julho do ano passado começavam a emergir, nos jornais norte-americanos, as primeiras acusações de que os russos teriam levado a cabo uma “conspiração” para eleger Donald Trump presidente dos Estados Unidos.
Em dezembro, conhecemos os termos “pós-verdade” e”fake news” (notícias falsas), apontadas como causa para a vitória do republicano em novembro. Também naquele mês as manchetes reportavam que alguns oficiais (anônimos) disseram que a inteligência do país tinha provas de que a Rússia havia tomado parte nas invasões aos emails do Comitê Nacional Democrata, posteriormente publicados no Wikileaks.
Na virada do ano, Obama anunciou uma série de sanções, incluindo a expulsão de 35 diplomatas russos, pelo país supostamente ter participado das invasões. Foi também aí que o primeiro relatório de uma agência de inteligência sobre o assunto foi publicado.
Em 6 de janeiro, o FBI, a CIA e a NSA publicaram um relatório extrapolando as acusações: os russos não só teriam tomado parte nas invasões para prejudicar Hillary e eleger Trump, como Putin também havia coordenado pessoalmente os esforços, que não incluíam só a invasão ao Comitê Nacional Democrata, mas também uma campanha de mídia por meio dos sites Sputnik e RT, e uma campanha nas redes sociais com usuários pagos.
E assim chegamos ao dia 10 de janeiro, data em que alguns veículos, como o BuzzFeed e CNN, noticiaram um relatório alegando que o governo russo estaria “cultivando, apoiando e ajudando” Trump por pelo menos cinco anos, com o objetivo de “criar divisões na aliança ocidental”. Além disso, os russos teriam informações prejudiciais, como gravações de Trump contratando prostitutas para urinar em sua frente na mesma suíte ocupada anteriormente por Obama em um hotel de Moscou, e o estariam chantageando com esse material para que seus interesses no Leste Europeu fossem assegurados.
Efetivamente, o que ocorre é que a imprensa e as agências de inteligência passaram os últimos seis meses acusando os russos por intervirem nas eleições norte-americanas, e, até o momento, não apresentaram qualquer prova (confira o “guia para entender a polêmica dos ‘hackers russos’“). Ainda que sem evidências, têm feito acusações cada vez mais graves.
Isso porque, quando as matérias foram publicadas, não se sabia nem ao certo a origem do relatório. Alguns diziam que tratava-se de um anexo ao relatório do dia 6 de janeiro, outros diziam que era um levantamento feito por um ex-espião britânico, cuja identidade era desconhecida, a pedido do Partido Democrata. De acordo com o próprio BuzzFeed, que publicou o documento na íntegra para que seus leitores “decidam por si mesmos” (atitude ainda mais irresponsável do que a da CNN, que não revelou detalhes), as informações haviam circulado por meses entre jornalistas, políticos e oficiais de inteligência – e, meses após, sem ninguém ter confirmado nenhuma das informações, decidem publicá-lo.
Mais uma vez confirmamos, portanto, que o alarde pelas “notícias falsas” e a “pós-verdade” é o gemido derradeiro de uma imprensa que perdeu o monopólio da mentira e da propaganda.
De qualquer maneira, apesar da fragilidade das informações, algumas figuras já correram para acusar Trump de “traição à pátria”, o que poderia levá-lo à perda do cargo. É o caso da presidente da ONG “The New Agenda”, Amy Siskind, da escritora Rebecca Solnit, que escreve para a Harper’s Weekly, e do co-fundador do site Vox, Markos Moulitsas.
Em 13 de dezembro do ano passado publiquei um artigo com as seguintes teses: 1 – o establishment norte-americano, por meio da polêmica dos hackers russos, planejava escalar a tensão com o país. 2 – Planejava também, por meio dessa polêmica, enterrar o mais relevante no caso: o conteúdo dos emails vazados pelo Wikileaks. 3 – Tentavam negar que Hillary tenha sido derrotada por ser a candidata das elites, dos drones, da guerra e da intervenção. 4 – O futuro dos EUA seria decidido após as eleições, e não por elas. 5 – O establishment tentava abrir caminho para uma derrubada de Trump, com uma possível subida de Pence ou até Hillary.
Um mês depois, todas as teses se confirmam. 1 – Chegamos à expulsão de 35 diplomatas russos. 2 – Nunca mais vimos, na imprensa norte-americana, matérias sobre os emails de Clinton – aliás, até o momento, não há nenhuma proposta no sentido de realizar uma investigação interna no Partido Democrata da campanha de Hillary (sequer de Bernie Sanders, maior prejudicado pelas movimentações clintonistas, que tem ido à imprensa concordar com a tese da “invasão russa”). 3 – A sugestão de que Trump ganhou pelo apoio da Rússia já foi feita centenas de vezes. 4 e 5 – Como já foi dito, já se fala em “traição”.
Engana-se quem pensa que essas acusações não têm surtido efeito. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Quinnipiac, no dia 13 de janeiro, revela que 55% dos eleitores creem que a Rússia interferiu nas eleições americanas. Outra, realizada três dias antes, sugere uma queda de popularidade de Trump, que no final de novembro era de 44%, e que agora está em 37%. Movimentos naturais em um país onde 4/5 da população vê a Rússia como uma ameaça.
Talvez como resposta a isso, Trump “admitiu”, na última quarta-feira, a possibilidade da Rússia ter sido responsável pela invasão ao Comitê Nacional Democrata, e já começou a falar da possibilidade de “não se entender” com Putin. Disse também que manterá as sanções aplicadas por Obama no mês passado por algum tempo, e que as cancelará se a Rússia “fizer um bom trabalho” no combate ao terrorismo. Trata-se da primeira vitória do novo Macartismo, que finge se espantar com devaneios sobre prostitutas e políticos mas, dia após dia, nos empurra para mais perto de um futuro de tempestades de urina incendiária.