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Ciex: A espúria relação do Itamaraty com os porões da ditadura

O Ciex, pouco ou nada conhecido do grande público em geral, foi uma poderosa agência de inteligência nos moldes do M16 e CIA, tutelada pelo SNI.
O Ciex, pouco ou nada conhecido do grande público em geral, foi uma poderosa agência de inteligência nos moldes do M16 e CIA, tutelada pelo SNI. Por Fabiano Post | Revista Opera
(Foto: Diego Baravelli)

Uma elaborada e austera malha de proteção – de desinformação e escamotagem – institucionalizada pelo Ministério das Relações Exteriores, que serviu de cortina de fumaça e supriu de forma eficaz, durante anos, o vazamento de informações sobre a íntima e vergonhosa relação de cooperação e conluio do Itamaraty com o regime militar. Associação essa que sempre foi negada, veementemente, pela instituição máxima da diplomacia nacional.

A luz esclarecedora dos fatos chegou no mês de julho de 2007, a partir da análise de 20 mil páginas de documentos secretos – acumulados ao longo de 19 anos -, e a partir dos quais foram produzidas uma série de reportagens pelo Correio Braziliense, que tiveram no entanto pouca visibilidade na mídia nacional.

Escancarou a inglória e nefasta operação que foi secretamente conduzida nos anos de chumbo no gabinete 410, 4º andar, do anexo I do palácio do Itamaraty, e que colocou em “xeque” os brios da imagem “ilibada” da diplomacia brasileira.

O Ciex (Centro de Informações do Exterior), pouco ou nada conhecido do grande público em geral, ainda hoje, foi uma poderosa agência de inteligência nos moldes do M16 e CIA, tutelada pelo SNI (Serviço Nacional de Inteligência) no âmago do corpo diplomático brasileiro, o Itamaraty, que atuou nas sombras, entre 1966 e 1985.

Seu mentor e criador foi o ultraconservador, conspirador, colaborador da CIA e apoiador do Golpe de 64, o embaixador Manoel Pio Corrêa – ungido e amigo dos déspotas Humberto de Alencar Castello Branco e Golbery do Couto e Silva – que do Uruguai, em 66, onde foi embaixador, engendrou o “plano piloto” do que viria a ser o CIEX.

No mesmo ano, Pio Corrêa foi nomeado secretário-geral do Itamaraty. Todo poderoso, trava um caçada “moral”, política e pessoal a diplomatas que considerava “inadequados”, como “pederastas, bêbados e vagabundos” – o poeta Vinicius de Morais foi uma das vítimas – e leva a cabo a materialização de seu sonho ultranacionalista; o Centro de Informações do Exterior, através de portaria¹, oficialmente batizado de Assessoria de Documentação de Política Exterior (ADOC).

Para saber mais sobre a personalidade do “pai do Ciex”, vale a leitura esclarecedora de seu livro de memórias, “O mundo em que vivi”, onde Pio escancara sua caixa de pandora pessoal com a soberba e empáfia típicas dos reacionários.

Mais do que um simples órgão de informação, o Ciex foi o aparato de repressão, da ditadura, responsável por espionar, no exterior, os brasileiros exilados e banidos pelo regime militar; políticos, militares, intelectuais, guerrilheiros, estudantes, que tiverem seu ir e vir, fora do país, monitorados de perto, passo a passo.

João Goulart, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso, Brizola – considerado extremamente perigoso, foi o exilado brasileiro mais monitorado – Miguel Arraes, Darcy Ribeiro: são essas algumas das personalidades vítimas da rede de espionagem do Itamaraty.

As missões dos arapongas da diplomacia incluíam “repatriação involuntária”, através de sequestro, e “delivery na bandeja” dos asilados nas mãos de seus algozes, para depoimentos e longas e sádicas sessões de tortura.

Constam nos arquivos do Ciex o nome de pelo menos 64 dos 380 cidadão brasileiros vítimas², mortos ou desaparecidos durante os anos de chumbo no Brasil. Foi uma atroz “caça as bruxas” patrocinada pela diplomacia brasileira.

Para tanto, se fez valer do recrutamento e aliciamento de diplomatas, agentes e informantes para compor sua ampla malha de atuação no exterior, que se estendia da América Latina, passando pela Europa, antiga União Soviética e norte da África.

Como pré-requisito eram muito “bem vindos” diplomatas – com viés “traíra” – que promoviam perseguições políticas em embaixadas brasileiras, que tivessem curso de planejamento estratégico da ESG (Escola Superior de Guerra), ou treinamento de agente da ESNI (Escola Nacional de Informações).

Consta que os diplomatas “espiões” eram malquistos entre os seus, porém subiam rapidamente na escadaria hierárquica da diplomacia tupiniquim, cortando caminho por “lamberem coturno”. Nos corredores do Itamaraty, existia uma espécie de hierarquia de “castas diplomáticas”, sub-dividida em três grupos distintos.

Os diplomatas “destiladores da quinta essência”, “doutos” e aplicados em temas jurídicos, politica internacional e defesa comercial; a baixo deles, os chamados “estivadores”, ou burocratas, atolados em toneladas de papel; e por fim, um degrau a baixo, chafurdando na lama, se encontravam os “lixeiros”, o pessoal capitaneado para o trabalho de informação e contra-informação, a arapongagem.

Os malfadados espiões jogaram no lixo as mais pétreas tradições da diplomacia internacional, com a sistemática prática de ações extralegais, onde deliberadamente violaram o direito internacional e o princípio da soberania, fazendo o monitoramento de cidadão estrangeiros, contrários ao Estado de exceção no Brasil, em seus países de origem.

O grande diferencial do “modus operandi” do Ciex versus seu tutor “bronco”, o SNI, era a sua abordagem sofisticada no campo da espionagem, muito por conta do nível intelectual e cultural de seus colaboradores e de uma ampla e sólida noção hierárquica – o contexto em que estava imersa ia além da simples operação de espionagem. Uma teia simbiótica sofisticada de informações, contra-informações e intrigas extremamente bem elaboradas tornavam as operações quase sempre um grande sucesso.

Os integrantes do Ciex faziam os agentes da SNI parecem ordinários guardas de trânsito. Em sua “távola hermética” os espiões do Itamaraty acreditavam compor uma elite de espiões dentro do aparato de informação da repressão.

É inegável que o alto escalão do Itamaraty sabia de tudo o que acontecia. Isso quer dizer que figuras bem dimensionadas de nossa diplomacia, reconhecidas internacionalmente, foram coniventes com a barbárie e respaldaram em níveis diferentes as operações ilegais do Ciex. O que contraria ética e moralmente aquilo que se espera e deseja do corpo diplomático de um país; uma ferramenta fomentadora da paz.

Coube ao embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima – secretário-geral entre 1985 e 1990 – salvaguardar da destruição, a contra gosto do SNI, o constrangedor material – uma chaga aberta da diplomacia nacional – composto por 32 arquivos com 8 mil informes.

Aqui consta uma lista de “distintos” diplomatas brasileiros colaboradores, ex-membros, do alto escalão do Ciex.

Interpretar empiricamente o turbulento momento político-econômico-social, pelo qual o país atravessa, se faz necessário. A quimera trevosa do autoritarismo novamente espreita a nação partida, e ameaça a nossa democracia com “esperanças” vazias. Nessa horas nebulosas as instituições fragilizadas, em bico de sinuca, se tornam alvo fácil para o aparelhamento ideológico austero e com finalidades vis.

Que sirva de alerta e lição o lamentável e vergonhoso episódio histórico ocorrido no tutano da diplomacia brasileira, através do Ciex. Que estejamos atentos e cientes sobre os impactos profundos, para o bem e para o mal, que nossas escolhas políticas – no conjunto da sociedade – podem ter sobre nossas vidas; afinal, a democracia não vive de trivialidades tampouco admite desaforos.

Notas:

1. O documento de classificação ultrasecreto sobre a criação do Ciex se encontra em um cofre colossal no subsolo do Itamaraty, segundo apurou o Correio Brasiliense com ex- integrantes do órgão.

2. O número oficial de vítimas – entre mortos e desaparecidos – segundo o relatório final da Comissão da Verdade seria de 434 pessoas. Algumas fontes dizem que esses números são bem mais expressivos, mas de difícil investigação, e que não foram contemplados pela CNV.

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