Nada está perdido para História – Uma introdução
Nos últimos anos venho me dedicando a estudar a história das experiências socialistas. Muitos amigos me questionam o sentido e a atualidade desse esforço teórico e político. Eu estou convencido que uma nova onda de revoluções, como a que vivemos em alguns períodos do século XX, passa por refazer um balanço histórico do século passado e da Modernidade Burguesa de forma geral. Não digo isso numa relação de causa e efeito direta. Melhor colocando a questão: estaremos melhor posicionados para uma nova ofensiva proletária-socialista se, no campo da história, destruirmos a hegemonia da classe dominante.
Dito isso, é necessário olhar com desconfiança todos os consensos historiográficos do século XX. E esse “olhar desconfiado” tem uma razão de ser muito concreta: fomos derrotados no século XX e, como fruto dessa derrota, a classe dominante e seus intelectuais tornaram hegemônica sua versão histórica do que foram as experiências socialistas e o movimento operário. A reconstrução da identidade comunista e a recuperação do nosso passado tem como fundamento não tomar nenhum tema como esgotado em debates e reflexões.
O XX Congresso do PCUS é um desses temas que deixou há décadas (mesmo enquanto ainda existia o “campo socialista” e a URSS) de produzir reflexões críticas e sistemáticas sobre seu significado histórico e implicações políticas. O aparente consenso e “fim do debate” em torno desse “episódio” fundamental da história soviética produz um empobrecimento gigantesco da discussão e cria terreno fértil para a propaganda anticomunista e a mitificação.
Meu objetivo com esse artigo é abordar o que considero ser os elementos principais para entender o significado histórico e político do XX Congresso, à luz dos seus efeitos históricos mais de cinco décadas depois. A direita e os “humanizadores do capitalismo” leem o XX Congresso como a essência relevada do horror intrínseco ao processo revolucionário proletário, e Stálin, o “denunciado”, a reencarnação do mal, ou, melhor, o gêmeo piorado de Hitler. O XX Congresso fornece, nessa visão, prova inconteste dessa narrativa, já que até o PCUS reconhece os “crimes cometidos em nome do comunismo” (O Livro Negro do Comunismo é consequência esperada dessa perspectiva).
Já muitas correntes do marxismo captam o XX Congresso como uma autocrítica necessária da autocracia stalinista (ou ditadura stalinista) e uma tentativa de abertura política e cultural, contudo, grosso modo, veem essa abertura como falida ou insuficiente. A desestalinização seria um processo essencialmente positivo pois rompe (ou tenta romper) com os elementos antissocialistas do “regime de Stálin”. O que existe de comum nessas duas coordenadas gerais de análise por onde transitam diversas gradações? A perspectiva do XX Congresso como um elemento essencialmente positivo e necessário: seja para revelar o verdadeiro horror que é o comunismo, seja para superar (ou tentar superar) a autocracia stalinista.
Tenho avaliação diferente da segunda perspectiva e totalmente antagônica da primeira – como se deve imaginar. Mas não irei agora, na introdução, explicitar a nossa análise do XX Congresso. Quero apenas, à guisa de conclusão dessa introdução, indicar a divisão e os elementos que vão compor esse artigo.
Primeiro mostrarei como o XX Congresso foi um divisor de águas na visão que o mundo tinha da URSS e de Stálin e na estratégia que a ideologia dominante adotava no enfrentamento ao comunismo; depois abordarei elementos da disputa em torno da sucessão de Stálin e os motivos do conteúdo e da forma do “Discurso Secreto”, e, por fim, demonstrarei como o XX Congresso foi fundamental para a estratégia do imperialismo de destruição do movimento comunista e para o enfraquecimento do socialismo soviético. Por fim, cabe aclarar que não nos debruçaremos sobre o conteúdo do “Discurso Secreto”. Meu objetivo é apenas analisar suas consequências políticas e ideológicas na luta de classe em escala mundial.
De campeão em liberdade a inferno totalitário: a metamorfose da imagem da URSS e de Stálin após o XX Congresso
A Revolução Russa abalou o mundo. Décadas depois da Comuna de Paris, os trabalhadores voltam a assaltar o céu, mas dessa vez não apenas por alguns meses. A Rússia vermelha consegue resistir à contrarrevolução e à Guerra Civil. No bojo da Revolução de Outubro, temos uma onda de criação de partidos comunistas por todos os cantos do mundo, a organização de uma nova internacional (a Internacional Comunista ou Terceira Internacional) e uma renovação do marxismo, combinada com sua propagação e apropriação para trabalhadores e trabalhadoras que, até o grande Outubro Vermelho, talvez nunca tivessem sequer ouvido falar de comunismo, Marx ou Revolução.
Da vitoriosa revolução em 1917 até a Segunda Guerra Mundial houve intensas disputas no campo do marxismo sobre os destinos da URSS, e algumas delas geraram rachas e dissidências de proporções importantes, embora minoritárias (como a criação do trotskismo) ao grupo hegemônico na direção do PCUS (Partido Comunista da União Soviética). As classes dominantes evidentemente nunca deixaram de combater ferozmente a URSS no campo cultural e teórico. Propagandas acusando o país de totalitarismo, negação total da liberdade, canibalismo, complô judeu-bolchevique, barbárie, etc. existiram desde que os bolcheviques chegaram ao poder. Contudo, mesmo com toda essa propaganda negativa, o prestígio da URSS e do comunismo, de maneira geral, estava em crescimento constante.
Sem aprofundar o suficiente nos motivos, pode-se dizer que entre 1917 e 1945 há uma crise geral do capitalismo e da hegemonia burguesa e uma potencialização das possibilidades de crescimento dos movimentos revolucionários no centro e na periferia capitalista. A crise de 1929 e seus efeitos – como os assustadores índices de desemprego –, enquanto a URSS exibia taxas de crescimento econômico acima de 10% com os planos quinquenais, e aumentavam o prestígio dos dirigentes do PCUS.
O livro Uma Nova Civilização, do casal Sidney e Beatrice Webb, escrito de divulgação dos “feitos” do socialismo soviético, foi um sucesso de vendas e público (livro em breve publicado em português pela Editora Baioneta). Jovens e trabalhadores de todo o mundo recebiam notícias de um país que estava acabando com a fome, desemprego, analfabetismo, falta de saúde, garantindo jornadas de trabalho de oito horas, licença maternidade, voto feminino, participação dos trabalhadores na gestão do processo produtivo, etc. É dito com frequência na análise da relação entre a Internacional Comunista, o PCUS e os partidos comunistas do mundo que o PCUS fazia dos PCs correias de transmissão das diretrizes soviéticas, instrumentos de propaganda do regime e braço da política externa soviética. O que pouco se comenta é que muitos desses PCs tiraram (parte de) sua força e capacidade de atração social do efeito encantador que a URSS exercia sobre o mundo.
Podemos perceber isso seguindo a análise de Losurdo sobre a visão que muitos dos intelectuais mais prestigiados do mundo tinham da URSS, do PCUS e de Stálin – o dirigente máximo do Partido. Isaac Deutscher, historiador filo-trotskista, no momento da morte de Stálin escreveu isso:
“No decorrer de três décadas, o aspecto da União Soviética transformou-se completamente. O núcleo da ação histórica do stalinismo é este: ele encontrou uma Rússia que arava a terra com arados de madeira e deixou dona da bomba atômica. Elevou a Rússia ao grau de segunda potência industrial do mundo e não se tratou apenas de uma questão de puro e simples progresso material e de organização. Não se poderia obter um resultado semelhante sem uma vasta revolução cultural, no decorrer da qual mandou para escola um país inteiro para que recebesse uma instrução extensiva.” [LOSURDO, 2010: 10]
O filósofo Alexandre Kojéve considerava Stálin a encarnação do espírito hegeliano no mundo, destinado a unificar a humanidade; Harold J. Laski, grande nome do Partido Trabalhista inglês, era um admirador da URSS e considerava Stálin um homem “muito sábio”; Hannah Arendt, a futura autora de As Origens do Totalitarismo, elogiava a URSS por ter resolvido o problema das nacionalidades, organizando-as com base na igualdade nacional; Benedetto Croce dizia que a URSS e Stálin prestaram uma grande contribuição à causa da liberdade com a derrota do nazifascimo, e afirmava que o “sovietismo foi um progresso de liberdade”; Norberto Bobbio, o famoso filósofo italiano, em 1954 afirmava que a URSS e os Estados socialistas iniciaram uma nova era de progresso civil em países tradicionalmente atrasados e instituíram muitas instituições democráticas faltando “uma gota de óleo [liberal] nas máquinas da revolução já realizada” (LOSURDO, 2010: 11).
Losurdo afirma que mesmo com a Guerra Fria e a Guerra da Coreia em curso, a morte de Stálin, no Ocidente não-comunista ou filo-esquerdista, provocou necrólogos respeitosos e equilibrados. Aliás, voltando um pouco ao período anterior à morte de Stálin, ao fim da Segunda Guerra Mundial, a percepção do mundo era de que a URSS, não os EUA e o “dia D”, tinha derrotado o nazifascismo, e isso provocou o máximo prestígio à “Nova Civilização” (como chamava os Webb) e, consequentemente, ao movimento comunista internacional:
“O partido [comunista] italiano salta de 5 mil membros em 1943 para 2 milhões em 1946; o francês vai a 1 milhão quando tinha 30 mil em 1943. Até mesmo o sempre pequeno partido comunista inglês consegue triplicar seus adeptos: vai a aproximadamente 50 mil filiados entre 1944-1945. Em países mais desenvolvidos, como Áustria, Finlândia, Bélgica, Dinamarca e Noruega, que, agrupados, somavam mais ou menos 100 mil membros, em 1947 já totalizavam 600 mil.” [BRAZ, 2011: 197-198]
Contudo, o prestígio soviético não era expresso apenas no movimento operário. O historiador Tony Judt (2010) relata que ao final da Segunda Guerra Mundial um intelectual conservador que quisesse criticar violentamente a URSS não teria muito espaço nos meios hegemônicos e corria sério risco de ser chamado de fascista. Isso porque a destruição do nazifascismo colocou a URSS como a encarnação de todas as causas progressistas da humanidade: liberdade, democracia, direitos, soberania nacional ,etc. Nessa época a URSS era a campeã de todas essas lutas, como demonstra esse trecho do livro “A crise do Movimento Comunista”, de Fernando Claudín, citado por Braz:
“[…] [o] efeito produzido nos operários e nos povos de todos os continentes pelas vitórias militares soviéticas pode ser comparado ao eco que, em seus primeiros tempos, teve a Revolução de Outubro. Com uma diferença: a União Soviética não aparecia apenas como a encarnação exemplar da revolução socialista – diante de grandes setores sociais alheios ao comunismo, a União Soviética passava a ser um símbolo máximo de todas as causas progressistas, da independência das nações, da paz entre os Estados.” [BRAZ, 2011: 198]
Evidentemente, as críticas à União Soviética, ao PCUS e a Stálin continuavam, à esquerda e à direita. Existia, contudo, um padrão geral dominante nas críticas e avaliações: no vasto campo da esquerda, um balanço positivo do socialismo soviético era dominante, mesmo nas correntes que eram oposição à direção hegemônica no PCUS, e correntes não marxistas, como o trabalhismo, tendiam a manter uma relação de distância respeitosa com o socialismo soviético; na direita, também um vasto campo, a URSS era combatida sem a coragem de considerá-la, como anos depois, como a encarnação da barbárie – e os que assim o faziam ficavam isolados.
O início da Guerra Fria foi o primeiro grande impulsionador dessa mudança. Citando de novo Tony Judt (2010), a partir da Guerra Fria, os intelectuais conservadores conseguiram declarar guerra ao marxismo e à URSS. Se a atitude das classes dominantes dos países capitalistas liderados pelos EUA mudou, o resultado inicial dessa mudança não foi o esperado. A CIA observava angustiada como países centrais na sua estratégia de dominação, como a França, desenvolveram uma cultura política dominada pela esquerda – Quem Pagou a Conta? A CIA na guerra fria da cultura (Editora Record, 2008), da historiadora Frances Stonor Saunders, é a melhor pesquisa que esse historiador conhece sobre a política cultural dos EUA no enfrentamento à URSS e ao movimento comunista.
Como quebrar toda essa popularidade da URSS e do movimento comunista? Ironicamente, foi o próprio PCUS que forneceu a estratégia central ao imperialismo. Durante os anos 30, 40 e 50 do século passado existia, efetivamente, um “culto à personalidade” sobre a figura de Stálin – uma análise sociológica dessa forma de personalismo não será foco de nosso escrito. A imagem do líder do PCUS era fundida numa simbiose personalista com os méritos da construção socialista e com o potencial emancipador do marxismo. No marxismo-leninismo propagado mundialmente pelo PCUS, a expressão da razão revolucionária estava em Marx, Engels, Lênin e Stálin, e esse último foi o líder que por mais tempo esteve à frente da URSS. A imagem da URSS como a encarnação de todas as causas progressistas, como explicitado na citação acima, significava também a visão de Stálin como a encarnação de todas essas causas.
O “Discurso Secreto” (KHRUSHCHEV, 1956) colocava Stálin como um imbecil, monstro sedento de poder, caprichoso, sádico, paranoico e com desprezo total pelos próprios trabalhadores. Contudo, afirmava, numa das operações mais ridículas que a política moderna conhece, que tudo isso foi feito por Stálin sem afetar o caráter de vanguarda operária do PCUS e a “qualidade” do socialismo na URSS. O líder era responsável por todas as monstruosidades e mantinha o poder absoluto, mas, ao mesmo tempo, sua monstruosidade não interferia em nada na credibilidade do marxismo-leninismo, da liderança do PCUS e da validade histórico-política do socialismo.
O novo grupo do poder queria apenas destruir a imagem de Stálin e seus seguidores na cruenta luta pelo poder. O imperialismo e seus intelectuais operaram uma estratégia simples e arrisco dizer até evidente: ampliaram as críticas não apenas à Stálin, mas ao socialismo em si, à URSS, ao marxismo e até a Hegel! – uma tendência reacionária chamada de “Novos filósofos” na França prestou grande contribuição à história da filosofia rastreando a origem do “totalitarismo comunista” em Rousseau e em Hegel.
O filósofo Louis Althusser foi um duro crítico da desestalinização do PCUS devido a dois elementos centrais: a) o PCUS e seus intelectuais promoviam um debate por um viés liberal, culpando o indivíduo, e não analisando a superestrutura soviética e as relações sociais de produção e como o fenômeno do “stalinismo” pôde aparecer e se reproduzir; b) o debate acaba demonizando o período da liderança de Stálin, esquecendo seus elementos revolucionários e emancipatórios:
“Ele [Stálin] teve outros méritos diante da história. Compreendeu que era preciso renunciar ao milagre iminente da “revolução mundial” e, desse modo, empreender a “construção do socialismo” em um só país; e tirou as consequências dessa decisão: defendê-lo a qualquer preço como a base e retaguarda de todo o socialismo no mundo, fazer dele – sob o assédio do imperialismo – uma fortaleza inexpugnável e, com essa finalidade, dotá-lo prioritariamente de uma indústria pesada, da qual saíram os tanques de Stalingrado, que serviram ao heroísmo do povo soviético na luta de vida ou morte para libertar o mundo do nazismo. Nossa história passa também por isso. E, através inclusive das deformações, das caricaturas e das tragédias dessa história, milhões de comunistas aprenderam – ainda que Stálin os ‘ensinasse’ como dogmas – que existiam princípios do leninismo. [ALTHUSSER apud MOTTA, 2014: 63]
Como se pode ver, Althusser não nega as “deformações”, “caricaturas” e “tragédias”, mas não deixa de reconhecer os “méritos diante da história” de Stálin e seu grupo. Palmiro Togliatti, líder e fundador do Partido Comunista Italiano, afirma sobre a postura do PCUS após o XX Congresso:
“Antes, todo o bem era devido às sobre-humanas qualidades positivas de um homem [Stálin]; agora, todo o mal é atribuído a seus defeitos, também excepcionais e assombrosos. Num, como no outro caso, estamos fora dos critérios de julgamento que são característicos do marxismo. Omitem-se os verdadeiros problemas, tais os de como e por que a sociedade soviética pôde chegar a certas formas de afastamento do caminho democrático e da legalidade que ela se havia traçado, e mesmo de degenerescência.” [TOGLITATTI apud RAMOS, 2016:154 – grifos meus]
A análise realmente crítica e equilibrada cobrada por Togliatti e Althusser passou a ser cada vez mais minoritária no campo da esquerda marxista. O imperialismo e seus intelectuais assumem três principais cavalos de batalha: a) assimilação do socialismo soviético ao nazismo e ao fascismo como formas igualmente totalitárias (e a gradual “transformação” dos EUA como os verdadeiros algozes dos nazistas); b) caracterização da URSS como o reino absoluto da barbárie e da não-civilização (joga papel central o livro 1984 de George Orwell, amplamente divulgado e distribuído pela CIA); c) propaganda sobre números fantásticos de mortos e reprimidos na URSS, tornando essa o maior exemplo moderno de repressão, controle e ausência de liberdade.
O filósofo francês Jean Salem, que viveu essa metamorfose da imagem soviética, sintetiza, não sem certo tom de ironia, a questão assim:
“Em 1956 tinha apenas quatro anos de idade. Só mais tarde, naturalmente, ouvi falar do XX Congresso do PCUS. Nos anos 70, era eu membro das juventudes comunistas na França, começou-se a falar cada vez com mais frequência de um milhão, dois milhões, de três ou quatro milhões de vítimas da repressão stalinista, pressupondo-se evidentemente que numa revolução nem todos os mortos são vítimas inocentes executadas por erro.
Entre os anos 70 a 85, ou seja, 30 anos depois do XX Congresso, assistiu-se ao inflacionamento demencial dos números (40 milhões, 60 milhões, etc.), a uma assimilação grotesca do stalinismo ao nazismo, e logo do sovietismo e do socialismo em geral ao nazismo. O que penso é que esta aritmética macabra tem de ser verificada e, evidentemente, desmentida, já que é demasiado extraordinária para poder ser verdade.” [FUNDAÇÃO DINARCO REIS, 2013][1]
As explicações para um suicídio político: a democracia operária restringida e plebiscitária enfrenta a transição do poder
Como pudemos acompanhar acima, o XX Congresso é o combustível perfeito para a fogueira da Guerra Fria e o início da virada de imagem soviética aos olhos do mundo (e, consequentemente, do socialismo). A nova direção do PCUS queria apenas destruir a imagem de Stálin e seu grupo, esperando, numa ingenuidade surpreendente, que as críticas lançadas na sua forma e virulência não fossem apropriadas contra o socialismo soviético em si – “faltou combinar com os russos”, como diz o ditado. Resta explicar as razões dessa disputa.
Para explicar isso percorrerei dois caminhos. Primeiro, categorizarei a superestrutura política, jurídica e ideológica do socialismo soviético, usando a nossa categoria “democracia operária restringida e plebiscitária” como chave analítica para compreender a realidade soviética; posteriormente, abordarei os acontecimentos históricos e políticos que conformam o imediato quadro complexo de sucessão pós-morte de Stálin. Por motivos de economia de espaço, necessariamente, essa explicação terá um quê de superficialidade, contudo, acredito que ela possuirá os elementos fundamentais para apreender o processo histórico.
A Revolução Russa, inicialmente, se configurou como uma explosão de democracia operária de base. Conselhos de fábrica realizando a autogestão, comunas rurais repartindo a terra, conselhos de soldados acabando com as hierarquias militares, subversão dos papéis nas universidades e escolas, etc. Essa pulsão inicial da revolução rapidamente encontrou limites. O primeiro deles, e um dos mais importantes, é que a Revolução Russa não veio acompanhada do estourar do processo revolucionário mundial e a consequência disso foi, primeiro, ter que estabelecer alguns compromissos com o imperialismo alemão; em seguida a guerra civil; e, posteriormente, o cerco permanente e sempre mais intenso do imperialismo contra a União Soviética.
“De fato, seria loucura imaginar que o primeiro experimento histórico mundial de ditadura da classe operária, realizado nas mais difíceis condições – em plena conflagração mundial e em pleno caos provocado pelo genocídio imperialista, preso na armadilha de ferro da potência militar mais reacionária da Europa [Alemanha], em face da completa omissão do proletariado internacional –, que num experimento de ditadura operária em condições tão anormais, tudo o que se faz ou deixou de fazer na Rússia alcançasse o cúmulo da perfeição.” [LUXEMBURGO, 2011: 177]
A democracia operária soviética teve como plano de fundo uma situação de miséria extrema, economia quase totalmente arrasada, atraso secular no campo, ausência de elementos civilizatórios básicos (como letramento para a maioria dos adultos, energia elétrica e banheiro nas casas), conflitos políticos internos com tendências militares e terroristas (seja pela disputa do poder dentro do PCUS; grupos nacionalistas de direita ou simplesmente inimigos do socialismo) e bloqueio econômico, sabotagem, cerco diplomático, ameaça de guerras, etc. Sobre essa terrível situação, normalmente ignorada pelos “críticos” dos problemas da democracia soviética, havia um grupo dirigente controlando o poder no PCUS que mantinha uma concepção extremamente débil sobre o que é democracia operária. A noção dominante no Partido, algo que abarca desde Stálin a Trotski, é que a classe operária exerce o poder prioritariamente através do seu Partido, o Partido Comunista, que monopoliza o poder.
Num raciocínio tautológico, a classe operária está no poder porque o poder está com a sua vanguarda organizada, o Partido Comunista, sendo os mecanismos de democracia de base – que existiam e não eram poucos! – normalmente consultivos. Os comitês de fábrica, associações de bairro, entidades estudantis, culturais e científicas, fazendas coletivas, etc. participavam da política, não com mecanismos diretos de gestão do poder, mas dando sugestões, críticas, contribuições às políticas formuladas e aplicadas e, muitas vezes, como no caso dos sindicatos, esses órgãos serviam como instrumento de resistência quando no caso de discordância aguda com as diretrizes do Estado.
A mediação entre direção política e o conjunto dos produtores não era realizada como deveria, mas os dirigentes soviéticos não deixavam de representar os interesses gerais dos trabalhadores – tomemos esse trecho como fundamento da argumentação:
“[…] O sociólogo americano Albert Szymanski passou em revista uma série de estudos ocidentais sobre a distribuição de rendimentos e o nível de vida soviéticos. Apurou que as pessoas mais bem pagas da União Soviética eram artistas proeminentes, escritores, professores universitários, administradores, cientistas, que auferiam quantias entre 1200 e os 1500 rublos; os diretores empresariais entre 190 a 400 rublos mensais; os trabalhadores cerca de 150 rublos mensais. Consequentemente, os rendimentos mais elevados correspondiam a apenas 10 vezes o salário do trabalhador médio; ao passo que nos Estados Unidos as mais altas chefias empresariais recebiam 115 vezes o salário de um trabalhador. Os privilégios associados a altos cargos do Estado, como lojas especiais e automóveis oficiais, permaneciam baixos e limitados e não contrariavam uma tendência contínua de quarenta anos no sentido de um maior igualitarismo. […] Szymanski concluiu: “embora a estrutural social soviética não possa corresponder ao ideal comunista ou socialista, é ao mesmo tempo qualitativamente diferente e mais igualitária que a dos países capitalistas ocidentais. O socialismo representou uma diferença radical em favor da classe trabalhadora.” [KEERAN; KENNY, 2008: 13-14 – grifos meus]
O corpo dirigente soviético mantinha uma preocupação constante com a legitimidade social do Partido. Contudo, o desenrolar dos processos históricos, especialmente o agudo confronto pelo poder nos anos 30 – sendo os famosos “Processos de Moscou” o episódio mais dramático – e a Segunda Guerra Mundial, aumentaram essa tendência a uma fortíssima centralização dos mecanismos decisórios na cúpula do Estado e aos órgãos de democracia de base serem cada vez mais consultivos e em muitos momentos se comportarem como correia de transmissão da política estatal. Vejamos.
A “revolução pelo alto”, como normalmente se chama o processo de industrialização acelerada e coletivização forçada, foi tomada numa virada mais ou menos brusca na linha política do PCUS. Não houve, como deveria, massivos debates sobre essa política e não é possível dizer que houve um amplo movimento das bases operárias na sua formulação, contudo, na sua aplicação, tivemos um efetivo apoio e mobilização popular – especialmente nos operários urbanos e juventude – e não se compreende a rápida e hercúlea industrialização soviética sem estudar o papel das campanhas de trabalho voluntário (um sucesso!) e a chamada “emulação socialista”: a competição pelos trabalhadores de vanguarda para bater as cotas de produtividade. A direção do PCUS contava efetivamente com ampla mobilização popular na concretização de suas diretrizes políticas e na imensa maioria dos casos, os trabalhadores respondiam positivamente às campanhas de mobilização com entusiasmo genuíno, como podemos ver nesse relato de uma jornalista dos EUA citado por Ludo Martens:
“Para suprir a falta de braços, dezenas de milhares de pessoas, empregados, estudantes, professores, faziam trabalho voluntário durante os seus dias livres. Todas as manhãs, às seis e meia, vemos chegar um comboio especial, dizia M. Raskin, engenheiro americano destacado em Khárvov. Vinham com bandeiras e charangas, todos os dias chegava um grupo diferente, mas sempre alegres. Metade do trabalho não especializado foi efetuado por voluntários.” [MARTENS, 2008: 46]
Outro expressivo exemplo é que os primeiros planos quinquenais tinham como foco a indústria pesada e o setor militar. Essa escolha política, totalmente acertada como mostra o desenrolar da Segunda Guerra Mundial, teve como uma de suas consequências dificuldades habitacionais e certa deficiência no setor de produção leve e consumo de massa. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, os planos econômicos passaram a melhorar de sobremaneira a qualidade da indústria leve, setor de serviços e aprimorar as moradias populares. Isso não aconteceu porque em votações através dos vários organismos de base essa foi a decisão soberana, mas sim porque os organismos de base manifestaram essa necessidade e o corpo dirigente, onde estava o poder de decidir em última instância, adotou a vontade popular.
Por exemplos como esse é que chamamos o sistema político soviético de democracia operária restringida e plebiscitária. Restringida porque os organismos de base não conformavam uma rede de poder de baixo para cima, mas institutos consultivos que, embora influenciassem na formulação e tomada de decisões políticas, não tinham, em última instância, o poder instituído decisivo, e, ao mesmo tempo, plebiscitária porque a aplicação das políticas soviéticas dependia quase sempre de ampla mobilização popular e apelo ideológico, sendo eles fundamentais para o seu sucesso ou não – o que explica, em muitos aspectos, a redução dos índices de desenvolvimento soviético a partir do final dos anos de 1960.
Uma das consequências mais nefastas dessa democracia operária restringida era que as tendências políticas e ideológicas existentes no seio do PCUS depois dos anos 30, normalmente, não chegavam ao conhecimento do grande público. É claro que essas tendências tinham seu lastro real na dinâmica da sociedade soviética, mas a forma como elas se apresentava na disputa pelo poder e direcionamento do socialismo no seio do Estado era distorcida e mediada por canais excessivamente burocráticos.
Para os estudiosos da sociedade soviética, Keeran e Kenny (2008: 20) existia dentro do PCUS, em grandes linhas, duas tendências políticas e ideológicas: uma pequeno-burguesa, que defendia um avanço lento do socialismo, prioridade na indústria leve e no consumo como critério de bem-estar social, manutenção/alargamento do papel da propriedade privada no desenvolvimento econômico e redução do papel do Partido na condução política; e outra proletária, que advogava prioridade na indústria pesada e de bens de produção, fortalecimento da planificação econômica, combate permanente às relações de produção privadas, consumo de bens coletivos (“direitos sociais”) como critério de êxito do socialismo e o reforço do papel do partido na sociedade soviética – no pós-Segunda Guerra, segundo os autores seguidos, Andrei Jdánov seria um representante da primeira tendência e Geórgiy Malenkov, da segunda, ambos membros da alta cúpula do Estado soviético.
A ideia de uma unidade monolítica no PCUS pós-anos 30 em torno da liderança de Stálin precisa ser bastante relativizada. Quando da deterioração do estado de saúde de Stálin e do seu progressivo afastamento das funções governativas, instala-se uma disputa pela sua sucessão que não explode em conflitos abertos. A coisa muda de figura com sua morte e o XX Congresso do PCUS. Veremos agora detalhes maiores do relatório apresentado por Kruschev.
O 20° Congresso do PCUS em fevereiro de 1956 já havia terminado oficialmente – seguimos de perto a análise de Z. e R. Medvedev (2006) na reconstrução histórica desse processo – quando os delegados são convocados ao grande salão para uma sessão extra e “reservada”. Nem jornalistas e nem partidos comunistas irmãos do PCUS foram convidados. Nikolai Bulganin abriu a seção e de pronto passou a palavra para N. Kruschev. O título do relatório, como sabemos, era “Sobre o culto da personalidade e suas consequências”; o conteúdo também sabemos e não é preciso nos alongarmos no assunto.
Os convidados ficaram chocados com o conteúdo dos documentos. Muitos reagiram com ânimos exaltados e raiva; outros, em silêncio atônitos. A sessão “secreta” de apresentação do “discurso secreto” não teve registro estenográfico e nem pôde haver debate depois da leitura feita por Kruschev. Meses depois, a resolução final do Congresso é publicada informando da aprovação do relatório e asseverando que seriam “tomadas medidas decisivas para garantir a total eliminação do culto do indivíduo, estranho ao marxismo-leninismo, e a liquidação de suas consequências em todos os aspectos das atividades ideológicas, do Partido e do governo” (MEDVEDEV, 2006: 139). A partir disso, o discurso “secreto” foi cada vez menos secreto.
Na noite de 25 de fevereiro, os delegados dos partidos comunistas estrangeiros tiveram acesso ao documento. No dia 1° de março o texto do discurso, com leves modificações, foi distribuído aos funcionários mais graduados do Comitê Central e no dia 5 de março o carimbo de ultrassecreto é modificado para apenas “não destinado a publicação” (Idem: 140). Nesse momento é que começa o aspecto mais interessante da divulgação do discurso.
O PCUS ordenou às gráficas a impressão do documento e sua leitura nas bases (comitês regionais, distritais e municipais do partido, escolas, comitês de fábrica, reuniões de célula da juventude comunista, etc.). Contudo, nas sessões de leitura, não era permitido tirar cópia do documento (!!!), fazer anotações (!!!) e não haveria debates após a leitura (Ibidem). As reações foram variadas. Desde uma explosão popular que terminou numa greve geral e confronto policial com mais de 15 mortos contra o conteúdo do “Discurso Secreto”, como na Geórgia; até a extrema incredulidade e incompreensão sobre o que estava acontecendo. Como qualquer análise lúcida poderia esperar, a lógica do “Discurso Secreto” de todo mal encarnado em Stálin e Partido, Estado e socialismo imaculados não obteve êxito. A ausência de um debate sério e qualificado sobre os problemas do socialismo soviético combinou-se com o conteúdo enviesado do Relatório Kruschev e o resultado foi o estímulo às posturas niilistas frente ao socialismo e negação total de qualquer aspecto benéfico do socialismo – além, é claro, do fortalecimento de um profundo ceticismo nos trabalhadores.
Os historiadores que seguimos dizem que “tivera início uma gigantesca e autenticamente profunda transformação, embora seus efeitos só viessem a ser sentidos gradualmente” (Idem: 149). O PCUS desencadeou de forma errada um debate e posteriormente quis negar a evolução desse debate. Membros do partido que fizeram o “natural”, estendendo as críticas contra Stálin ao Partido, foram expulsos; outros militantes queriam uma reforma no aparato do partido para recuperar sua “estrutura leninista” e também tiveram sua voz abafada; nas reuniões com operários, questionado como não sabia de nada e como o partido não “impediu os crimes de Stálin”, Kruschev dizia apenas que tinha medo de fazer algo; quando um professor de marxismo-leninismo de um instituto técnico tentou fazer o que se deveria, ou seja, analisar as relações sociais que causaram “o culto à personalidade”, o partido o convocou e o repreendeu severamente. A imprensa do partido e o aparato ideológico simplesmente não sabiam mais o que fazer com a história soviética – por exemplo: o primeiro plano quinquenal, um sucesso que teve Stálin como principal teórico e defensor no Partido, teve êxito por causa de Stálin ou apesar de Stálin? Ele contribuiu ou não para esse feito?
A confusão era grande nas fileiras do partido. O Pravda reproduziu um artigo do jornal O Diário, o principal da China, que, ao abordar a época de Stálin, dizia que seus acertos eram maiores que os erros, e os próprios erros, material importante para compreender a experiência da ditadura do proletariado (Idem: 151). Em 30 de junho de 1965, o Comitê Central do PCUS lança um documento intitulado “Sobre a superação do culto da personalidade e suas consequências” com um tom bem menos crítico à Stálin; ainda em 1956, no final do ano, Kruschev se referia a Stálin como “grande revolucionário” e “grande marxista-leninista” e ainda afirmava que o Partido “não permitiria que o nome de Stálin fosse entregue de bandeja aos inimigos do comunismo” (Idem: 152) – não precisaria, o próprio Partido já tinha feito o “serviço”!
Kruschev, o mesmo do “Discurso Secreto”, repudiou o conceito de “stalinismo” como sendo uma invenção dos inimigos do socialismo e no XXI Congresso do PCUS, em 1959, não houve nenhuma menção aos “crimes de Stálin”. Já no XXII Congresso, em 1961, voltam com força as críticas ao “stalinismo” (Idem: 157). O que explica essa oscilação? Agora temos que retroceder no tempo, antes da divulgação do relatório pouco secreto.
Quando da aprovação, no comitê central do PCUS, do “Relatório Kruschev”, Molotov, Malenkov, Kaganovith e Vorochilov se colocaram contra, por entender que a abordagem adotada era unilateral e desequilibrada (KEERAN; KENNY, 2008: 36). Em junho do mesmo ano do relatório – 1956 –, o Comitê Central revelou maior oposição a Kruschev e seu grupo. Com a eliminação física de L. Beria, antes o todo-poderoso chefe da NKVD, Molotov se tornara o principal opositor de Kruschev no PCUS. Este quase perdeu seu poder quando em 1957, numa reunião do Politburo do PCUS, formou-se uma maioria de sete contra três anti-Kruschev (com um neutro), mas, com a circulação dos rumores no Partido da derrota do dirigente máximo, os membros do Comitê Central fiéis a Kruschev cercaram o Politburo e exigiram a reunião do Comitê Central (onde a oposição tinha minoria); ao fim da reunião do CC, Molotov, Melenkov e Kaganovitch estavam expulsos do Comitê Central e do Politburo.
A expulsão dos principais nomes da oposição, evidentemente, não abrandou as críticas e contestações ao novo grupo dirigente liberado por Kruschev. Não é meu objetivo abordar em detalhes o que foram os anos principais de Nikita no comando do PCUS. Cabe pontuar, porém, que a cada fracasso ou dificuldade, quando no seio do partido se levantam críticas às políticas hegemônicas, os que criticavam eram logo tachados de “ortodoxos” ou “stalinistas” e, como num jogo de espantalho, a crítica a qualquer política pós-Stálin era tida como uma defesa da repressão da “era stalinista”. A direção do PCUS estimulava uma caricatura grosseira de crítica ao “stalinismo” e, ao mesmo tempo, tentava de todas as formas parar essa torrente de críticas porque sentia que ela minava a legitimidade social e ideológica do Partido (MEDVEDEV, 2006: 40).
A forma política do Estado soviético, a democracia operária restringida e plebiscitária, não só impediu um real debate sobre os problemas da construção socialista nos seus primeiros anos – afinal, tratando seriamente a questão, é disso que se trata o “stalinismo” – e como superar esses problemas que ainda permaneciam, como criou muitos outros. Descrença e ceticismo na construção socialista e no marxismo-leninismo, descrédito no Partido frente aos operários, maior oposição dos intelectuais não comunistas ao Partido (sim, eles existiam e não eram poucos, especialmente na Rússia), cooptação de maior número deles para as fileiras antissoviéticas, e maior empobrecimento da autocompreensão dos soviéticos de sua própria realidade – além, é claro, de fornecer todas as vitaminas que o anticomunismo precisava.
Com o fim da Era Kruschev e a ascensão de Brejnev ao comando do PCUS, a regra no Partido era tratar o período Stálin como uma espécie de limbo histórico: falava-se dele sem o tom apologético da sua época de liderança e o demonizador do “Discurso Secreto”, mas procurando não aprofundar tanto, evitando os temas “espinhosos”. O chamado “neostalinismo” brejneviano foi muito mais um “deixa para lá que é melhor” do que um restaurar o que se entenda por “stalinismo”.
Domenico Losurdo (2010: 146-147), em sua análise do período de Stálin a frente do poder, cita a avaliação do embaixador estadunidense, George Kennan, que atuava em Riga, capital da Letônia, e afirmava ser aquele país o mais “moralmente unificado do mundo”, onde as pessoas demonstram “ilimitada confiança em si mesmos, saúde mental e felicidade da jovem geração russa”. Losurdo, corretamente, corrige o embaixador afirmando que esse diagnóstico era uma realidade, nos anos 30, para os operários e os jovens, porém não no campo, ainda sob os efeitos da coletivização forçada. A questão de fundo que queremos sublinhar é que com todos e cada um dos problemas da sociedade soviética, existia uma confiança, uma espécie de fé, de que o povo estava construindo um mundo novo, melhor, superior; de que a história estava sendo feita pelas pessoas comuns.
O XX Congresso, isto é, a disputa pelo poder no seio do PCUS, conseguiu a façanha de destruir em longo prazo esse sentimento, não pôr em debate nenhum dos problemas fundamentais da União Soviética e ser matéria-prima para o anticomunismo. As disputas de cúpula pautadas num jogo de poder que não tomava como elemento primeiro da forma de ação os interesses do movimento comunista mundial e da classe trabalhadora soviética, não só não foram combatidas, como foram reforçadas na Era Kruschev. A “desestalinização” é uma farsa que redundou em tragédia.
Era possível fazer diferente? O exemplo chinês
É prática comum nos escritos de balanço das experiências socialistas do século XX tomar o exemplo soviético como métrica geral e, a partir daí, desenvolver análises históricas e teorias sobre o que foi o socialismo no século passado. A influência soviética sobre todas as demais experiências revolucionárias é notável e evidente, mas essa influência não fez de nenhum país, mesmo os do Leste Europeu, uma cópia em miniatura do socialismo soviético.
Um dado básico, por exemplo, é normalmente ignorado por muitos analistas: em nenhuma outra experiência socialista se produziu tantas rupturas no grupo dirigente como na URSS. Vietnã, China, Cuba e Coreia Popular não são mais governados pela primeira geração de homens e mulheres que fizeram a revolução. Em nenhum desses países, essa transição geracional provocou algo parecido com o fenômeno soviético da disputa “Stálin vs Trotski” e “Kruschev e apoiadores vs pró-stalinistas e apoiadores”.
A China, entre os exemplos citados acima, foi a experiência depois da soviética em que houve a maior autofagia no grupo revolucionário. Comparar o exemplo soviético com o chinês é bem útil para mostrar que a história poderia ter sido diferente. Nessa comparação, porém, cabe sublinhar apenas a ação política, e não entrar na polêmica das condições estruturais para um fazer diferente – esse artigo já está excessivamente longo para que isso seja feito.
Ano passado a Boitempo Editorial lançou o livro Duas Revoluções, do historiador inglês Perry Anderson. O livro é um ensaio lançado anos atrás na famosa New Left Review. No ensaio, Anderson procura realizar uma análise comparativa de longa duração histórica entre a Revolução Russa e Chinesa e, fundamentalmente, explicar a divergência de rumos entre os dois grandes países a partir dos anos de 1980: a China inicia sua decolada para uma superpotência mundial, e a União Soviética deixa de existir, mergulhando os ex-membros da União, especialmente a Rússia, numa longa noite de subdesenvolvimento e miséria acentuada.
Um dos argumentos mais fortes de Anderson ao longo do ensaio é que a base de sustentação da Revolução Chinesa (camponeses), apesar de uma série de erros de condução política e a prioridade dada ao bem-estar dos operários urbanos, nunca perdeu seu entusiasmo e confiança, mantendo-se sempre como uma reserva de energia social disposta a grandes proezas. A classe operária industrial soviética, a principal base social de legitimação do sistema, ao contrário, foi progressivamente caindo no absenteísmo político e na indiferença. Um dos argumentos de Anderson é a forma diferente como o PCCh (Partido Comunista Chinês) e o PCUS trataram seus momentos traumáticos – no caso do PCCh, o grande trauma foi a Revolução Cultural.
Em tons de comparação, o historiador inglês afirma que na Rússia “a desestalinização tinha sido espetacular porém sub-reptícia. […] Emocional e anedótica, sem maiores explicações de como as repressões relatadas seletivamente tinham sido possíveis que não o vazio burocrático ‘culto da personalidade’” (ANDERSON, 2018: 51). Anderson ainda completa afirmando algo já colocado por nós: nenhuma análise “mais substancial” do stalinismo foi feito pelo PCUS. É o vazio histórico de que aludimos acima.
Em comparação, Deng Xiaoping, a maior liderança política do período pós-Mao Tsé-Tung, junto aos seus camaradas de direção, recrutaram 4 mil funcionários do Partido e historiadores para elaborar um balanço da Revolução Cultural. Depois disso, foi produzido um documento síntese com 35 mil palavras que foi adotado com Resolução do Comitê Central do PCCh em junho de 1981 (Ibidem). Anderson fala que, a despeito dos problemas do documento, que passou a servir de linha oficial do PCCh, como restringir a repressão apenas aos membros do partido e não ser propriamente um documento pormenorizado, ele “oferecia uma explicação coerente dos acontecimentos [da Revolução Cultural], além dos desmandos de um único homem”, resume o autor:
“as tradições peculiares de um partido cujo caminho para o poder o tornara afeito à luta de classes irredutível, como se fosse uma tarefa permanente; os efeitos de distorção do conflito com a URSS alimentando temores de revisionismo; e, por último, mas não menos importante, ‘a perniciosa influência ideológica e política de séculos de autocracia feudal’”. [Ibidem]
A partir dessa abordagem, se evitou personalizar todos os problemas na figura de Mao. Mais ainda, os seus sucessores adotaram uma linha de que Mao teve 70% de acertos e 30% de erros e estabeleceram uma linha de continuidade entre o período maoísta e o de Reformas e Abertura de Deng. Mao não só não foi demonizado, como entronado como o construtor máximo da dignidade da nação e do povo chinês. Nesse sentido, para o PCCh e seu principal líder atual, Xi Jinping, não só não existe ruptura na história da China e do Partido pré e pós-Mao, como Xi reivindica abertamente Stálin, Lênin e coloca seu país como partícipe ainda da história do Movimento Comunista. As mudanças de linha política, por mais radical que sejam, são “apenas” aplicações do marxismo com características chinesas em cada fase do processo de construção do socialismo.
A defesa enfática que Xi Jinping faz de Mao e Stálin, bem mais que os anteriores Jiang Zemin e Hu Jintao, faz com que a mídia ocidental o chame de “neo-stalinista”. Não estão em questão os méritos historiográficos da narrativa do PCCh; a questão é outra. Com sua linha política e teórica de atuação, os comunistas chineses evitaram a desmoralização geral da sua história e do entusiasmo político dos trabalhadores, criando uma espécie de barreira de contenção: fora da China, a demonização de Mao segue corrente com os números fanáticos de mortos (80, 100, 200 milhões), mas na China a imensa maioria dos trabalhadores não assimila esse tipo de narrativa.
Conclusão
Existe uma forte dose de irracionalidade no debate sobre a história soviética. Parece que afirmar que é mera propaganda anticomunista assemelhar o Gulag Soviético com o campo de concentração nazista é o mesmo que dizer “o Gulag era lindo e maravilhoso”; ou afirmar que as repressões dos anos 30 não eram jornadas de loucura e sadismo é o mesmo que dizer “era para ter matado mais”. A essa altura do artigo, é possível que um número não insignificante de leitores imagine que eu defendo “os crimes de Stálin” e sou contra denunciá-los. Infelizmente, faz-se necessário discorrer melhor sobre esse ponto do problema.
A sociedade soviética reconstruída após a destruição da Segunda Guerra Mundial não era mais a mesma dos anos 20. Já tínhamos uma sociedade urbana-industrial, com o analfabetismo em vias de extinção absoluta; bibliotecas, museus, teatros, salas de cinema, universidades, escolas técnicas e institutos de pesquisa abarcando milhões de pessoas; fim da necessidade de processos de mobilização total como a coletivização forçada e uma relativa segurança geopolítica mais sólida com o desenvolvimento industrial e bélico. As formas repressivas de regulação social, por imposição objetiva da nova conformação da sociedade soviética, necessitavam ser abrandadas. Tanto o é assim que um dos elementos do processo chamado de “desestalinização”, isto é, a redução do papel da repressão na regulação social, foi iniciado pelo próprio Stálin a frente do PCUS, como demostra o livro de Robert W. Thurston, Life and terror in Stalin’s Russia – 1934-1941.
Não passa de uma perspectiva liberal colocar a repressão como o grande problema a ser resolvido – isso não significa, evidentemente, que ela não era um problema. O grande problema ao final da Segunda Guerra Mundial era como criar uma democracia operária fortalecida que combatesse o excesso de centralização, burocratização e formalismo no poder, fortalecendo os órgãos de poder popular, retirando suas funções institucionais apenas consultivas e garantindo um debate franco, realista, sobre os problemas da construção socialista soviética e como superá-los. Dentro dessa perspectiva é que deveriam ser abordadas questões como os chamados “Grandes Expurgos” sem a cantilena liberal de que todas as vítimas da repressão do Estado soviético eram arcanjos da liberdade e da paz, como atualmente caracteriza o discurso anticomunista em voga.
O XX Congresso foi uma hábil forma de evitar esse debate e, como já escrevemos amplamente, teve como consequência desestimular a participação política ativa da classe trabalhadora nos rumos da União Soviética. Essa consequência, creio, não foi algo proposital; a forma inábil e improvisada como o PCUS geriu a crise ideológica pós-Congresso parece-nos uma prova disso. De toda sorte, o debate sério e profundo sobre os problemas do socialismo soviético só veio a acontecer nos anos 80 sob o comando de Iuri Andropov, mas não cabe nesse escrito aprofundar essa temática.
As consequências, portanto, do “Discurso Secreto” e da abordagem do grupo dirigente do PCUS são claras. Encobrimento dos problemas centrais da sociedade soviética – trocou-se o culto positivo da personalidade pelo negativo –, fortalecimento do anticomunismo, destruição da imagem mundial da União Soviética e enfraquecimento político e ideológico dos operários soviéticos. Mais que isso, em termos historiográficos, criou-se um fenômeno muito interessante: mitos anticomunistas lançados pelo “Relatório Kruschev” ganharam uma vida tão ampla e foram tão difundidos que se perdeu da memória histórica a sua origem.
Poucos anos atrás, a Revista Superinteressante da Editora Abril, publicou uma edição especial “investigando” os motivos da renovação da popularidade de Stálin na Rússia atual. A matéria cita como verdade incontestável mitos que surgiram no XX Congresso, como, por exemplo, o assassinato de Sergei Kirov ter sido obra do Estado soviético numa trama diabólica para justificar as repressões, ou Stálin não ter acreditado que a Alemanha nazista invadiria a URSS, pois tinha profunda confiança em Hitler. Histórias falsas como essas, mais que “manchar” a imagem de Stálin, servem de substrato para as teorias mais “refinadas” do anticomunismo como a noção de totalitarismo: Hannah Arendt afirma com todas as letras no seu As Origens do Totalitarismo que existia uma profunda confiança entre Stálin e Hitler – ambos, Arendt e a Superinteressante, não citam o XX Congresso como fonte de sua afirmação, mas foi justamente daí que ela saiu.
Passar a limpo o XX Congresso do PCUS é aprender com os erros da experiência socialista soviética e rastrear a origem para melhor combater vários mitos fundamentais do anticomunismo atual. Espero que esse artigo seja o início de um longo trabalho que militantes comunistas vão desenvolver nos próximos anos.
Referências:
ANDERSON, Perry. Duas revoluções – Rússia e China. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018.
BRAZ, Marcelo. Partido e revolução: 1848-1989. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
FUNDAÇÃO DINARCO REIS. ‘Lênin e a revolução’, entrevista de Jean Salem ao ‘Avante!’. Publicado em: 23/11/2013. Disponível em: <https://fdinarcoreis.org.br/fdr/2013/11/23/lenin-e-a-revolucao-entrevista-de-jean-salem-ao-avante/>. Acesso em: 28/04/2019.
JUDT, Tony. Reflexões sobre um século esquecido 1901-2000. São Paulo: Editora Objetiva, 2010.
KEERAN, Roger; KENNY, Thomas. O socialismo traído: por trás do colapso da União Soviética. Lisboa: Editora Avante!, 2008.
KHRUSHCHEV, Nikita. Informe Secreto al XX Congreso del PCUS. Pronunciado em: 25/02/1956. Disponível em: <https://www.marxists.org/espanol/khrushchev/1956/febrero25.htm>. Acesso em: 28/04/2019.
LOSURDO, Domenico. Stálin – uma história crítica de uma lenda negra. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010.
LUXEMBURGO, Rosa. Obras Escolhidas. Vol. II. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
MARTENS, Ludo. Stálin, um novo olhar. Lisboa: Editora Lisboa, 2008.
MEDVEDEV, Zhores A.; MEDVEDEV, Roy A. Um Stálin desconhecido – novas revelações dos arquivos soviéticos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.
MOTTA, Luiz Eduardo. A favor de Althusser: revolução e ruptura no Teoria marxista. Rio de Janeiro: Editora Gramma, 2014.
RAMOS, Guerreiro. Mito e verdade da revolução brasileira. Florianópolis: Editora Insular, 2016.
SALEM, Jean. Lenin e a revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
Notas:
[1] – O autor desenvolve mais esse raciocínio na primeira parte do seu livro Lênin e a Revolução (SALEM, 2008).