Diante de efemérides como o 24 de março, a pergunta pelo passado se torna urgente. O historiador britânico Christopher Hill diz que, embora o passado não mude, mudam as perguntas que fazemos a partir do presente. Fazer uma análise desse presente não é o objetivo desta nota, mas é necessário partir de algumas questões básicas sobre os nossos dias. Nos últimos anos, difundiu-se como uma espécie de leitmotiv entre as esquerdas essa frase de Fredric Jameson, massificada por Mark Fisher, que afirma que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.
Este 24 de março chega em um 2021 com a pandemia de Covid-19 atingindo toda a humanidade, colocando toda a nossa cotidianidade em crise. O presente parece mais hostil para nós, e o futuro mais do que incerto, com as escuras nuvens da extrema-direita à espreita em diversos lugares do mundo. Diante disto, imaginar um mundo distinto parece quase impossível. A partir de onde, então, produzimos nossas perguntas ao passado? Elas estão enquadradas pelo que alguns historiadores chamam de regime de historicidade do tipo presentista: um presente que absorve e dissolve o passado, mas também o futuro. É um tempo suspenso, um passado que não passa e um futuro que não pode ser inventado nem previsto. A “memorialização” do espaço público, as marcas da memória do passado recente em nossas cidades, são uma marca do que foi desenvolvido previamente: os nomes das vítimas de genocídios e massacres, escritos em todas as paredes da terra. No entanto, a figura da vítima – em termos históricos – pode vir acompanhada de uma espécie de “lavagem” dessas memórias: de militantes de projetos políticos revolucionários, passam a ser meras vítimas despojadas de qualquer tipo de agência e experiência. De acordo com Enzo Traverso, “a recordação das vítimas parece ser incapaz de coexistir com a memória de suas esperanças, suas lutas, suas vitórias e suas derrotas”.
É por isso que esta nota em chave histórica não buscará fazer uma revisão do que aconteceu na Argentina a partir do 24 de março, nem da inabalável luta das Mães e Avós da Praça de Maio e dos organismos de direitos humanos, os bastiões da nossa democracia. Em vez disso, buscaremos recuperar os diversos modos de organização de vários setores do país no período anterior ao golpe de Estado de 1976, sua práxis política e seu contexto histórico de desenvolvimento. Não com o objetivo de negar o genocídio perpetrado pelas classes dominantes da Argentina, mas para resgatar essa experiência das garras da posteridade.
Para desarmar o enredo histórico
As cronologias sempre partem de uma convenção. Sabemos que as efemérides em relação aos processos históricos respondem a uma construção a posteriori. No caso desta nota, trataremos do período da história argentina que abrange os anos 1969 e 1976, entre o Cordobazo e o último golpe de estado. Por que escolhemos retomar um processo anterior no 24 de março, data do golpe? Porque não podemos compreender o significado desse golpe – como revanche de classe – sem analisar (de forma muito geral) o processo que o antecedeu.
Partimos do princípio de que o golpe de estado dado pelas Forças Armadas – com cumplicidade civil, política, sindical e eclesiástica – no dia 24 de março de 1976 ao governo de Isabel Martínez de Perón aprofunda e dá um novo rosto a um processo social genocida que já vinha se desenvolvendo durante a democracia. Diante de leituras que afirmam que a ditadura só matava quem “estava envolvido em algo”, vale insistir: o objetivo do genocídio na Argentina é claro. O “Processo de Reorganização Nacional”, nome dado pelas cúpulas militares à ditadura, é uma referência ao “Processo de Organização Nacional” conduzido pela Geração dos anos 80 no final do século XIX. A palavra “Reorganização” é fundamental: o que a ditadura quer “reorganizar”? A história que se seguiu a 1976 é bastante conhecida. Através de um plano sistemático de sequestro, tortura, estupros, roubo de bebês, desaparecimentos e assassinatos, a ditadura buscará subsumir a economia aos desígnios da economia neoliberal, destruindo o modelo de substituição de importações que se desenvolveu no país a partir da década de 1930.
O desenvolvimento posterior, do terror e seus efeitos, não é, porém, o tema deste texto. Aqui nos concentraremos nesse entramado social de resistências e solidariedades construídas entre 1969 e 1976: sindicatos combativos, organizações de bairro, de massas, e também as experiências das organizações armadas. Em suma, trataremos da entramado social que o genocídio, conduzido com um novo grau de virulência e organicidade a partir de 24 de março de 1976, buscou desarticular e destruir para construir sobre suas ruínas uma nova ordem econômica, social, política e ideológica. Com este objetivo, contaremos com referências de distintos trabalhos, particularmente obras de historiadores como Daniel James, Enzo Traverso e Ezequiel Adamovsky, mas também contribuições vindas da Sociologia, especialmente de Dora Barrancos e Daniel Feierstein.
Das ofensivas e resistências
O fim da experiência peronista após o golpe de Estado de 1955 e as políticas econômicas e sociais implementadas pelos sucessivos governos militares e democráticos que se alternavam no poder foram decisivos para chegar a 1969. As políticas econômicas, que implicaram a perda dos benefícios que os setores populares tinham conquistado durante o governo de Juan Domingo Perón, e a proscrição e perseguição política do movimento político mais importante do país foram o criatório para um intenso desenvolvimento da luta de classes na Argentina em meados do século XX.
Por sua vez, o contexto internacional outorgava novos modelos e linguagens políticas. O pano de fundo estava marcado por um cruzamento de processos: por um lado, a Guerra Fria, que dividia o planeta em um lado capitalista, sob a liderança dos Estados Unidos, e um lado socialista, sob a hegemonia da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas; por outro lado, o processo de descolonização através dos movimentos de libertação nacional na África e na Ásia e, finalmente, a Revolução Cubana em 1959, liderada por Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara, que marcaria o caminho a seguir para uma nova geração de jovens que começavam um incipiente processo de politização, e que conheceria diversos níveis de radicalismo.
Alguns estudos falam de uma situação de “empate” no país: isso significa que nenhum grupo social era capaz de impor um projeto político viável. Seja pela resistência dos trabalhadores, através de golpes de estado ou pela vitória em eleições com o principal candidato da oposição proscrito, a Argentina da metade do século XX vivia uma enorme instabilidade. Em 28 de junho de 1966, a autoproclamada “Revolução Argentina”, liderada pelo general Juan Carlos Onganía, derrubou o governo do presidente Arturo Illia, da Unión Cívica Radical del Pueblo. Este golpe contou com o apoio de dirigentes políticos, da cúpula eclesiástica, dos meios de comunicação e, obviamente, de setores patronais.
Onganía proclamou sua intenção de comandar o país por tempo indeterminado, com o objetivo de outorgar ordem política para conduzir um plano de modernização da estrutura econômica. Sem um prazo claro para a normalização democrática, dissolveu o Congresso e silenciou as expressões da vida política. Interviu militarmente nas províncias e suprimiu a autonomia universitária sob acusações de “infiltração marxista”, desencadeando uma enorme fuga de cérebros no país, sendo a “Noite dos Bastões Longos” o episódio mais funesto dessa prática. O plano econômico que o ministro Krieger Vasena aplicou foi antiinflacionário, congelando salários, desvalorizando o peso, impondo ajustes no setor público e subindo as tarifas. Os recursos foram canalizados do agro ao setor industrial, fundamentalmente para as empresas “modernas”, enquanto as condições de instalação de empresas estrangeiras no país foram diminuídas. O processo de transferência de capital aos setores mais concentrados da economia foi acompanhado por um processo de estrangeirização. Os setores populares viram suas vidas se tornarem marcadamente mais caras, com o crescimento dos assentamentos de emergência em resposta às migrações internas.
A resposta dos setores populares foi imediata. A Confederação Geral do Trabalho da República Argentina (CGT), dirigida pelo vandorismo (em referência a Augusto Timoteo Vandor), lançou um plano de luta que foi fortemente reprimido pela ditadura. As pessoas jurídicas dos sindicatos foram removidas. A resistência passou a ser difícil, feita palmo a palmo, com as bases avançando apesar do imobilismo das lideranças sindicais. No final da década de 60, a CGT sofreu uma cisão que foi fundamental para o seu devenir político. À direção “dialoguista” que seguia a linha de Augusto Timoteo Vandor, se opôs a CGT dos Argentinos (CGTA), liderada por Raimundo Ongaro, que levantava bandeiras anti-imperialistas e socialistas. Por sua vez, a CGTA propôs um quadro de alianças mais amplo, envolvendo-se com estudantes, padres terceiro-mundistas e intelectuais da esquerda peronista e não-peronista. Este processo no interior do núcleo representativo mais importante da classe trabalhadora será a ponta do iceberg de um marco mais amplo de radicalização política e ideológica da sociedade argentina. E é aí que chegamos ao nosso momento crucial, o ano de 1969. A partir desse momento, e até 1976, o país viverá o crescimento sem precedentes do movimento de massas e seu radicalismo, que se expressará de distintas formas.
As “puebladas”
O período que abrange os anos 1969 e 1973 testemunhará as “puebladas” como forma de luta popular, os chamados “azos”, explosões de fúria e organização popular contra o governo da Revolução Argentina. Assim, em cidades como Rosario, Mendoza, Tucumán e, como exemplo mais acabado, em Córdoba com o chamado “cordobazo”, a ação coletiva toma novas formas, envolvendo toda a sociedade (trabalhadores, docentes, estudantes, vizinhas e vizinhos, comerciantes) em rebeliões massivas. A articulação de diferentes demandas e descontentamentos se unificava na oposição à ditadura, embora também tenham sido traçadas propostas mais radicais, de caráter classista ou anti-imperialista. O cordobazo, protagonizado por estudantes, trabalhadores e trabalhadoras da indústria automotriz e elétrica, foi liderado pelos líderes sindicais Agustín Tosco, de orientação marxista, e Elpidio López, dirigente peronista. A capital da província ficou sob controle popular durante um dia. O governo enviou o exército para reprimi-los, mas isso não freou a onda de puebladas que se desataria a partir desse episódio. A faísca acendeu a pradaria.
Radicalização política
A nível mundial vivia-se um processo de radicalização política de distintos tipos, desde os Estados Unidos até a Ásia. Na América Latina, a Revolução Cubana marcará um antes e um depois nas estratégias e horizontes políticos. O anti-imperialismo será um ponto de articulação entre as esquerdas e o peronismo, facilitando o diálogo entre as diversas tradições políticas – “radicalizando” o peronismo e “popularizando” a esquerda – e atraindo enormes massas de jovens e não tão jovens.
A primeira experiência guerrilheira na Argentina acontecerá em 1959. Os “Uturuncos”, de tendência peronista, foram uma organização composta por dirigentes sindicais, militantes da Juventude Peronista Tucumana e lideranças dos bairros, que buscou construir um foco revolucionário em Tucumán e Santiago del Estero. Em 1962, nasce o Exército Guerrilheiro do Povo, uma guerrilha marxista liderada pelo jornalista Jorge Masetti, cujo objetivo era construir um foco guerrilheiro em Salta. Essas iniciativas não conseguiram apoio majoritário. De novo, 1969 será um divisor de águas.
Em 1970, a organização Montoneros fará sua apresentação pública, com o sequestro e assassinato do general e ex-presidente Pedro Eugenio Aramburu. De raízes católicas, sua militância foi se inclinando paulatinamente a posições de esquerda peronista, influenciados pelas leituras do Movimento de Sacerdotes do Terceiro Mundo. Aos poucos, se aproximarão da Juventude Peronista, juntando-se em 1972. Nascerá a “Tendência Revolucionária” do peronismo, com uma enorme capacidade de mobilização e inserção no movimento de massas, embora o setor sindical sempre tenha sido um terreno hostil para eles. Mantiveram, no entanto, uma luta total com a chamada “burocracia sindical”. Nesse sentido, foram respaldados por Perón na luta contra os setores sindicais que disputavam a condução do movimento operário.
Dois anos depois de uma cisão do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, em 1967 o Exército Revolucionário do Povo (ERP) passará a fazer parte da vida política argentina. De composição juvenil e com um número importante de mulheres, promoveram a guerra de guerrilhas urbana e rural, tentando estabelecer focos no monte tucumano e em diversas fábricas ao longo do país.
Segundo o historiador britânico Daniel James, “entre 1970 e 1973 esses grupos (…) entraram em uma onda de ações que compreendiam ataques diretos e instalações militares, sequestros e assassinatos de industriais e figuras políticas, espetaculares roubos e assaltos de bancos (…)”.
O movimento operário verá surgir nos setores mais modernos da indústria o chamado “sindicalismo classista”, de tendência marxista e também em combate aberto contra a burocracia sindical peronista e os setores patronais. Porém, tiveram uma constante debilidade pela pouca adscrição ideológica das bases (que os apoiavam no combate à burocracia, mas seguiam identificando-se com o peronismo) e pela limitada capacidade de negociação, resultado de uma forte presença nos sindicatos de empresas no interior do país. No entanto, a rebelião das bases parecia marcar o início do fim da liderança sindical peronista e do poder despótico dos patrões nas fábricas. No entanto, mais do que uma aposta dos setores trabalhadores ao socialismo, representavam uma repugnância às lideranças tradicionais.
Os estudos de Ezequiel Adamovsky ajudam a visualizar outras experiências menos mencionadas. No âmbito rural, por exemplo, ocorreu um processo de “descamponização”, com um enorme desaparecimento de produtores familiares. Surgirão as Ligas Agrárias, que exigirão medidas anti-monopólicas e de distribuição de terras. Os povos indígenas, por sua vez, fundarão em 1970 a Comissão Coordenadora de Instituições Indígenas da Argentina, e em 1972 será realizado o Parlamento Indígena Nacional, onde serão afirmadas as bases de reivindicações jurídicas por terras e condições de trabalho dignas. Enquanto isso, nos bairros populares serão formados espaços como o Frente Villero de Liberación Nacional e o Movimiento Villero Peronista.
Era um jogo de machos?
O processo de mobilização comoveu grande parte da sociedade e, particularmente, a juventude. Dentro desse setor, as mulheres ocuparão novos papéis e em outra intensidade. É sabido que a participação das mulheres na vida política da Argentina antecede – e muito – o referido período, mas essa época apresentou algumas particularidades que merecem ser analisadas. Segundo a pesquisadora Dora Barrancos, a partir de meados do século XX as formas de sociabilidade feminina – e, em particular, das mulheres jovens – mudarão a partir de novas fronteiras de liberdade. Haverá uma maior articulação entre a vida privada e a vida pública. A revolução da pílula anticoncepcional concederá maior autonomia sobre os seus corpos, enquanto a moral sexual será paulatinamente flexibilizada. A enorme massa de mulheres que tiveram acesso aos estudos universitários de diversos tipos se verá acompanhada por uma nova saída ao mercado de trabalho nos setores público e privado.
Porém, além disso, as mulheres também formarão parte da radicalização política, integrando as organizações revolucionárias. Embora sua participação nas lideranças fosse quase nula, representavam uma grande porcentagem da militância de base e intermediária. Segundo Barrancos, nem o ERP nem os Montoneros continham em seus programas concepções autonômicas sobre a condição feminina e o feminismo, que consideravam um movimento burguês. A revolução socialista era a prioridade. Ao lado desse movimento, grupos como Nuestro Mundo e a Frente de Libertação Homossexual serão uma vanguarda no questionamento da heteronormatividade e da moral tradicional. O primeiro será a primeira organização a levantar a defesa contra a discriminação de homossexuais na América Latina.
Da primavera camporista à morte de Perón
O começo do fim a Revolução Argentina foi o Cordobazo. Este acontecimento forçou a renúncia de grande parte dos ministros e marcou o fim de Juan Carlos Onganía, que foi sucedido por Marcelo Levingston. Este último, cujo governo foi posto em xeque pelo “Viborazo”, uma pueblada cordobesa em 1971, foi sucedido por Alejandro Lanusse.
Lanusse irá propor um Grande Acordo Nacional (GAN) que buscou pactar uma saída da ditadura aproximando Perón, com o objetivo de neutralizar a ação das guerrilhas. No entanto, Perón se apoiou cada vez mais na Tendência Revolucionária. 1972 foi um ano caótico. A ditadura estava cercada por incontáveis greves dos distintos setores do sindicalismo, ocupações de universidades e puebladas. O GAN fracassava como política e o governo viu-se obrigado a convocar eleições. Em agosto de 1972 ocorre o “Massacre de Trelew”, o fuzilamento de militantes de organizações revolucionárias detidos em uma prisão da Patagônia, que gerou uma onda de protestos e indignação popular. No dia 11 de março de 1973, Héctor Cámpora, candidato do peronismo organizado na Frente Justicialista de Libertação Nacional (FREJULI), ganhava as eleições. Em 25 de maio desse ano, assumiria a presidência acompanhado de Salvador Allende, do Chile, e Osvaldo Dorticós, de Cuba, presidentes socialistas, pondo fim a 18 anos de proscrição do peronismo.
O governo de Cámpora, conhecido como a “Primavera Camporista”, acendeu esperanças nos setores revolucionários do peronismo e nos setores populares. Houve uma onda de tomada de fábricas, hospitais, teatros, hotéis e todo tipo de estabelecimentos. O plano econômico vislumbrava a nacionalização dos depósitos bancários, o controle do comércio exterior, uma incipiente reforma agrária e a restrição aos investimentos estrangeiros. Embora essas medidas não tenham virado lei, marcavam um sinal dos tempos e uma nova correlação de forças no interior do movimento popular argentino.
Se os movimentos que, em maior ou menor medida, de uma forma ou outra, desafiavam a ordem estabelecida haviam retomado uma nova força nos anos finais da Revolução Argentina e na presidência de Cámpora, o regresso de Juan Domingo Perón marcaria a mudança da correlação de forças. Antes de colocar os pés no país, grupos da direita peronista abriram fogo em Ezeiza sobre uma multidão que esperava a chegada do avião de Perón, no que ficou conhecido como o Massacre de Ezeiza. Foram convocadas novas eleições, para as quais Perón foi acompanhado por sua esposa Isabel; com a burocracia sindical como coluna vertebral da campanha, foi vencedor com 62% dos votos. Por sua vez, como o sindicalismo não classista e os grupos de direita queriam remover o lastro da militância de esquerda dentro e fora do movimento, começaram a tomar posições.
O assassinato do secretário-geral da CGT, José Ignacio Rucci – mão direita de Perón – por parte dos Montoneros marcaria o começo do fim das relações entre o velho líder e a esquerda peronista. A formação da Aliança Anticomunista Argentina (Triple A), liderada pelo secretário pessoal de Perón e ministro de Bem-Estar Social, José López Rega, e o chefe de polícia Alberto Villar, levaria adiante uma caça de militantes de esquerda em todo o país, com assassinatos, sequestros e torturas. A ruptura entre Montoneros e Perón tomaria forma no 1º de maio de 1974, quando Perón os removeu da Praça de Maio no tradicional ato do Dia dos Trabalhadores. A morte de Perón, em junho desse mesmo ano, marcaria o começo de uma espiral de crise política, social e econômica sem paralelos.
Com o governo nas mãos de Isabel Perón, o movimento popular veria uma ofensiva patronal sem precedentes. Em um panorama internacional marcado pela crise de 1973, as dificuldades econômicas, atravessadas por uma brusca queda do salário real, reduziram as condições de vida dos setores populares. O assédio político aos militantes de esquerda por parte da Triple A se intensificou. Em fevereiro de 1975, o exército conduziu o Operativo Independência, uma limpeza de um foco guerrilheiro do ERP no monte tucumano, dando início aos centros clandestinos de detenção e tortura, além dos desaparecimentos de pessoas. O “Rodrigazo” foi um golpe de misericórdia para a economia da maioria. Desvalorizou-se a moeda em 100%, aplicou-se um aumento de tarifas e foram liberados os preços, em uma transferência de renda sem precedentes aos banqueiros e setores exportadores do agro. A CGT convocou uma greve – a primeira da central durante um governo peronista -, exigindo a renúncia do ministro de Economia Celestino Rodrigo e de José López Rega. As organizações armadas, cada vez mais isoladas da realidade e das classes populares, continuavam lançando ataques e vendo crescer cada vez mais sua militarização.
Em setembro de 1975, o Exército tinha intervido em 14 províncias, enquanto os meios de comunicação pressionavam para que os militares pusessem fim à “insurreição”. Em 24 de março de 1976, Isabel Martínez de Perón deixava a Casa Rosada em um helicóptero. Com apoio dos Estados Unidos, do FMI, dos principais meios de comunicação, das cúpulas eclesiástica e sindical e dos setores concentrados da economia, sob liderança de Jorge Rafael Videla, o Processo de Reorganização Nacional estava em curso. Começaria uma longa noite na Argentina, marcada pelo terror e pela morte.
Romper o realismo capitalista: uma caixa de ferramentas
No momento em que este texto foi escrito, era imperativa a ideia de evitar uma “galeria da pena”. Nem “galeria da pena”, nem “melancolia de esquerda”. O que movia, como premissa ética, era a redação de um artigo de difusão histórica com um forte compromisso com os direitos humanos e a democracia dos nossos dias. Se o Anjo da História de Walter Benjamin tem os olhos direcionados ao passado e só pode observar ruínas que crescem até o céu, propomos resgatar as flores e os gestos nobres desse matadouro. Não como um exercício comemorativo, nem como uma espécie de revisão anual. Ao contrário, a efeméride nos convida, nos reúne, até em tempos de virtualidade.
A possibilidade de realizar uma breve revisão sobre a história pelas experiências de organização de massas entre 1969 e 1976 é uma boa oportunidade para recuperar a agência daqueles que nos precederam. Muitos e muitas formam parte das enormes listas do terror, das placas nas ruas, dos murais, das camisas. São uma fotografia nas redes sociais, uma canção, uma poesia. São as pessoas vencidas e nós, herdeiros e herdeiras dessa derrota. Seus projetos revolucionários, suas expectativas de mudança, seus anseios por uma vida melhor foram brutalmente derrotados. Sobre suas cinzas foi edificada uma ordem social e um modo de vida que proclama o “salve-se quem puder”, hoje em crise, mas que se mostra disposto a ferir para se defender. Nada parece nos fazer crer que o que está por vir será fácil. No entanto, a partir da disciplina da História pensamos que este 24 de março é uma possibilidade de recuperar suas ferramentas de organização e luta. Não para buscar nelas catecismos, verdades reveladas ou lições para aprender. Nos retalhos das suas experiências e ações talvez encontremos o tecido para tecer novos olhos para nós, capazes de olhar o mundo pela primeira vez.