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Os rascunhos da carta de Rodolfo Walsh à ditadura

A Agência Clandestina de Notícias, de Rodolfo Walsh, difundiu dezenas de telegramas durante o longo silêncio da ditadura militar argentina.
A Agência Clandestina de Notícias, de Rodolfo Walsh, difundiu dezenas de telegramas durante o longo silêncio da ditadura militar argentina. Por Fabián Domínguez | Agencia Paco Urondo – Tradução de Rebeca Ávila para a Revista Opera
(Foto: Romina Santarelli / Ministerio de Cultura de la Nación.)

Em 23 de março de 1976, foi lançado o primeiro e único número da revista Información, veículo de comunicação que a organização Montoneros produzia em plena decadência do governo de Isabel Martínez, viúva de Perón que herdou a presidência. Luis Guagnini, Francisco Urondo e Jarito Walker eram os responsáveis pela publicação, cuja redação estava localizada na rua Chile, e buscava ser mais ampla do que outros órgãos que a instituição teve. “Tudo está naufragado”, dizia o título da capa, citando o radical Ricardo Balbín. O lançamento do veículo marca a falta de timing da direção dos Montoneros, que a inaugurou um dia antes do golpe de Estado. Foi estreia e despedida. Os três responsáveis mencionados foram sequestrados por distintos grupos de tarefas em diversas circunstâncias.

Rodolfo Walsh vinha anunciando a impertinência de concentrar meia centena de jornalistas em um mesmo edifício, transformando-os em alvo fácil para a Triple A [Alianza Anticomunista Argentina, grupo parapolicial]. Sua ideia passava por organizar pequenos grupos de jornalistas e informantes que reunissem informações, redatar notas curtas e concisas e, a partir daí, distribuí-las no formato de agência de notícias. A ideia só foi aceita com a ditadura já instaurada, mas desde junho de 1976 o escritor começou a organizar a agência e, em 20 de agosto, saiu a primeira das notas, que durante mais de um ano chegaram aos principais jornais e agências do país.

Chamou-se ANCLA (Agência Clandestina de Notícias), e a escolha do nome foi uma estratégia para que o Exército pensasse que outra força estava difundindo informação comprometedora, e para que na Marinha os setores adversários suspeitassem uns dos outros. O meio interno das Forças Armadas era uma veia que deveria ser explorada; ninguém ignorava que Jorge Rafael Videla [membro da Junta Militar e presidente de facto entre 1976 e 1981] não era um líder carismático e que Emilio Eduardo Massera [também membro da Junta Militar] queria todo o poder.

Eram telegramas informativos distribuídos semanalmente por correio, enviados às redações de jornais, revistas e correspondentes estrangeiros, como uma forma de contornar o cerco comunicacional. O vazio de informação que o país vivia foi produto de uma campanha planificada pela mesma ditadura, à qual aderiram, por temor ou convicção, os grandes meios. Os jornalistas sabiam o que estava acontecendo, sabiam da tortura, dos campos de detenção clandestinos, dos fuzilamentos, e poucos cronistas daquela época podem alegar que não sabiam o que estava acontecendo. Walsh e sua equipe trabalhavam para que os comunicadores soubessem e o comunicassem ao povo, com o objetivo de manter as consciências em alerta diante do avanço devastador do Estado Terrorista, que reprimia de maneira selvagem. A experiência durou até setembro de 1977, sobrevivendo seis meses após a morte do escritor.

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Em uma época em que a mentira e a propaganda oficial preenchiam a mente dos argentinos, Walsh e sua equipe davam a conhecer a violência que se institucionalizou através do desaparecimento de militantes ou de supostos militantes, massacre dos seus familiares, captura ou assassinato de crianças, sequestros extorsivos, saques, campos de concentração, tiroteios simulados, voos para jogar os detidos nos rios. Entre os assuntos dessas notas a destacar, estão a apresentação massiva de habeas corpus, a quantidade de desaparecidos, os fuzilados em supostos enfrentamentos, o exílio de milhares de argentinos a distintos países da Europa ou América, a censura nos meios de comunicação, os centros clandestinos de detenção, as torturas, as negociações dos executores do plano econômico (Martínez de Hoz e seus amigos da Bolsa de Comércio), a morte de um militar da Armada que vinha denunciando o esvaziamento da marinha mercante em benefício dos seus superiores e empresas estrangeiras, outra “misteriosa” morte de um militar da Aeronáutica que denunciava a venda fraudulenta de La Cantábrica, os salários baixos dos trabalhadores e os salários exorbitantes dos militares, os fuzilamentos múltiplos em represália aos atentados dos grupos guerrilheiros e a luta “além do bem e do mal” que os militares encarnaram, os sequestros do roteirista de quadrinhos Germán Oesterheld, dos escritores Haroldo Conti e Antonio Di Benedetto, e numerosos jornalistas, incluindo o próprio Walsh.

A experiência durou pouco mais de um ano. A agência foi afetada pelo desaparecimento de Walsh em 25 de março de 1977, e entre maio e agosto daquele ano não houve notas, e um mês depois a ANCLA deixou de emitir notícias. O grupo que formava a agência decidiu sair outra vez durante agosto, o projeto seguiu um longo e conturbado mês, com perseguição e sequestro de alguns integrantes da equipe. Em setembro saem as últimas notas, uma delas referindo-se ao sequestro de Walsh.

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Em dezembro de 1976 Walsh criou a Cadena Informativa, com peças mais curtas e concisas, com um estilo austero, mas preciso na denúncia. Diferenciava-se da ANCLA porque saía uma ou duas vezes por mês; dirigia-se a pessoas e setores específicos, a fim de que eles ajudassem na propagação da informação, formando uma verdadeira cadeia de comunicação. As notas eram escritas pelo próprio Walsh, e a entrega era feita em mãos, gerando um maior comprometimento na difusão. Com a sua morte, seus colaboradores assumiram o projeto e seguiram escrevendo notas até agosto de 1977.

Em outubro do ano do golpe, a ANCLA divulgou um extenso trabalho de investigação chamado “História da guerra suja na Argentina”, onde eram denunciadas e descritas pela primeira vez as condições de detenção na Escola de Mecânica da Armada (ESMA). O relatório, dividido em quatro partes, tem muito de história, vinculando o passado argentino com o que ocorria naquele momento. A primeira parte fala dos bastidores militares assim que assumiram o poder, e o acordo final para que um filho querido da oligarquia argentina assumisse a economia: José Alfredo Martínez de Hoz (que liberou os preços, retirou as regulações e assinou um crédito com o FMI assim que assumiu). A segunda parte explica a guerra contrarrevolucionária, em que se aplica a metodologia ensinada por militares franceses e estadunidenses. A terceira parte se dedica a mencionar os “marcos” da Marinha, desde a ameaça de bombardeio às cidades de Mar del Plata e La Plata durante as tentativas de golpe em 1955, passando pelo Massacre de Trelew em 1972, até chegar ao seu ponto mais baixo: o centro clandestino da ESMA. A quarta parte revela o funcionamento da ESMA, fornece nomes, sobrenomes e codinomes dos repressores, e apresenta algumas consequências psiquiátricas que alguns integrantes dos grupos de tarefas sofriam depois das torturas e assassinatos. 

Em 15 de março de 1977, a ANCLA difundiu uma série de relatórios no âmbito do primeiro ano de governo da Junta Militar. Tais relatórios saíram como Partes de Situação: a Econômica, a Trabalhista, a Castrense, a Política, além de dois relatórios sobre Direitos Humanos. Desta forma, temos o corpus sobre o qual Walsh escreve sua famosa carta: as notas da ANCLA, os telegramas da Cadena Informativa, o relatório sobre a Guerra Suja e os relatórios no primeiro aniversário do golpe.

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Ler a Carta de Walsh. Não dizemos “a Carta de um escritor à Junta Militar”. Basta dizer “a Carta de Walsh” e sabemos que se trata do seu último escrito, que ele estava distribuindo pela cidade minutos antes de cair, morrer, desaparecer nas mãos de um grupo de tarefas da Marinha. E dizemos ler, não só mencioná-la, mas lê-la. Aí está a chave para entender o genocídio que se cristalizou entre 1976 e 1983. E dizemos que se cristalizou porque não é um gesto ou um plano que ganhou forma no 24 de março, mas que vem de décadas atrás. 

Walsh divide sua carta em duas partes: a descrição do genocídio e as consequências do plano econômico. E se levantarmos a lupa dessa análise veremos que os assassinatos em massa, os fuzilamentos clandestinos e os voos da morte já se desenhavam sobre o povo argentino no biênio 1955/56. E se essa lupa for ampliada ao plano econômico imposto pelo general golpista Pedro Eugenio Aramburu, veremos que a primeira coisa que ele fez foi assinar a incorporação e os empréstimos do FMI, gerando uma dívida externa que não existia nesse momento. Não é ocasional que as mesmas medidas tenham sido retomadas pela equipe econômica de 1976, com a abertura irrestrita das importações, o dólar atrelado a uma tabela de câmbio, as empresas tomando empréstimos do exterior e a posterior estatização da dívida gerada, além dos empréstimos do FMI que fizeram o país passar de uma dívida externa que não superava os cinco bilhões de dólares em 1976, para 45 bilhões em 1983. 

Desde a recuperação da democracia até os dias atuais passaram quase quatro décadas. Houve avanços e retrocessos, e o lamentável é a repetição de fórmulas econômicas com os mesmos nomes das ditaduras: os Alsogaray (pai e filha), Domingo Cavallo, Martínez de Hoz, para citar apenas três.

Por que tropeçamos nessas pedras cortantes? A informação existe, mas os erros se repetem, às vezes com uma vocação suicida. Talvez a chave esteja naquilo que o próprio Walsh sustentava: “O excesso de verdade pode enlouquecer e aniquilar a consciência moral de um povo”. 

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