“Sócrates foi uma lenda, mas nada que ele tenha feito ou dito tornou-se tão lendário quanto sua fatídica premonição: ‘Eu quero morrer num domingo, num dia em que o Corinthians ganhe um título’. Era um desejo tão mórbido quanto romântico — e, em 4 de dezembro de 2011, seu desejo se tornou realidade. Ele tinha 57 anos.”
O trecho acima foi extraído do livro “Doutor Sócrates — A Biografia” (432 pág., R$ 74,90), do jornalista escocês Andrew Downie, que acaba de ser traduzido e publicado no Brasil pela editora Grande Área. Embora não seja a primeira, trata-se da melhor e mais completa biografia escrita sobre o craque do Corinthians e da Seleção Brasileira, que morreu há dez anos, vítima do choque séptico derivado de uma cirrose hepática causada pelo excesso de álcool.
Sócrates, como o texto do parágrafo inicial o demonstra, foi um personagem de contornos míticos, que cumpriu em vida o roteiro trágico do herói clássico e gravou seu nome na história. Craque dentro de campo, destacou-se principalmente fora dele por suas opiniões polêmicas, sua luta pelo retorno à democracia no Brasil e seu comportamento boêmio. Descrito muitas vezes como “o jogador mais original do futebol brasileiro”, ele nunca foi um exemplo de atleta: muito alto e magro, era desengonçado, fumava um maço de cigarros por dia, bebia mais do que treinava e odiava mentir a si mesmo, recusando-se a levar uma vida de aparências só para satisfazer dirigentes e torcedores.
No entanto, longe de ser um modelo de esportista como Pelé, ou mesmo como Zico, com quem formou uma das melhores duplas da história da Seleção, Sócrates foi um dos raros ídolos de massa a renegar tal status e a manifestar uma consciência crítica aguçada sobre o seu próprio país, chegando inclusive a participar ativamente das “Diretas Já”, movimento de cunho popular que acelerou o processo de redemocratização e o fim da ditadura militar no Brasil.
Como se não bastasse, liderou uma iniciativa inédita e revolucionária de autogestão no futebol, que ficou conhecida como “Democracia Corintiana” e empoderou os jogadores, dando-lhes autonomia e poder de decisão dentro do clube. Consequentemente, Sócrates incomodou e foi combatido pelos burocratas do futebol por representar uma ameaça ao modelo autoritário de gestão, em vigor até hoje.
Era de se perguntar a razão pela qual uma personalidade tão controversa — e tão influente — ainda não havia merecido uma biografia à altura. A obra de Andrew Downie veio preencher esta lacuna em grande estilo: publicada originalmente em inglês e depois lançada em francês, italiano, polonês e turco, a obra é resultado de vasta pesquisa e longas entrevistas feitas pelo autor durante os anos em que trabalhou como correspondente no Rio de Janeiro e em São Paulo.
De jovem conservador a ícone da esquerda
Embora tenha nascido em Belém do Pará, no dia 19 de fevereiro de 1954, numa casa repleta de livros — seu pai era leitor contumaz de Filosofia, ao ponto de dar aos filhos nomes de filósofos gregos, como Sócrates, Sófocles e Sóstenes —, o menino cresceu em Ribeirão Preto, cidade do interior de São Paulo dominada pelo agronegócio, onde os jovens tinham pouco ou nenhum acesso a atividades culturais e políticas. Assim, é compreensível que suas primeiras entrevistas como jogador tenham sido um show de conservadorismo.
Em 1976, em entrevista ao “Diário da Manhã”, o meia-atacante do Botafogo de Ribeirão Preto declarou que o povo brasileiro ainda não estava preparado para eleger o seu presidente, disse ser contra métodos anticoncepcionais para controle de natalidade e defendeu a censura. “A censura à imprensa, em termos, é necessária. Pessoalmente, acho muito importante o governo manter a boa imagem diante do povo. Aqui está havendo uma transformação desde a Revolução de 1964”, declarou.
Por fim, jogando uma pitada de incoerência em seu próprio discurso de direita, o jogador, que também era estudante de medicina (almejava abandonar o futebol assim que se formasse médico pela USP), citou o revolucionário chinês Mao Tsé Tung como um de seus ídolos.
Sua chegada à capital paulista e a compreensão do que significava jogar no Corinthians foram os pontos de inflexão em seu modo de pensar. Morando em São Paulo, o rapaz interiorano, que havia dado declarações reacionárias no passado, começaria a manifestar sua simpatia por Fidel Castro e Che Guevara e a emitir opiniões críticas contra o regime militar, que estava em seus estertores. Entre outros fatores, contribuiu para isso a amizade com o lateral-esquerdo Wladimir, seu colega de clube.
Wladimir era um jovem muito inteligente, com ideias progressistas e avançadas para a época. Assim como Sócrates, interessava-se pelo ambiente cultural da cidade. Nos dias de folga, iam juntos a teatros, cinemas e concertos de música. Em pouco tempo, juntaram-se a eles Casagrande e Juninho Fonseca, que também gostavam de arte e de discutir política na mesa do bar. Estava formado o núcleo duro do grupo que daria origem à “Democracia Corintiana”.
O enredo de como o movimento eclodiu é bastante conhecido e o livro de Andrew Downie não traz nenhuma informação nova a respeito. Mesmo assim, vale destacar o trecho em que o sistema de autogestão idealizado por Sócrates e Wladimir começa a ser implantado no Corinthians — e ele coincide com a nomeação de Adilson Monteiro Alves como diretor de futebol.
Adilson era um escolha incomum: sociólogo por formação, não escondia sua inexperiência no esporte. Sua indicação se deu por razão meramente hereditária, uma vez que era filho do vice-presidente do clube. Apesar de sua nomeação ter sido mal recebida a princípio, a chegada de um novato foi a melhor coisa que poderia acontecer aos jogadores: na primeira conversa com o elenco, ele assumiu que não sabia por onde começar o trabalho de renovação no clube e perguntou como os atletas poderiam ajudá-lo. Naquele instante, os olhos de Sócrates brilharam e ele não perdeu a chance de dizer exatamente o que estava errado e o que deveria ser feito para mudar aquela realidade.
Foram discutidas ideias nunca antes aplicadas, como o fim da concentração, a diminuição das enormes discrepâncias salariais no time e a participação do grupo nas decisões da diretoria. Adilson Monteiro Alves se mostrou empolgado e disse que “não temos de aceitar a vida tal como ela se apresenta. Devemos questioná-la, discutir. Mudar, se for preciso. Foi assim que o povo brasileiro conseguiu a abertura. E é assim que o Corinthians poderá se tornar um time espiritual e financeiramente mais forte.” Era o ano de 1981.
O novo sistema se baseava na participação de todos e na noção de que decisões importantes que envolviam o time de futebol deveriam ser colocadas em votação e aprovadas pela maioria. Com a ajuda de Sócrates e Wladimir, que assumiram naturalmente o posto de porta-vozes do movimento, Adilson convenceu os demais jogadores de que eles não poderiam mais ser tratados como crianças e deveriam discutir seus interesses, tomando decisões não como indivíduos, mas como um coletivo. O vestiário do time se tornou um centro de debates acalorados em que tudo terminava em votação.
Passaram a decidir democraticamente desde as coisas mais banais, como se o ônibus deveria ou não fazer uma parada no meio do caminho para que os atletas pudessem tomar um café, quanto as mais complexas, como se este ou aquele jogador deveria ou não ser contratado pelo clube. E não havia diferenciação: o voto do técnico tinha o mesmo peso do voto dos jogadores e de outros funcionários, como o roupeiro e o massagista.
Não sem embate com seus opositores, a “Democracia Corintiana” foi ganhando corpo e dando resultados. O fim da concentração, que era uma antiga bandeira levantada por Sócrates, caiu como uma bomba na imprensa esportiva, que passou a se referir à medida como um “passe livre para a anarquia”. A maioria, porém, achava que o time renderia muito mais se, ao invés de ficarem confinados num quarto de hotel antes dos jogos, os atletas tivessem o direito de estar com suas famílias ou confraternizando entre eles. Decidiu-se que todos teriam o direito de fazer o que bem entendessem fora do clube, inclusive beber e fumar sem serem punidos, pois era algo que dizia respeito à vida pessoal de cada um. A cobrança por resultados deveria ser baseada no rendimento do grupo dentro de campo e não a partir de julgamentos morais.
Ao contrário das previsões mais pessimistas da imprensa, que tratava o movimento com deboche ou raiva, a “Democracia” levou o Corinthians a sair de uma longa crise e conquistar os títulos de campeão paulista em 1982 e 1983. Neste último campeonato, o lateral-direito Zé Maria, por meio de votação, chegou a ser promovido a técnico do time e o comandou por algumas rodadas. Diante deste fato, inédito no esporte mundial, o Jornal da Tarde estampou a manchete: “Os jogadores chegaram ao poder”.
A “Democracia” começa a morrer quando Sócrates deixa o Corinthians para jogar na Fiorentina, um time da primeira divisão da Itália. Sua ida, porém, não atende a interesses financeiros ou pessoais. Um mês antes de a emenda das eleições diretas para presidente ser votada na Câmara dos Deputados, em Brasília, o craque corintiano, no palanque dos artistas, intelectuais e políticos que pediam “Diretas Já”, declara publicamente, em plena Praça da Sé, que se a emenda não fosse aprovada pelo Congresso Nacional, ele deixaria o Brasil.
Em 1984, a emenda é reprovada e o brasileiro continua proibido de eleger seu principal mandatário. Sócrates cumpre a promessa de sair do País e aceita a proposta da Fiorentina. Sem a sua maior liderança, o movimento, que já dava sinais de esgotamento, fica ainda mais enfraquecido. A venda de Casagrande para o São Paulo representa o segundo grande baque. O tiro de misericórdia é a eleição de Roberto Pasqua, ligado a Vicente Matheus, que derrota Adilson Monteiro Alves no pleito de 1º de abril de 1985 e assume a direção de futebol sob suspeitas de fraude e compra de votos. O sonho corintiano chegava ao fim.
O livro de Andrew Downie mostra de forma clara como a “Democracia Corintiana” interferiu não apenas nos rumos do Corinthians e do futebol brasileiro, como também na política nacional. Este “espírito democrático”, de alguma forma, esteve presente ainda na Seleção Brasileira que disputou a Copa do Mundo de 1982, na Espanha. Sócrates era o capitão, mas apesar de gozar de autoridade moral e de certa ascendência sobre o elenco, decidiu parar temporariamente de beber e de fumar, dedicando-se de corpo e alma ao seu condicionamento físico. A “Democracia” não era sinônimo de irresponsabilidade.
O sonho do “Doutor” era ganhar o Mundial e levantar a taça de modo original: não sozinho, como todos os capitães haviam feito até então, mas junto de seus companheiros, transmitindo em escala planetária a mensagem de que toda vitória é coletiva e não individual. Porém, apesar de ter sido eleito um dos craques da Copa e de a Seleção Brasileira ter encantado o mundo com seu futebol-arte, tal gesto não foi possível: a injusta derrota para a Itália, nas quartas-de-final, sepultou o seu intento. Para sempre.
Anos mais tarde, Sócrates falaria sobre o legado da “Democracia Corintiana”, contestando a afirmação de que o movimento teria sido inútil. “Conseguimos provar ao público que qualquer sociedade pode e deve ser igualitária. Que podemos abrir mão dos nossos poderes e privilégios em prol do bem comum. Que devemos estimular a que todos se reconheçam e que possam participar ativamente dos desígnios de suas vidas. Que a opressão não é imbatível. Que a união é fundamental para ultrapassar obstáculos indigestos. Que uma comunidade só frutifica se respeitar a vontade da maioria de seus integrantes. Que é possível se dar as mãos.”
Gênio atormentado, libertário e autodestrutivo
“Doutor Sócrates”, o livro, tem como diferencial a abordagem de aspectos pessoais da vida do ex-jogador, anteriormente tratados com desinteresse ou reserva por outros autores. São detalhes que não trazem prejuízo à sua memória e nem comprometem o seu legado, mas que o humanizam e ajudam a desvendar sua alma. Ao expor os excessos e contradições do biografado, Downie nos conta a história exatamente do modo como Sócrates gostaria que fosse contada: no plano terreno, sem meias palavras e sem o puxa-saquismo que ele tanto repudiava.
O texto não disfarça a sua admiração pelo personagem que aborda, mas tira o mito do pedestal ao narrar episódios prosaicos que revelam sua relação tóxica com as mulheres, sua incapacidade de lidar com questões de ordem prática, sua relação inconsequente com o álcool e seu individualismo exacerbado no ambiente de trabalho, percebido pelos colegas como o pior traço de sua personalidade.
“Ele era um egoísta que fazia mal para o emocional das pessoas. Não era egoísta de ferrar você. Não era mau-caráter. Era um egoísta que, emocionalmente, fazia mal a quem estivesse por perto”, declarou o ex-jogador Casagrande, hoje comentarista da Rede Globo. O fato de terem sido amigos e parceiros de time por muitos anos não o impediu de remoer velhas mágoas na entrevista para o livro.
A grande contradição em Sócrates estava justamente no fato de que ele era, dentre todos os jogadores de sua geração, o que menos se importava com dinheiro e um dos poucos a se colocar solidariamente à frente de brigas e discussões públicas visando o bem comum. Para defender os interesses do grupo ele era capaz de arriscar a própria imagem, contrato e patrocinadores. Sempre que perguntado, fazia questão de se dizer “socialista” e não foram raras as vezes em que distribuiu parte do salário aos amigos e desconhecidos que estavam passando por dificuldades financeiras.
Seu individualismo não era desta ordem. Ele se fazia notar em situações específicas, como quando se recusava a seguir a mesma rotina de treinamento dos companheiros e exigia para si condições especiais que aos outros não eram permitidas. Por onde passou fez questão de deixar claro que não aceitaria ser tolhido em seu direito de treinar quando e como quisesse e de continuar tomando a sua cervejinha em paz.
Quando chegou na Itália, tentou introduzir na Fiorentina um tipo de movimento ao estilo “Democracia Corintiana”, mas subestimou o conservadorismo e o desinteresse dos seus novos companheiros. Depois de comemorar um gol com o punho cerrado erguido no ar — gesto universal associado às lutas de resistência e aos movimentos de esquerda — foi repreendido pelo presidente do clube, um anticomunista ferrenho. O punho cerrado na comemoração dos gols era a marca registrada de Sócrates e ele não deixou barato: começou a se apresentar nos eventos do clube de bermuda e chinelo de dedo, dispensando o terno e a gravata, ítens obrigatórios nos clubes europeus.
Além disso, fumava durante os treinos e acusava os demais jogadores de serem “um bando de fascistas” por não passarem a bola para ele. Tentou se integrar ao grupo algumas vezes, convidando os colegas para churrascos em sua casa — mas ninguém aparecia. Seu único amigo era o jornalista brasileiro José Trajano, que estava a trabalho na Itália e chegou a morar um tempo com ele durante sua estadia em Florença. O “Doutor” sentia-se isolado e deprimido na Europa.
“Nós tentamos conversar com os amigos dele, saber quais eram os problemas e tentar ajudar, mas não fez nenhuma diferença e não aconteceu quase nada. Fizemos várias reuniões, mas, no fundo, ele era muito peculiar. Não tinha equilíbrio na vida. Ele não era feliz. Um jogador precisa se sentir valorizado e ter um bom relacionamento com os outros, e ele nunca teve isso”, disse Nicollò Pontello, diretor da Fiorentina à época.
Na opinião de Raimundo, seu irmão, Sócrates buscou o tempo todo ajustar a estrutura do futebol profissional a seu estilo de vida boêmio. “A questão da concentração, por exemplo, era mais sobre estender sua ideologia pessoal ao grupo social. Ele reivindicava a liberdade de estar em casa numa sexta-feira, ou mesmo num sábado à noite, e de assumir a responsabilidade sobre seus atos, inclusive o de beber a sua cerveja.”
Sobram relatos de ex-jogadores, inclusive italianos, que se sentiam prejudicados por sua recusa em melhorar o condicionamento físico. Alguns alegam que tinham de “correr por dois” para suprir a sua pouca mobilidade em campo. A sorte de Sócrates era ter um toque de bola refinado e uma visão de jogo apurada, que compensavam a ausência de músculos e de agilidade. “Minha realidade física era muito distinta da dos adversários”, admitia o craque.
Assim que foi contratado pelo Botafogo de Ribeirão Preto, primeiro time profissional de sua carreira, a sobrevivência como jogador passou a depender do desenvolvimento de uma técnica alternativa. Conta Sócrates: “Comecei a jogar dando só um toque na bola, recebia e passava, porque não podia ter contato físico, eu não tinha estrutura muscular para isso […] O que eu pudesse usar eu usava para dar apenas um toque — bunda, joelho, cotovelo e o que acabou por me caracterizar, o calcanhar. […] A sensação que eu tinha era a de não poder errar nenhum passe, porque eu tinha total incapacidade física para enfrentar o contato.”
Tudo nele era a antítese do futebolista, inclusive o temperamento: ao contrário da imagem de farrista e gozador que cultivou a vida toda, Sócrates era um homem reservado e melancólico, que só conseguia se sentir à vontade quando estava com um copo de cerveja na mão. Beber, antes de ser um vício, era como um remédio para ele, segundo Raimundo: “Nossa família é tímida e introspectiva, e o Magrão contornava isso com cerveja. A bebida funcionava como antídoto à má disposição, à introspecção excessiva e à rabugice.”
Em uma passagem pitoresca, Sócrates, recém-contratado pelo Flamengo, foi convidado para ser jurado dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro no carnaval de 1986. A certa altura do evento, contrariando as regras, ele abandonou a sala da comissão julgadora, tirou a camisa e se juntou aos passistas na avenida com uma garrafa de uísque na mão. Resgatado pelos fiscais, foi obrigado a voltar para o camarote, onde continuou bebendo com o jornalista Sérgio Cabral, testemunha do episódio.
Embora gostasse de carnaval, Sócrates não tinha nenhum conhecimento técnico para avaliar baterias de escolas de samba. Na hora de dar as notas, inventou um critério totalmente aleatório e nada profissional: se as pessoas na arquibancada se levantassem e cantassem o samba, a nota era 10; se elas apenas se levantassem, sem cantar, a nota era 9; se ficassem sentadas, a nota era 8.
No fim dos desfiles, o Salgueiro quis entrar na justiça para anular as notas dadas pelo jogador, alegando que ele estava “completamente bêbado” e sem condições de julgar coisa alguma. A Portela, que recebeu nota 8, passou a considerá-lo “persona non grata” na quadra. Para piorar, a Mangueira, escola com a qual Sócrates simpatizava, foi a campeã daquele ano, levantando ainda mais suspeitas sobre a sua idoneidade como jurado. Seu nome foi riscado da lista de celebridades com passe livre no carnaval carioca.
O jornalista Mino Carta, editor da Carta Capital e amigo do ex-jogador, disse em entrevista que, apesar de aparecer em público sempre descontraído e com uma postura altiva, Sócrates “era um homem desencantado. Não tinha nenhum motivo que o prendesse o bastante. Era um homem muito atormentado, que procurava um sentido para a vida e nunca o encontrou.”
Isso explicaria o fato de que, após pendurar as chuteiras, nunca conseguiu se firmar em nenhuma profissão ou exercer até o fim alguma atividade. Montou uma clínica para atuar como médico em Ribeirão Preto, mas fracassou. Tentou ser jogador de tênis, cantor de música sertaneja, escritor, teatrólogo, sócio de um cineclube, técnico de futebol, comentarista esportivo. Não se firmou em nenhuma ocupação.
Em 1995, foi contratado pela SporTV para comentar partidas de futebol, mas chegou embriagado em sua primeira transmissão, a final entre Corinthians e Palmeiras pelo Campeonato Paulista. Além de trocar o nome dos jogadores, passou boa parte do tempo torcendo ostensivamente para o Corinthians — o que enfureceu os torcedores adversários. No segundo jogo da decisão, com o crachá da emissora no peito, Sócrates entrou no campo para saudar a Gaviões da Fiel e deu um grito no microfone quando o Corinthians marcou um gol. Foi dispensado imediatamente após a partida.
O psicanalista Flávio Gikovate, que trabalhou com o time do Corinthians na época da “Democracia”, fez uma análise parecida sobre a tendência de Sócrates à autosabotagem, mas apontou um motivo. Para ele, o “Doutor” desenvolveu um “comportamento autodestrutivo cada vez mais forte” assim que se transferiu para a Fiorentina. A ausência do calor brasileiro, do samba e da cerveja com os amigos pesou bastante, mas o fator principal de sua derrocada, segundo ele, teria sido o ressentimento gerado por uma decisão tomada pouco antes de se mudar para a Itália: a de encerrar um affair com a cantora Rosemary, numa tentativa de salvar seu casamento.
Na avaliação do psicanalista, Sócrates teria se arrependido por desistir da amante, pela qual era apaixonado. “Ele não se perdoou por ter feito uma má escolha do ponto de vista sentimental. […] Ele fugiu de uma relação maior do que a que tinha com a Regina (sua esposa na época). Esse era um relacionamento aconchegante em termos de conforto, mas não era emocionante. E ele era um homem que gostava de emoções.”
A impressão de Gikovate é que Sócrates jamais se recuperou da perda. Embora se comportasse como um outsider, na hora de se separar da primeira mulher para assumir uma estrela da música, exuberante e independente, ele optou pela saída mais conservadora — e nunca se perdoou por isso. “Por medo da felicidade, ele não se achava competente para ter uma mulher daquele tamanho, e aí começou a ter comportamentos que misturavam o ser outsider com a autodestrutividade”, afirmou.
Na contracapa da biografia, Raí, seu irmão mais famoso, que também seguiu carreira no futebol, escreveu que Sócrates “não tinha medo de se entregar aos deleites, delírios, abismos e transbordamentos do que ele considerava sua maior obsessão: a liberdade.”
A utopia corintiana
Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira Oliveira não era nome de jogador de futebol, mas mesmo assim o eternizou como um dos 100 melhores futebolistas da história, segundo a Fifa. Na seleção de todos os tempos do Corinthians, ele aparece como titular no meio-campo — o que não é pouca coisa se levarmos em conta que se trata de um clube centenário e o mais popular do Brasil, atrás apenas do Flamengo.
O caso de Sócrates com a “Nação Corintiana”, no entanto, foi sendo construído ao longo dos anos. Conturbada no início e marcada por agressões e ameaças de torcedores, a relação entre ambas as partes se consumou, de modo definitivo, quando ele finalmente compreendeu o que significava representar um contingente humano dez vezes superior à população do Uruguai.
A princípio relutante e mantendo uma postura estritamente profissional com clube e torcida, acabou se apegando ao universo corintiano com a força devastadora das paixões. “Jogar no Corinthians é como ser convocado para uma guerra irracional e jamais duvidar que ela é a mais importante de todas as que existiram. É ser sempre chamado a pensar como Marx, lutar como Napoleão, rezar como o Dalai-lama, doar a vida a uma causa como Mandela e chorar como uma criança”, definiu certa vez o craque.
Houve um episódio determinante para este “acerto de contas”: após uma derrota do Corinthians para o XV de Piracicaba no Pacaembu, torcedores enfurecidos depredaram os carros dos jogadores, inclusive o Fiat de Sócrates, e tentaram invadir o vestiário. “Passamos quatro horas trancados lá dentro com medo de que a porta de ferro cedesse e eles conseguissem entrar”, relembrou o jogador num programa de televisão. Pensou em abandonar a carreira no dia seguinte, mas foi demovido pelos colegas.
Uma semana depois, no mesmo estádio do Pacaembu, o Corinthians ganhou por 4 a 2 do Comercial. Sócrates fez três gols, mas não comemorou e não demonstrou qualquer tipo de emoção. Após marcar o terceiro, de pênalti, pediu para ser substituído. “A não comemoração dos gols começou como reação a uma atitude da torcida”, explicou. “Eu nunca fui um cara frio, mas quis me comunicar com a torcida e manifestar minha insatisfação com o que tinha acontecido uma semana antes. Por que hoje sou tratado como um deus se ontem eu era o diabo? Eu sou um ser humano.”
Ao estabelecer um canal de comunicação com a torcida corintiana — que captou a mensagem e mudou sua atitude para com o time —, a sinergia entre jogadores e arquibancada começou a se fazer sentir dentro de campo. “Se você não se comunicar com o público, você desperdiça a força que emana dele, deixa de usar aquela potência ao seu favor”, afirmou o ídolo.
Mesmo debilitado por conta da cirrose hepática, fruto de uma existência dedicada aos excessos, “Doutor” Sócrates, ou Magrão, como também era chamado pelos torcedores, dedicou-se a difundir o “corintianismo” como uma espécie de “filosofia de vida”. Foram muitas as contradições que marcaram a sua biografia, mas ele se manteve fiel até o fim aos seus dois grandes amores: o Corinthians e a cerveja.
No dia de sua morte, em 4 de dezembro de 2011, minutos antes do início da partida final entre Corinthians e Palmeiras pelo Campeonato Paulista, os torcedores corintianos presentes no estádio ficaram em pé e milhares de punhos cerrados se ergueram no ar, em homenagem ao maior ídolo da história do clube. Foi a prova cabal de que a “Democracia Corintiana”, ainda que como utopia, permanecia viva.