A ascensão de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil, há quatro anos, marcou uma virada em muitos aspectos da realidade brasileira: o aumento dos desmatamentos na Amazônia, a crescente nos índices de fome no Brasil, que hoje atinge 33 milhões de brasileiros, a ocupação de milhares de cargos governamentais por militares, a postura abertamente negacionista e antivacina durante a pandemia num país que é referência internacional em vacinação, e muitas outras questões.
Mas ela também marcou uma reviravolta num aspecto que costuma ter pouca atenção do eleitorado: a política externa. Com efeito, na disputa eleitoral de 2022, as relações do Brasil com o mundo não foram só tema do costumeiro polemismo liberal sobre as relações do PT com governos como Venezuela, Cuba e Nicarágua. Ao contrário, apareceu com frequência também na voz do futuro presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, que em inserções e debates sempre lembrava dos tempos em que “o Brasil era respeitado no mundo”.
Com as urnas dando vitória a Lula por uma margem de 2,1 milhões de votos (50,9% dos votos contra 49,1%), e sinalizando o fim de um governo que optou pelo alinhamento automático aos Estados Unidos e transformou o País em um anão diplomático, a Revista Opera conversou com três especialistas sobre o que se pode esperar da política externa brasileira num terceiro mandato de Lula. A segunda destas entrevistas, que segue, foi feita com Elias Jabbour, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor de “China – o socialismo do século XXI” (Boitempo, 2021), recém-premiado com o Special Book Award of China, maior prêmio literário da Administração Estatal de Imprensa e Publicação da China.
Revista Opera: Qual é sua avaliação geral sobre a política externa do governo Bolsonaro nos últimos quatro anos e, mais especificamente, como você avalia essa política em relação à China? Além de uma postura anti-China durante todo o governo, houve episódios em que o presidente chegou às raias da insanidade: as declarações contra a “vachina” e sobre o “vírus chinês” e menções do filho do presidente, Eduardo, sobre “espionagem chinesa”. Essa retórica tomou contornos práticos? Chegou a abalar de fato as relações comerciais e diplomáticas entre os países?
Elias Jabbour: Temos a sorte dos chineses olharem ao Brasil como uma entidade histórica, que irá existir com ou sem Bolsonaro. Caso contrário, a possibilidade de termos tido problemas de variados tipos seria grande. Por exemplo, com as vacinas. Os chineses poderiam simplesmente não nos entregar vacinas. Ou com commodities. Os chineses poderiam usar seus estoques reguladores, fazer o que fizeram com a Austrália, e deixar nossa agricultura sem demanda externa. Nesse caso, durante o governo Bolsonaro nossa dependência para com a China aumentou – o que é péssimo para um país que deveria pensar como “projeto nacional”. Mas, mesmo com Bolsonaro, não interessa aos chineses um Brasil enfraquecido, com seu tecido social esgarçado e pronto para se transformar em área de influência dos EUA ad eternum. Em outras palavras, a visão estratégica que os chineses guardam em relação ao Brasil nos livrou de grandes problemas. O Brasil é muito maior que Bolsonaro.
Revista Opera: Nas relações comerciais e diplomáticas, um dos pontos-chave entre Brasil e China são as cadeias de energia elétrica e combustíveis fósseis – só essas duas áreas representariam 78% do valor dos investimentos chineses aqui entre 2007 e 2020. Estas cadeias se tornam especialmente importantes com a guerra na Ucrânia, e o WikiLeaks já havia revelado como as petroleiras norte-americanas estavam insatisfeitas entre 2009 e 2010 com o modelo de partilha do pré-sal proposto por Lula – um dos e-mails dizia claramente que, sob aquele modelo, os russos e especialmente os chineses seriam beneficiados porque eles poderiam “dar lances maior que todo mundo”. Ou seja, a expectativa dessas petroleiras era um modelo em que elas ganhassem com os menores lances. Como você vê o futuro das relações Brasil-China neste cenário, em que, do ponto de vista externo, a marcação dos EUA tende a ser mais cerrada, tanto pela guerra comercial com a China quanto pela importância que o setor energético ganhou com a guerra na Ucrânia, e, do ponto de vista interno, muitos ativos da Petrobras foram vendidos, e há a questão do Preço de Paridade Internacional por enfrentar?
Elias Jabbour: Depende do próximo governo eleito. O Brasil deveria aproveitar suas imensas reservas de petróleo e usá-las a nosso favor. Digo isso, não somente mudando a política de preços atual praticada pela Petrobras, mas substituindo importações de gasolina e montando um grande esquema de construção de complexos petroquímicos. Acho que podemos jogar com esse petróleo. O oferecendo aos chineses, uma quantidade “x” por dez ou vinte anos, em troca de grandes investimentos em infraestrutura e transferência de todas as tecnologias relacionadas à indústria mecânica pesada. Seria um caminho de planejar nossa economia partindo de uma tendência dada externamente (a transformação da China em exportadora de valores de uso) para abrir mais um flanco para nossa reindustrialização. Existe uma imensa oportunidade aberta ao Brasil neste campo e deveríamos ter pressa em abraçá-la.
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Revista Opera: Alguns analistas vêm argumentando que uma reeleição de Bolsonaro seria mais benéfica para a China do que uma vitória de Lula, porque, com Bolsonaro, o Brasil tenderia a um isolamento internacional maior, e portanto precisaria mais dos chineses. Como você avalia esse tipo de posição?
Elias Jabbour: Essa avaliação é absurda pelo fato do Brasil, com Bolsonaro, caminhar para se transformar em uma grande área de desestabilização de toda América Latina como um proxy-Estado pró imperialista. Aos chineses não interessa que o Brasil se consolide na divisão internacional do trabalho como um mero exportador de commodities. A China está construindo uma agricultura de alta complexidade e aumentando as importações de commodities africanas que estão com um custo cada vez maior, dadas as obras de infraestruturas em andamento no continente. O rival estratégico da China são os EUA e, nesse jogo, um Brasil forte, industrializado e capaz de levar a América Latina a um novo patamar de cooperação e união é tudo o que os chineses precisam.
Revista Opera: Por fim, quais são suas expectativas sobre a política externa de um futuro governo Lula? Será possível reproduzir uma política “altiva e ativa”, como preconizou Celso Amorim? E como, na sua visão, o presidente poderá balancear sua política externa com uma situação interna tão complicada, com muito mais restrições e ameaças que as que haviam entre 2002-2010?
Elias Jabbour: A política externa deve mudar completamente com a adoção de posturas históricas que remontam às políticas externas de Geisel e do próprio Lula. O Brasil deverá voltar a jogar papel decisivo nas grandes questões internacionais. Mas a nossa debilidade interna, aliada à destruição de nossos grandes oligopólios nacionais, dificulta muito algo fundamental: a planificação de nosso comércio externo. Um país na arena internacional são seus grandes conglomerados públicos e/ou privados e seu grande banco de investimentos. Perdemos muito em pouco tempo. Mas acredito que poderemos, ao reconstruir essas capacidades, reconstruir também nossa nação. A busca de uma outra maioria política para isso é chave.