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A Coreia está à beira da guerra?

O anticomunismo do governo do Sul e as mudanças políticas no Norte são a chave para compreender o que será um ano muito complexo e tensionado nas Coreias
Eduardo García Granado
Soldados norte-coreanos no Paralelo 38, linha divisória da Península Coreana. (Foto: Groucho / Flickr)

Em 2010, a península coreana atravessou uma das piores crises bélicas desde o fim (na realidade, a pausa) da guerra civil mediada pelos Estados Unidos, União Soviética, China e outros atores que ocorreu entre 1950 e 1953. Em novembro de 2010, quatro sul-coreanos foram mortos por disparos de artilharia de Pyongyang em Yeonpyeong, situada ao sul da fronteira marítima entre as duas Coreias. Seul havia realizado anteriormente vários exercícios de artilharia balística na mesma região e, na sequência do incidente na ilha, os militares sul-coreanos bombardearam as bases do norte em Kaemori e Mudo. Naqueles dias, a possibilidade de um início de guerra em grande escala na Coreia era real.

À época, as fracas vias de comunicação entre os dois lados e a contenção da guerra – influenciada já nessa altura pela proliferação nuclear da Coreia do Norte – convergiram para um arrefecimento gradual das hostilidades. Hoje, apesar de alguns nomes terem mudado, assistimos a tensões que relembram esse contexto e que provam que a tensão entre o eixo Washington-Seul e a Coreia do Norte está sempre presente e pode romper a qualquer momento. De fato, a situação atual na região partilha alguns elementos-chave com o pico do risco de guerra em 2010; outros fatores são ainda mais perigosos.

Como começou 2024

O ano de 2024 começou na Coreia com níveis de tensão mais elevados do que os registrados em 2023; 2023, por sua vez, começou com níveis de tensão mais elevados do que 2022. Nas últimas horas de 2023, a política norte-coreana foi uma grande surpresa. Perante a Assembleia do Poder Popular, o órgão legislativo nacional, Kim Jong-Un fez críticas à linha que o seu próprio governo vinha adotando nos últimos tempos em relação ao Sul, insistindo que era preciso aceitar que o governo sul-coreano era, na sua essência, o seu principal inimigo. Historicamente, o Norte vinha sustentando a posição de que o Sul era um governo dominado pelos EUA, com pouca iniciativa, pelo que Seul era, de certa forma, isenta de culpa quando as tensões aumentavam. Desde então, Pyongyang passou a concentrar-se tanto em Seul quanto com Washington.

Essa escalada diplomática, por si só significativa, agravou-se nos primeiros dias de janeiro de 2024. O Líder Supremo fez um apelo à discussão de algumas mudanças substanciais e históricas: o desmantelamento dos “órgãos de solidariedade para a reunificação pacífica” e a eliminação de expressões constitucionais como “grande unidade nacional”, entre outras. Ao mesmo tempo, e em consonância com a alusão agora reiterada ao “direito à autodefesa”, Kim deixou claro que “se a guerra rebentar”, a Coreia do Norte aspirará a “ocupar, subjugar e anexar” o Sul; embora essa retórica seja consistente com o que seria na prática uma guerra civil, ela coloca em cima da mesa termos até agora incomuns por parte do Norte.

Neste momento, há três questões que não podem ser ignoradas na avaliação do que está acontecendo na Coreia: 1) a nova renúncia (temporária) de Pyongyang à reunificação, 2) a consolidação das ações anticomunistas do governo do Sul e 3) o colapso de uma grande variedade de canais de comunicação e de contenção. A escalada na Coreia em 2024 tem duas variantes: militar e político-diplomática. Para compreender esta última, é essencial recorrer à história política do Norte.

Durante décadas, Pyongyang optou por uma diplomacia reativa, adaptando-se aos altos e baixos eleitorais da Coreia do Sul. Em suma, a dinâmica foi a seguinte: quando o socioliberalismo “reunificacionista” da “Sunshine Policy” (Política Raio de Sol) ascendia ao executivo sul-coreano, o Norte optava por aproximações em múltiplas frentes, em conformidade com os acordos assinados por Kim Dae-Jung e Kim Jong-Il em 2000. Por outro lado, quando os partidos do bloco anticomunista de direita, que carrega algumas das tradições ideológicas das ditaduras militares da Coreia do Sul, chegavam ao poder, a situação se alterava bastante. A mudança em 2024 é profunda. Os falecidos líderes Kim Il-Sung e Kim Jong-Il enfrentaram vários governos de orientação anti-comunista no Sul. Apesar disso, os antecessores de Kim Jong-Un nunca deixaram de defender a reunificação como objetivo imediato; Kim Jong-Un deixou.

Após a morte de Kim Jong-Il, em 2011, Kim Jong-Un teve de continuar a linha militarista (Songun) desenvolvida por Kim Il-Sung ao longo de sua vida e, sobretudo, pelo próprio Kim Jong-Il. Apesar das tensões com o presidente Lee Myung-Bak, a posição “intermediária” durante o governo de Park Geun-Hye (2013-2017) facilitou um certo grau de distensão na península. Em seguida, o governo de Moon Jae-in (2017-2022) implementou a Política Raio de Sol em relação à Coreia do Norte, melhorando consideravelmente os laços entre os dois países e permitindo conversações de paz e uma maior aproximação. Durante esses anos, Kim Jong-Un não teve de lidar com situações tão tensas como as que Kim Jong-Il e Kim Il-Sung tiveram de enfrentar. No entanto, a derrota do Partido Democrático nas eleições sul-coreanas de março de 2022 alterou radicalmente a situação na península: Lee Jae-Myung perdeu por menos de um ponto para o promotor anticomunista Yoon Suk-Yeol, e as chances de reunificação e de um distensionamento duradouro terminaram subitamente.

A chave: Yoon Suk-Yeol

A partir de janeiro de 2024, a Coreia do Norte deixou de considerar a reunificação como uma perspectiva a médio prazo e as comunicações com o Sul foram completamente descartadas. Por quê? Essencialmente, por causa do presidente Yoon. Em 2019, o então presidente Moon Jae-In nomeou Yoon Suk-Yeol como procurador-geral. A partir dessa posição, ele forjou uma liderança política construída sobre uma retórica de outsider que lhe permitiu, três anos depois, obter uma vitória eleitoral sobre o próprio sucessor de Moon, Lee Jae-Myung. Desde o início da sua presidência, as relações entre as duas Coreias têm registrado um declínio constante.

Tal como Lee Myung-Bak, o presidente Yoon faz parte do establishment político nacional que se apresenta orgulhosamente como “direita anticomunista”. Depois de ter vencido as eleições primárias, Yoon conta com o apoio do Partido do Poder Popular (PPP), fundado em 2020 como uma fusão de vários blocos, incluindo o Partido da Liberdade (antigo Saenuri), sucessor das várias expressões partidárias do anticomunismo no país.

A chave para compreender a escalada pré-bélica na península está neste espaço político que, ao contrário do Partido Democrático, considera o Norte como uma espécie de “herança maldita” da história nacional coreana. Para Yoon e o PPP, tudo o que a Coreia do Norte representa atualmente deve ser erradicado, desde o próprio Kim Jong-Un até o marxismo coreano. Nesta perspectiva, Seul está confrontando Pyongyang de uma forma totalmente confrontativa; não há espaço para negociações, diplomacia ou para a reunificação “federativa” acordada em 2000. O horizonte do governo sul-coreano não é o abrandamento das tensões, mas a anexação da parte norte da península, ou seja, a “reunificação por absorção”.

Tanto Kim Jong-Un como o governo e os militares norte-coreanos reconhecem esta situação e, consequentemente, assumem posições de preparação para a guerra, insistindo que qualquer avanço dos EUA e da Coreia do Sul ao norte do Paralelo 38, que divide a península, desencadearia uma guerra total. Quer se trate mais ou menos de mero discurso, o que é inegável é que as pontes diplomáticas estão quebradas. Nenhuma das partes continua considerando a outra como um interlocutor legítimo e os Estados Unidos persistem pressionando Pyongyang através de exercícios militares conjuntos, nos quais o Japão desempenha um papel cada vez mais importante. Ao mesmo tempo, a China tenta desempenhar um papel de mediação que raramente é reconhecido por qualquer um dos atores e a Rússia deixa a porta aberta a uma globalização do conflito ao mostrar-se aberta a se envolver com Pyongyang em exercícios militares na região.

Em abril de 2024, no contexto das tensões resultantes da radicalização do discurso anticomunista do governo sul-coreano, serão realizadas eleições legislativas no país. Embora Yoon Suk-Yeol tenha um mandato até 2027 – a reeleição não é permitida na Coreia do Sul – as eleições de abril poderão dar algumas pistas sobre a popularidade do PPP após dois anos de mandato. Atualmente, o presidente Yoon não está muito bem cotado nas pesquisas, mas a possibilidade de seu sucessor no partido ser eleito em 2027 continua intacta. As eleições de 2027 serão cruciais para a segurança da Ásia-Pacífico, uma região que tem sido privilegiada na estratégia internacional dos EUA. Por extensão, as eleições legislativas de 2024 revestem-se de alguma importância; darão uma indicação relativamente fidedigna do estado eleitoral tanto da direita anticomunista do PPP como da “Política Raio de Sol” do Partido Democrático.

(*) Eduardo García Granado é analista internacional, com formação em Ciências Políticas e Administração pela  U.N.E.D e mestrado em Relações Internacionais pela Universidade Nacional de San Martín.

(*) Tradução de Raul Chiliani

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